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Mito simples e complexo

Capítulo 4 O Mito – estrutura do mito trágico

4.7 Mito simples e complexo

Depois de tudo o que já foi dito acerca da estrutura do mito trágico ainda restam dois pares de definições que encerram a trama de sua estrutura. O primeiro par é o que nos dá a diferença entre o mito simples e o complexo. A diferença entre ambos é estabelecida no capítulo X .Entretanto, as definições que permitem a compreensão dessa diferença entre os mitos só nos são fornecidos por Aristóteles no capítulo seguinte. O que distingue o mito simples do complexo é a natureza das ações que eles imitam. No primeiro caso, a ação simples é aquela que, sendo una e coerente, faz a mutação de fortuna, sem a ocorrência de peripécias ou de reconhecimento. O mito complexo é, pelo contrário, o que possui ambas características. O segundo par de conceitos ligados a estruturação do mito trágico é representado por peripécia e reconhecimento. A peripécia é definida por Aristóteles como sendo a mutação dos sucessos no contrário, isto é, a passagem da boa para a má fortuna ou vice-versa. E essa passagem, deve se dar de maneira necessária e verossímil. Aristóteles nos apresenta então os exemplos de Édipo e Linceu:

(...) o mensageiro que viera no propósito de tranqüilizar o rei e de

libertá-lo do terror que sentia nas suas relações com a mãe, descobrindo quem ele era, causou o efeito contrário; e no Linceu:

sendo Linceu levado para a morte, e seguindo-o Danau para o matar, acontece o oposto, - este morre e aquele fica salvo.100

É pois a peripécia a mutação dos sucessos no sentido contrário da expectativa? Surge aí uma primeira pergunta colocada, aliás, por vários comentadores: expectativa de quem? Dos espectadores? Das personagens? Segundo Eudoro de Souza (1966), diversos exemplos levariam a crer que o paradoxal só afetaria os heróis na trama. Como falar em surpresa tendo em vista uma platéia que já de antemão conhecia os argumentos dos mitos? Ainda de acordo com Eudoro de Souza, outros comentadores como Else já haviam objetado para o fato de que:

(...) o nosso conhecimento de que a situação de Édipo vai ser subvertida, é um conhecimento acidental, acidental no sentido aristotélico, não é uma expectativa baseada nos fatos tais como são apresentados no decorrer da peça... ou, em geral, em considerações de verossimilhança e necessidade, mas sim, no prévio conhecimento que acontece possuirmos nós, do drama ou do mito. 101

Nesse sentido, a surpresa passa a ser então a descoberta, por parte do espectador, das relações entre os fatos. Relações que já existiam mas que permaneciam ocultas e que só se dão a revelar se forem bem articuladas pelos poetas. A peripécia, como elemento constitutivo da tragédia complexa, é particularmente adequada para suscitar o terror e a piedade na medida em que estabelece a ligação entre o elemento surpresa e o encadeamento necessário e verossímil das ações. O ponto extremo da verosimilhança é, na opinião de Dupont-Roc e Lallot, aquele em que o encadeamento dos fatos se produz no sentido contrário da expectativa. Ou em outras palavras: “é o verossímil que se produz contra o verossímil e provoca o prazer da surpresa em que a fórmula “o

100

Poét.1451 a 22.

101

choque da surpresa se produz segundo os caminhos do verdadeiro” nos parece constituir uma boa definição de peripécia”102.

O outro termo capital para a compreensão da distinção entre os mitos simples e complexos e que, estando intimamente ligado à peripécia, desencadearia o efeito de surpresa é o reconhecimento. Reconhecimento é, como a peripécia, uma mudança de situação, uma reviravolta na sorte (metabolé). Essa mudança de situação se dá através da passagem da ignorância para o conhecimento. Talvez o exemplo que melhor clarifique essa definição seja o de Édipo. Quando o herói descobre que Laio é o seu pai, tal reconhecimento desencadeia a reviravolta em sua sorte. Ao que parece, dois traços específicos distinguem o reconhecimento da peripécia. O primeiro é o fato de que o reconhecimento parece estar apoiado sobre a identidade do herói e o segundo diz respeito ao próprio herói, pois tal reconhecimento expressa uma tomada de consciência da sua própria situação. Ambos os traços porém, revelam algo bem mais profundo e que irá determinar todo o resto: o reconhecimento é intrinsecamente um reconhecimento dos laços que unem o herói à comunidade a qual está vinculado. Vale dizer: os laços de sangue. Aqui, o exemplo de Édipo é, uma vez mais, paradigmático. O reconhecimento passa a ser entendido na medida em que se encontra associado a dois termos gregos que explicitam uma relação essencial: philia ou ekhthra.

Para o entendimento dessa situação, não podemos atribuir a esses termos o sentido corriqueiro de amizade ou ódio. Bem mais que amizade, Philia expressa uma relação muito mais íntima de parentesco ou mesmo de aliança, os laços que unem a família e a comunidade. Por seu turno, ekhthra é definida como sendo uma hostilidade advinda da violação de semelhante laço. É por essa razão que o reconhecimento não pode ser concebido como se fosse apenas uma apreensão subjetiva que o herói possa ter de suas ações ou de suas relações com os demais. Pensemos uma vez mais em Édipo. O reconhecimento que se dá em tal mito é a descoberta do elo, que ele ignorava, que o ligava a Laio objetiva e socialmente definido como positivo (philia). Édipo reconhece assim a philia que o

liga a seu pai, da mesma forma que Clitemnestra reconhece em seu próprio filho, Orestes, aquele que chega para consumar a vingança de Agamennon . Em ambos os casos, os personagens, a princípio, ignoram a sua verdadeira situação. A reviravolta da situação, essa passagem do ignorar para o conhecer, se dá no interior da trama dos fatos, pelo reconhecimento.

No que diz respeito à situação anterior da personagem e da reviravolta que se processa em sua sorte, é importante lembrar que tal mutação não se dá necessariamente por obra do destino. Aliás, o destino não é categoria tratada na filosofia de Aristóteles e, conforme assinala Else citado por Eudoro de Souza, o termo grego orismenos não parece ou não pode significar “destinado”, sendo melhor traduzido, no contexto da tragédia, por “delimitado ou definido”. Nesses termos, Aristóteles não estaria querendo dizer que o destino de Édipo era o de ser infeliz mas que, no início do drama, a sua posição de rei, de protetor da cidade, era a posição de um homem que gozava da felicidade. Assim:

Em geral, o feito do reconhecimento é descobrir uma horrível discrepância entre duas categorias de relações de parentesco: de um lado, os profundos laços de sangue, de outro lado, uma relação de hostilidade, casual ou real, que sobreveio ou ameaça sobrevir àquele. 103

Para concluir podemos dizer que, com o fim de provocar a surpresa, a união necessária e verossímil de peripécia e reconhecimento será, no decorrer da trama, o que mais especificamente irá suscitar os sentimentos próprios da tragédia que são a piedade e o terror.

Um terceiro e último elemento que irá compor o mito é a catástrofe, que é definida como sendo uma ação perniciosa e dolorosa que se opera em cena. São as mortes, as dores veementes, os ferimentos e outros casos semelhantes.

102

DUPONT-ROC e LALLOT,1980, p. 232.

CAPÍTULO 5