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Laços de amizade, inimizade ou indiferença

Capítulo 5 O Herói trágico

5.2 Laços de amizade, inimizade ou indiferença

Falávamos das relações entre as personagens, Aristóteles localiza a fonte das ações que devem preferencialmente servir de inspiração aos poetas trágicos: os mitos tradicionais. De fato, conforme constata mais adiante, já no último parágrafo do capítulo XIV (1454 a10) não são muitos os mitos tradicionais que se prestam a serem utilizados pelos poetas:

Por esta razão, como dissemos antes, não há muitas famílias de cuja história se possa tirar argumento de Tragédias: quando buscavam situações trágicas, os poetas as encontraram, não por arte, mas por fortuna, nos mitos tradicionais, não tendo mais que acomodá-los a seus propósitos; eis porque se constrangeram a recorrer à história das famílias em que semelhantes calamidades sucederam.115

Ora, se não são muitas as famílias cujas histórias se prestam à imitação (os trágicos limitam o assunto das tragédias aos infortúnios das famílias poderosas, reais, como é o caso dos Atridas ou dos Labdácidas), também não são muitos os tipos de relação entre as personagens que se prestam aos efeitos próprios da tragédia. Quais relações Aristóteles enumera e quais ele restringe? A primeira condição apontada é a que diz respeito à amizade, inimizade ou indiferença das personagens e já aí aparece a primeira restrição: que relação trágica poderia existir entre dois inimigos? Qualquer ato de violência que venha a ocorrer entre ambos é algo esperado. Desse modo, não se concebe nenhum sentido de piedade ou terror que possa advir de um conflito entre inimigos. Se há algo que

desperte a compaixão é, segundo Aristóteles, apenas o “aspecto lutuoso dos acontecimentos”116. Da mesma forma, parece ser a relação entre personagens que sejam indiferentes um ao outro. Sob esse aspecto aliás, Aristóteles não se manifesta e se não o faz é de se admitir que também não se prestam ao efeito trágico desejado. Resta então a relação entre personagens ligados por laço de amizade e aqui se faz necessário, mais uma vez, lançarmos mão do conceito de philia que, conforme já assinalamos, não designa uma relação afetiva de sangue ou de amizade mas uma relação objetiva de aliança, reconhecida socialmente, que faz dos indivíduos ligados, seja pelo laço de sangue, seja pelo casamento, pela hospitalidade, etc. Toda a violência ocorrida entre esses indivíduos (que sob esse aspecto dirige-se diretamente contra o próprio grupo social o que revela seu caráter autodestrutivo) “constitui um escândalo”117. Assim, os atos de violência nascidos no coração das alianças farão a platéia “tremer”, irão suscitar a piedade e o terror trágicos que nascem não do espetáculo, mas do desenvolvimento da trama dos fatos e de suas terríveis e inevitáveis conseqüências. No polo oposto temos a noção de ekhthra que já de antemão constitui os indivíduos como hostis. Desse modo, a violência entre eles é algo que se encontra no universo próprio de suas relações, é algo mais que esperado.

Mas se as ações catastróficas sucederem entre amigos – como , por exemplo, o irmão que mata ou esteja em vias de matar o irmão, ou um filho o pai, ou a mãe um filho, ou um filho a mãe, ou quando aconteçam outras coisas que tais – eis os casos a discutir.118

Dentro dessa perspectiva, os mitos tradicionais não devem ser alterados. Espera-se sempre que Clitemnestra, em conluio com Egisto, mate seu esposo Agamennon e seja depois morta por seu filho Orestes. O que Aristóteles aconselha ao poeta é que ele arranje os dados da tradição artisticamente. A

116Poet.1453b 15-20.

117 DUPONT-ROC e LALLOT, 1980,p.254. 118

grande arte do poeta é a de organizar, da melhor maneira possível, os dados disponíveis na tradição que estão no domínio de uma boa parte da comunidade e de tal forma que, da peripécia se passe ao reconhecimento. A forma da ação dependerá da presença ou da ausência de dois elementos fundamentais: o agir e o conhecer. Uma vez colocada tal condição, Aristóteles enumera as situações possíveis (e vislumbradas nas obras trágicas) e qual delas é a melhor. A primeira é a das personagens que sabem e conhecem o que fazem, é o caso da Medéia de Eurípides, que mata os próprios filhos; a segunda situação é a das personagens que agem mas não tem consciência da maldade de seus atos e que só depois se revelam os seus laços de parentesco, é o caso do Édipo Rei de Sófocles; finalmente o terceiro caso é o da personagem que está em vias de cometer algum ato terrível por ignorância, mas o reconhece antes de agir. A classificação das situações segue a mesma ordem deslocando-se contudo, a primeira situação para o segundo posto, uma vez que o pior de todos os casos, estranhamente não mencionado por Aristóteles da primeira vez, é o da personagem que sabe, se prepara para a ação e no entanto, não age, caso da relação de Hêmon com seu pai Creonte, na Antígona de Sófocles. Em seguida, o caso do agente sabedor (Medéia). As situações que são consideradas como as melhores são as da personagem que age por ignorância e que só venha a adquirir o conhecimento depois de já consumada a violência, que é o caso clássico de Édipo – um caso que não provoca repulsa e cujo reconhecimento é surpreendente – e finalmente, o melhor de todos, é o caso da personagem que fincada na ignorância está para cometer o ato violento mas não o comete por obra do reconhecimento que se dá na hora crucial. É o caso por exemplo, da Ifigênia em Táuride de Eurípides.