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Caracterização da organização produtiva no assentamento a partir da díade individual e

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1.2 As produções recentes sobre organização dos assentamentos: espaço social de conflitos e

1.2.2 Caracterização da organização produtiva no assentamento a partir da díade individual e

em torno da militância camponesa, promoveu na sua contra-face o acúmulo de outras tensões, agora inscritas num novo microuniverso de conflitos: o assentamento.

1.2.2 Caracterização da organização produtiva no assentamento a partir da díade individual e coletivo

Na tentativa de atribuir um sentido específico para a vida no assentamento, especialmente a partir da orientação da organização produtiva, as ações dos movimentos sociais do campo e agentes do Estado compõem, no contato com as famílias, um universo das tensões que, na maioria das vezes, convergem para as noções de individual e coletivo. A maneira como foi pensada a organização dos assentamentos rurais, a partir dessa díade valorativa e o modo como passou a ser sustentada como bandeira ideológica dos movimentos, é seguramente o que os autores mais identificam como razão dos conflitos empiricamente observados.

Ao longo do processo de reforma agrária foi construído um discurso que credita às formas coletivas de organização no assentamento a capacidade de torná-los viáveis economicamente; na outra ponta desse discurso, as opções feitas pelos assentados, que, em alguma medida, se distanciam dos coletivos formais, são associadas ao que ordinariamente se chama de individualismo. Entre o individual e o coletivo se polariza o universo dos arranjos produtivos: a representação do que é coletivo, construída para o conjunto das famílias assentadas, encerra em si todas as possibilidades desejáveis de solidariedade dentro do assentamento, enquanto que, fora dela, qualquer articulação aparece como indesejável.

Sendo esse tipo de tensão um dado empírico latente na realidade dos assentamentos, desde antes da sua formação, o individual e o coletivo é um tema abordado pela grande maioria dos autores, ainda que a questão da organização produtiva não esteja exatamente na sua linha de investigação. Nesse particular, os esforços dos autores aqui estudados se concentram em formas na caracterização das tendências de organização da economia produtiva introduzida pelos atores políticos. Isso inclui a reconstrução histórica das opções pelo padrão coletivista, a composição discursiva que realça os benefícios de certo padrão de cooperação na reprodução social das famílias e as vantagens da representação política em cooperativas e associações.

A distância entre individual e coletivo torna-se maior, na medida em que entram na disputa as bandeiras ideológicas dos movimentos sociais e os interesses de agentes governamentais, no contato com os interesses das famílias assentadas. De um lado, estão aqueles que incorporam e defendem os interesses do movimento, a proposta da coletivização, e de outro se encontram as famílias que reivindicam a autonomia do trabalho no seu lote, sua casa, seu crédito e não compartilham com o ideário coletivo (Paiva, 2005).

De acordo com o trabalho de Oliveira (2010), cuja investigação se concentrou em compreender a relação entre as formas coletivas de produção e os programas de

desenvolvimento rural, os precedentes do dilema individual/coletivo são anteriores à formação dos assentamentos rurais propriamente e estão associados às primeiras opções de mudança no perfil do Estado brasileiro sob orientação neoliberalista. De acordo com esse autor, seguindo as orientações do Banco Mundial na definição dos rumos e os padrões do desenvolvimento rural latino-americano, o Estado brasileiro passa a introduzir uma série de medidas visando controlar a organização da sociedade civil. Para os grupos de pequenos produtores rurais foram destinadas políticas públicas de financiamento do custeio, produção e comercialização, que exigiam sua participação em associações agrícolas.

Este modelo foi amplamente difundido pela perspectiva do desenvolvimento rural: buscava-se combater os índices de pobreza rural, a partir de mecanismos que permitissem a melhoria da qualidade de vida e da capacidade produtiva, por meio do fornecimento de crédito, assistência técnica e extensão rural vinculados à participação associativa. Com a abertura democrática, na década de 1980, as associações agrícolas foram progressivamente se tornando relevantes no espaço rural, como forma dos pequenos produtores rurais proprietários se inserirem no mercado.

Por sua vez, os movimentos sociais de luta pela terra, capitaneados pelo MST, inauguram um novo modelo de cooperativismo agrícola, pautados na experiência designada como Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA). Esse modelo teve grande relevância na justificativa de um formato específico de gestão coletiva da terra, na medida em que suas experiências pontuais demonstravam êxito no que se refere à formação político-ideológica e viabilidade produtiva dos assentamentos. Desse modo, tanto o modelo de associativismo rural quanto a participação decorrente vêm sendo historicamente estimulados, seja pelo aparelho estatal brasileiro, seja pelas agências multilaterais de financiamento de políticas públicas, desenvolvimento rural e diminuição da pobreza.

Oliveira (2010) explica a centralidade do modelo associativo como uma alternativa que acabou se coadunando com o contexto de uma totalidade complexa e fragmentada, qual seja a população do meio rural, historicamente fragilizada pelos modelos de desenvolvimento empreendido na sequência dos diferentes governos brasileiros.

A questão da centralidade das formas coletivas e, por conseguinte, do modelo associativo e cooperativo, apresenta outro tipo de resposta na tese de Caume (2002). Seu argumento é de que, tomando pra si a questão da viabilidade econômica dos assentamentos, o MST fez da coletivização uma bandeira de luta que sustenta sua própria representação enquanto movimento. Pegando emprestado as palavras de João Pedro Stedile, os assentamentos passam a ser para o MST uma espécie de “territórios da utopia”, onde se tentava construir, na cotidianidade desses espaços, uma experiência socialista.

Semelhante é o ponto de partida que utiliza Schreiner (2002) para analisar as contradições e conflitos no cotidiano das formas de organização de famílias assentadas em 03 assentamentos, no Paraná. Segundo a autora, a proposta de organização da cooperação entre os assentados está estreitamente vinculada à ideia de controle das áreas em processo de reforma, que o movimento sugere serem áreas subtraídas da territorialidade capitalista. Disso segue o controle da organização de todas as famílias como principal estratégia para o exercício da “práxis socialista”.

O trabalho individual – assim referido às famílias que resolvem manter-se à parte da gestão coletiva – é uma categoria que reúne em torno de si uma carga valorativa extremamente negativa e desqualificadora, remetida à noção de mentalidade burguesa, atrasada, egoísta e indiferente à causa da luta histórica que, por suposto, envolve os trabalhadores rurais sem-terra. O trabalho coletivo é uma categoria que se tornou absoluta com o tempo, no sentido de que basta em si, sem dever maiores justificativas. Isso certamente se deve a uma combinação de dois fatores: primeiro, na ação dos movimentos sociais, “o coletivo” tornou-se envolto de um caráter redentor, cumprindo uma espécie de ritual litúrgico

de caminho para o paraíso – seja ele cristão ou socialista – onde os homens podem viver em eterna comunhão; segundo, essa concepção se alinha muito bem com a necessidade de controle administrativo do Estado sobre essas áreas. A cumplicidade entre esses dois sentidos justifica, de alguma forma, a relativa hegemonia da forma coletiva.

Dado seu caráter experimental, os significados do que se pretende como coletivo e que visam penetrar as bases de organização das famílias não está isento de resistência e contra- acordos. Mas, do contrário, as teses aqui em foco registram uma série de tensões originárias da maneira como os formatos propostos para gestão produtiva da terra (associações e cooperativas) colidem com significados que as famílias insistem em defender.

Neto (2005), estudando a experiência do Projeto Lumiar de assistência técnica em assentamentos da Paraíba, aborda o dilema vivenciado pelos assentados entre o individual e o coletivo como, sendo, para eles, uma questão ambivalente: prevendo as oportunidades que chegam ao assentamento e que passam pela via das associações/cooperativas, eles devem aderir a esses modelos, mas o exercício de autonomia leva-os a afirmarem sua posição de produtores individuais. Afirma o autor que, sendo as associações uma condição necessária para o acesso aos subsídios estatais, o estranhamento de parte dos assentados frente a essas formas organizativas trazidas de fora se relativiza pela necessidade que eles têm de se organizar para enfrentar dificuldades comuns. “O desejo de autonomia familiar no trabalho e nas formas de viver, de um lado, e a necessidade de acesso aos subsídios governamentais e o reconhecimento da necessidade da „união‟ do grupo, de outro, sustentavam essa aparente ambiguidade” (NETO, 2005, p. 303).

Individual e coletivo aparecem assim como duas categorias dentro da tentativa de preencher, com significados específicos, as formas de organização das famílias, tendo por trás a necessidade de enquadramento administrativo do assentamento, tanto pelo Estado quanto pelos movimentos sociais.

Nos resultados de sua pesquisa, Neto (2005) evidencia experiências de organização interna entre famílias que ele chamou de grupos de interesse (mulheres, jovens, de limpeza, do meio ambiente) que são criados tão somente para dar resposta a desafios específicos. A importância dessas formas de organização está na espontaneidade com que os grupos surgem, realizam as tarefas para as quais foram mobilizadas as famílias e, uma vez cumprido o objetivo, se desfazem naturalmente. Em suas palavras, “decorre da avaliação crítica e permanente dos assentados sobre as práticas sociais efetivamente vivenciadas por eles” (NETO, 2005, p. 339). No entanto, por não se enquadrarem no padrão individual ou coletivo, conforme supervisionado pelos técnicos, são imediatamente desconsideradas ou mesmo desqualificadas.

As formas de exercício organizativo conjuntural não eliminam os jogos de poder, mas, exatamente por terem uma existência determinada, não conseguem manter uma estruturação de poder que se estende para além do tempo de existência do grupo que se reúne para uma ação específica. Os que pretendem estabelecer mecanismos de controle político dentro dos assentamentos (seja qual for suas origens: Estado, entidades de apoio e movimentos sociais), na maior parte dos casos, não se interessam e desqualificam esses exercícios organizativos conjunturais; preferem as estruturas organizativas pelo caráter de representação formalmente instituída dos assentados, estruturas que são apresentadas com pretensões de que sejam definitivas (NETO, 2005, p. 279-80).

As implicações desse processo são analisadas pelos pesquisadores mediante uma série de conflitos que repercutem na forma como as famílias participam em suas associações. Os dados de parte significativa das pesquisas apontam para o fato de que muitos núcleos estudados apresentam certa saturação das lógicas internas de relacionamento em que as associações são um espaço de negociação e busca de entendimentos sobre tensões de

naturezas variadas. Elas podem ser reunidas em torno de três pontos principais que estão associadas a: 1) capacidade de garantir a reprodução social das famílias (gerência); 2) credibilidade da forma associativa (representação); e 3) tensões relativas à relação do assentado com a terra (acesso e uso).

Justamente por reunir uma gama muito diversa de interesses e expectativas em torno da gestão da economia produtiva – e das relações cotidianas – as associações são um espaço para onde converge toda sorte de desentendimentos. Os trechos abaixo apresentam uma espécie de painel dos problemas elencados pelos assentados e retratados nas teses como sendo derivados do exercício de gestão associativa:

a realidade da pesquisa tem nos mostrado a baixa adesão aos projetos coletivos, muitos deles fadados ao fracasso, e uma opção maciça pelo individualismo. O trabalho coletivo é abandonado por inúmeros motivos: problemas pessoais, desejo de regular seu próprio horário de trabalho, dificuldade em dividir os lucros da produção, experiências fracassadas, falta de confiança nos líderes, abandono dos órgãos governamentais (e demais mediadores), etc. (MACIEL, 2009, p. 36).

A maior dificuldade hoje para Aparecida está na ausência de espírito coletivo de suas colegas de trabalho na Associação e na agroindústria. As brigas internas são frequentes e por motivos dos mais complexos aos mais simples ― há desentendimentos, relata, devido à organização dos horários de trabalho, da divisão do trabalho e do dinheiro e também devido a brigas entre as crianças que permanecem no local enquanto as mães estão trabalhando (FERREIRA, 2010, p. 68).

Poderiam ainda ser acrescentados problemas relativos a endividamento, desacordos nas compras coletivas, – e, pegando emprestado constatações de Duarte (2005) –, das diferentes disposições para o trabalho, do pouco conhecimento sobre tramitações formais de gestão, de lidar com o imediatismo do retorno financeiro e daí por diante.

O que foi anteriormente referido como “saturação” da lógica associativa diz respeito ao apontamento comum de várias teses segundo as quais os conflitos no âmbito das associações alimentam uma espécie de “contração” nas malhas de solidariedade em direção ao trabalho individual/familiar. Este parece ter sido o denominador comum de uma equação cujas variáveis envolvidas são a ação pública governamental, a atuação dos movimentos sociais e interesses das famílias assentadas.

Contudo, as conclusões a que chegou Justo (2005, p. 101) descrevem os conflitos e rachas internos de maneira diferente: “as dissidências internas – ou abandonos de grupos – e os rachas nos movimentos pela terra são importantes formas de gestão de conflitos, ao invés de mera manifestação de „individualismo‟ camponês”. Esse ponto de vista oferece uma explicação alternativa às constatações anteriores de que a falta de “espírito coletivo” coincide com um movimento de “opção maciça pelo individualismo”. Conforme a interpretação do autor, as dissidências internas são uma forma provisória de reacomodar a organização em novas bases, sem que isso necessariamente implique uma atomização das ações.

No que tange ao problema da representação, os apontamentos de Neto (2005) e Paiva (2005) apresentam dados bastante ilustrativos do que é discutido no conjunto das teses pesquisadas. Os resultados apresentados por Neto (2005, p. 297) mostram o problema da representação mediante certo descrédito das associações por parte das famílias. São sintomáticos desse descrédito a tentativa de cooptação de dirigentes das associações, tanto por parte do poder local, como por interesses políticos partidários e eleitorais, ou por comerciantes locais interessados em “negociar” a venda ou a compra de equipamentos e produtos. Há o registro de que presidentes eram assediados, no sentido de estabelecer acordos sem que isso fosse tratado nos espaços públicos de discussão dentro dos assentamentos, provocando como reação a sensação, por parte das famílias, de suborno e corrupção.

Apontamentos da mesma natureza são feitos por Paiva (2005, p. 132):

Dois problemas geraram a desconfiança. Em primeiro lugar, as normas e regras são transmitidas, mas nem sempre compreendidas por parte dos assentados. Em segundo, os assentados, em seus depoimentos, apontam fatos que constatam falta de clareza no gerenciamento de projetos, como por exemplo, na prestação de contas, os percentuais descontados pela associação ou MST. Esses elementos contribuem para que surja um sentimento de falta de credibilidade da associação.

O que as análises versam a respeito dessa questão é que o associativismo introduz um universo de práticas relativamente estranhas aos assentados, sobremaneira no que se refere às tarefas técnico-burocráticas. Isso é agravado quando essas tarefas se concentram nas funções diretivas – o presidente em especial, mas que pode ser também o secretário ou o tesoureiro –, gerando a percepção de que a gestão da organização produtiva está sendo conduzida exclusivamente pela figura de um assentado, em particular, que representa todos os demais no contato com os agentes externos. Ainda que se pretenda horizontal, o regime associativo requer algum tipo de hierarquia, que pode ser representada pelos assentados nos termos de patrão e empregado, ou nos termos locais “um que manda e os outros que obedecem”. Isso aciona um movimento que faz com que os assentados reivindiquem sua autonomia na forma de titulares de seus lotes de trabalho.

O direito de acesso à terra na forma de titularidade é um valor que as famílias carregam como parte de sua identidade. Segundo os dados da pesquisa de Ramiro (2008), que aborda a constituição da identidade de assentado, os trabalhadores rurais, vinculados aos movimentos sociais de luta pela terra, destacam entre as mudanças com a vida no assentamento a passagem da situação de empregados para patrões, no sentido de serem “donos” de suas terras e administrarem sua força-de-trabalho em benefício próprio, “o que chamam de trabalhar por conta” (RAMIRO, 2010, p. 85). Reportam-se à questão de perceberem-se como proprietários de seu lote e ao fato de gerarem renda para si.

A despeito do que sugere a “propriedade” enquanto valor para as famílias, nem todas suas atitudes são orientadas pela defesa da noção de individual. No universo dos constrangimentos morais que os assentados mobilizam na relação uns com os outros, a noção de coletivo pode ser requerida para regular as regras normativas que fixam o trabalho nos lotes e a residência no assentamento. Ruschel (2010), numa descrição sobre assentados que trabalham ou moram parcialmente nas cidades, afirma que a reprovação dos demais assentados sobre essas questões é evocada a partir de uma “‟desconsideração do coletivo‟, já que tais assentados acabam se comportando como „turistas‟, que vêm ao Assentamento somente para dormir ou passar o fim de semana" (RUSCHEL, 2010, p. 23).

O que os dados das pesquisas de Ramiro (2010) e Ruschel (2010) levam a crer é que, se por um lado, a questão da “propriedade” pode ser requisitada como elemento de afirmação da autonomia frente à pressão por participação nas associações, por outro lado, ser “patrão de si” não habilita o assentado a se eximir, ainda que parcialmente, de morar no assentamento e/ou trabalhar no seu lote, sob pena de ser apontado como alguém que não colabora com o coletivo mais amplo.

Individual e coletivo são ambivalências que se instituíram como um dos principais parâmetros das narrativas sobre assentamentos rurais, no âmbito acadêmico, de movimentos sociais e controle burocrático do Estado. Essas noções passaram a definir as próprias fronteiras para se pensar a organização interna das famílias, tornando-se também duas fortes referências que os autores utilizam para caracterizar os próprios assentados. Essa caracterização é quase sempre preenchida com o conteúdo do que se vincula um “ethos camponês”, cujas fontes são os clássicos da literatura europeia e nacional, ou a ideia de “identidade de assentado”, que remonta a teorias contemporâneas sobre identidade. Em todo

caso, o que parece estar em disputa na discussão do “ethos” ou da “identidade dos assentados” é, essencialmente, os traços a partir dos quais é possível inferir inclinações coletivistas ou individualistas.

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