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O associativismo como canal de interlocução jurídica e acesso a recursos

No documento Download/Open (páginas 67-71)

Até a década de 1980, as opções de desenvolvimentismo nacional compuseram uma agenda de política agrícola centrada no segmento da agricultura para exportação, visando modernizar o setor para fortalecer o poder de concorrência do Brasil entre as nações de capitalismo avançado. O processo que se chamou de “modernização conservadora”, levado a cabo especialmente durante o regime militar, dedicou-se a fortalecer o poder de competição internacional do setor agroempresarial, com aporte de financiamentos estatais para exportação de comodities de bens primários. Com efeito, a opção de capitalizar a agricultura concentrou a intervenção Estado no setor do agroempresariado, dirigindo ao setor que hoje se chama agricultura familiar investimentos muito tacanhos e, geralmente, emergenciais. Isto é, até a década de 1990 não assumiam coesão na forma de políticas setoriais e mesmo os créditos para

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Na visão de Weber, haveria, na sociedade moderna, uma tendência para que o sentido da ação dos sujeitos fosse cada vez mais penetrado pela lógica da ação prático-instrumental – que é característico da burocracia moderna. O avanço e predominância da racionalidade absoluta nos reservaria um futuro na forma de uma “jaula de ferro” que subtrai do sentido da ação qualquer atitude irracional ou incalculável.

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“pequenos produtores” ou “produtores de baixa renda”, além de restritos, na prática pouco se efetivaram:

Sem diferenciações normativas nas condições creditícias, com dificuldades de acesso aos bancos, a falta de familiaridade com a burocracia necessária, as poucas garantias a oferecer e devido à própria institucionalidade do sistema bancário, os pequenos agricultores enfrentaram inúmeras dificuldades para obter recursos do crédito rural (GRISA, 2012, p. 77).

No Nordeste, ao longo dos anos 1970 e 1980, a assistência aos “pequenos produtores” se aplicava a partir de acordos de cooperação técnica e financeira com organismos internacionais que influenciavam diretamente, em diversos setores, as políticas sociais brasileiras. Atuando como agência financiadora de projetos de infraestrutura econômica no Brasil desde o final da década de 1940, o Banco Mundial tornou-se, a partir dos anos 1970, uma das mais relevantes fontes de financiamento do setor social. No marco da plataforma neoliberal, o Banco atuava junto ao FMI na condução dos ajustes estruturais para a reforma dos Estados-membros do terceiro mundo. Ao FMI cabia a fixação de normas políticas para o desenvolvimento enquanto o Banco Mundial funcionava como agência de financiamento e cooperação técnica para projetos setoriais (FONSECA, 1998).

O peso desse agente financeiro e social na conformação da ação pública para o setor da atual agricultura familiar passou a influenciar os contornos da ação. Dado que a tônica das discussões sobre as alternativas para o meio rural se concentravam em torno da noção de desenvolvimento, eram comuns as abordagens que defendiam o “desenvolvimento rural integrado”, apelando para os benefícios da cooperação entre setores locais, agencias públicas e fontes de financiamento multilateral. Nesse sentido são exemplares as traduções e publicações, por parte do Banco do Nordeste, de manuais estrangeiros criados a partir da experiência de projetos de desenvolvimento em diferentes países, especialmente entre os do chamado “terceiro mundo”.

Num desses manuais (WEITZ, 1974) aparece muito claro os princípios que orientam essa concepção específica de ação pública: a superação do papel “vertical” da administração Estatal; uma concepção de planejamento, com um objetivo claro e definido, que inclua a variedade de atores envolvidos; a exploração das potencialidades locais (recursos naturais, mão-de-obra sub-ocupada e redes financeiras); e um resultado global que conduza a um aumento das oportunidades de emprego agrícola.

Aqui interessa destacar que a presença desses organismos no meio rural do Nordeste teve como resultado a criação e fortalecimento da malha associativa. Se o sindicalismo representou a primeira onda de associativismo no meio rural, o financiamento dos organismos multilaterais representou uma segunda rodada de disseminação desses núcleos pela zona rural. Isso tem a ver, inclusive, com a maneira como se “atacou” a noção de gestão centralizada do Estado. “Por razões históricas, a organização governamental, na maioria dos países em desenvolvimento, é centralizada”, diz o manual acima referido. Em seguida: “essa burocracia reduz as probabilidades de serem satisfeitos os requisitos básicos para o êxito de um programa de desenvolvimento” (WEITZ, 1979, p. 41).

Alternativamente o manual propõe a fortalecimento das organizações locais, sejam elas de natureza governamental ou não governamental. No que se refere a estas últimas, enfatiza o papel da organização dos agricultores em cooperativas e associações:

A organização dos produtores rurais, quer sejam grandes quer pequenos agricultores, também é uma pré-condição para transformação do setor. [...] Muitos programas de desenvolvimento voltados para zona rural prescrevem a cooperativa como principal instrumento desta transformação, renovação e expansão do sistema de apoio existente. [...] O Agricultor, nos países atualmente em desenvolvimento, muitas

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vezes não consegue obter os serviços de que necessita para a transformação de sua unidade de exploração, porque lhe falta habilidade, meios e poder de enfrentar os prestadores de serviços, de igual para igual. [...] A fim de mudar essa situação, os agricultores devem unir forças e criar sua própria organização, cujo poder e volume de operações a capacitarão a enfrentar os prestadores de serviços” (WEITZ, 1979, p. 24-25).

Dentro da noção de desenvolvimento rural do Banco Mundial havia uma concepção própria de Reforma Agrária, que alguns autores chamarão de “reforma agrária de mercado”. Basicamente a ideia desloca do domínio do Estado para o Mercado a responsabilidade de execução da reforma agrária, implicando um estímulo à transação de compra e venda de terras, na qual passa a ser este, e não aquele, o intermediário principal para o acesso de trabalhadores rurais sem terra à terra.

O conjunto de ações que compõem o sistema ganhou força no Nordeste, especialmente a partir do começo da década de 1990, estendendo- se até, mais ou menos, 2002. Entre as bases desses programas, cumpre citar o Programa de redistribuição de terras do Norte e Nordeste – PROTERRA, que constou da redistribuição de terras públicas e particulares para colonização, e cujo pagamento se fazia em moeda – e não em Títulos da Dívida Agrária conforme postulava o Estatuto da Terra de 1964. “A adesão do proprietário era voluntária, e ele ainda poderia escolher a área do imóvel a ser negociada e quais camponeses poderiam ter acesso ao programa” (DE OLIVEIRA, 2005, p. 74).

Segundo essa mesma autora, o interesse do Banco Mundial nessa “solução alternativa” atendia uma tripla conveniência: salvar os proprietários de terra falidos, que seriam convidados a vender suas piores terras; os camponeses poderiam se tornar proprietários solvendo, de alguma maneira, a questão da pobreza no meio rural; e, dado a mediação do mercado, o aspecto da luta estaria anulado.

No que se refere a formação de assentamentos, o programa “Reforma Agrária

Solidária”, uma modalidade de concessão de crédito chamada de “Cédula da terra”20

, tinha como finalidade promover a criação de assentamentos nos quais os trabalhadores rurais sem terra ou minifundiários negociavam diretamente a compra das terras. As condições de financiamento incluíam a formação de uma associação, envolvendo todos os membros do futuro assentamento. As associações tinham papel central na condução desses programas: além do imóvel ficar registrado no nome da pessoa jurídica, todo o processo, desde a apresentação da proposta de compra de terra, passando pelos contratos legais com o banco – nesse caso o Bando do Nordeste –, até a restituição dos valores reembolsáveis, era, necessariamente, mediado por associações (DE OLIVEIRA, 2005).

Embora essas iniciativas do Banco Mundial tenham sido alvo de muitas críticas, especialmente na medida que foram acusadas de tentar desviar o caráter de luta da reforma agrária, seu legado efetivo foi o de incremento da malha associativa no meio rural, que mais tarde tenderá a ser absorvida por outros programas de incentivo à agricultura familiar. Foi também a partir dessas iniciativas que programas mais abrangentes, como o Banco da Terra e o Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural, criados em 1998 e 2002, serviram de inspiração para a criação do Programa Nacional de Crédito Fundiário, criado em 2003 e em operação até hoje (PEREIRA, 2012).

Paralelo às ações dirigidas pelo Banco Mundial, a reforma agrária também era executada pelo Estado, conformando outro tipo de ação pública. Tendo papel decisivo na criação desse campo de ação, os movimentos camponeses que nasceram ou recuperaram suas

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Na verdade "projeto-piloto de reforma agrária e alívio da pobreza", que se popularizou sob o nome de Cédula da Terra (PCT).

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bases no embate ao regime militar, ao mesmo tempo em que publicizavam a precariedade das condições de reprodução social do campesinato, reivindicam a presença forte do Estado no reordenamento do uso da terra, mediante uma política sistemática de criação de assentamentos rurais.

A exemplo do que foram as experiências de reforma agrária durante a ditadura21, o

início das ações orientadas pelo Plano Nacional de Reforma Agrária - PNRA permaneceu centrado no problema do acesso à terra – propriamente. Entretanto, a questão da viabilidade econômica dos núcleos passa a integrar a agenda de discussões na medida em que se percebe que a redistribuição de seu acesso, por si mesma, não garantia a reprodução social das famílias.

Nos assentamentos já criados, emergem demandas objetivas de viabilizar a permanência na terra, mediante a oferta de condições concretas para sua exploração – habitações, maquinário, crédito financeiro e assistência técnica. Com o que passa a ser oferecido pelo programa de reforma agrária, desde os lotes de trabalho até as condições básicas para sua exploração, as famílias assentadas são estimuladas a criar alternativas produtivas, contando com o apoio dos mediadores envolvidos (técnicos extensionistas, agentes governamentais, representantes de movimentos sociais, sindicais e religiosos, ONGs). Assim, o associativismo é incentivado como dispositivo de gestão comum da terra, na medida em que se constitui de um canal através do qual se oportuniza o acesso a créditos, financiamentos e outras formas de investimento nos locais.

Na condição de entidade representativa, as associações emergem como a instância máxima de representação das famílias no âmbito do seu espaço; com isso, “[...] facilitam o contrato entre os assentados e as instituições públicas e privadas, relacionadas a produção agropecuária, como bancos, agroindústrias, agências governamentais, centros consumidores, fornecedores de equipamentos e insumos etc.”. (BERGAMASCO; NOLDER, 1996, p. 59- 61).

A organização de um assentamento rural supõe a disponibilidade de certos recursos técnicos e financeiros que os assentados dificilmente possuem quando iniciam suas atividades nesse espaço inaugural. As terras, em sua maioria, são de baixa fertilidade e exigem um tratamento anterior ao cultivo. O ordenamento dos lotes, as fontes de água e sua distribuição, a aquisição de tratores e equipamentos, fertilizantes, crédito, sementes, combustíveis e alimentação, até a primeira colheita, pode se tornar impossível para uma família isolada. Com isso as formas associativas e cooperativas aparecem como primeira alternativa para viabilizar o trabalho do grupo. (BERGAMASCO; NOLDER, 1996).

Neste ponto, realça-se a instrumentalidade do papel das associações. Elas surgem basicamente em razão do imperativo de representação formal das famílias no âmbito de seu espaço, ante a necessidade de diálogo com o Estado, orientadas para gestão da economia produtiva; isso inclui a administração dos equipamentos coletivos – como trator e forrageira – , tramitações burocráticas com parceiros e mediadores externos, bem como a gerência dos recursos relativos ao fomento da produção e uma série de outras demandas.

[...] as associações, direta ou indiretamente, são suportes fundamentais nas relações dos assentados com outras entidades e/ou atores externos ao assentamento. Enquanto algumas têm existência puramente formal, outras envolvem-se nos mais diferentes aspectos da vida do assentamento, seja na interlocução “para fora”, com os

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Reduzida a mera colonização de partes pouco populosas do norte e centro-oeste, em que trabalhadores eram atraídos por promessas de emprego, oferecendo mão-de-obra barata para setores empresariais que apoiaram o golpe e se estabeleciam na região mediante um plano de incentivos fiscais, concessão de terras e infraestrutura ( BERGAMASCO; NOLDER, 1996).

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diferentes agentes e instâncias governamentais (na cobrança de escolas, postos de saúde, estradas, transporte, crédito), seja para “dentro” (organização da produção, da comercialização etc.) (LEITE et al., 2004, p. 113).

Chama atenção também o associativismo enquanto extensão da administração pública estatal. Os próprios assentamentos rurais podem ser lidos como a criação de unidades político-administrativas sobre as quais se estendem as ações do Estado, emolduradas sob certo ideal de organização camponesa, nos quais se imprime, em alguma medida, o ideal da aldeia – fechada em si, indivisível, estática e atravessada por significados comunitários cristalizados, ligados a um suposto insulamento da vida rural. As condições de acesso a terra e demais recursos oferecidos aos beneficiários do programa de reforma agrária visam a regulação desse mesmo formato de vida comunitária.

o acesso a terra por meio da concessão de uso e não da propriedade plena, o que traz restrições a sua livre venda; necessidade de vinculação a alguma forma de associação para poder ter acesso a recursos creditícios; priorização das formas coletivas de organização sobre as individuais; imposição em relação à organização da produção, exigindo o cultivo de alguns produtos; dedicação exclusiva ao trabalho no interior do assentamento; trabalho somente com a ajuda familiar, sem recurso ao assalariamento eventual, imposição de moradia no lote e etc. (MEDEIROS et al., 1994, p. 20).

Ditado pelas necessidades práticas de acessar e gerir recursos, bem como manter-se na condição legal de assentado, as associações são criadas como interface de diálogo entre demandas práticas das famílias em negociações com o poder público, agentes de mercado e representantes de movimentos sociais.

Tanto no formato da ação pública que se conforma em torno da assim chamada “reforma agrária de mercado” quanto na reforma tipicamente executada pelo Estado, o associativismo e cooperativismo assume um caráter duplo: de um lado, surgem como expressão, legítima, da autonomia dos grupos assentados, reiterando o conjunto de direitos e deveres que acompanham a condição de assentado. De outro, constrange as formas de ação local no sentido de se acomodarem a procedimentos formais da ação administrativa estatal, como atender às necessidades dos movimentos sociais de criarem procedimentos gerais de formação política e organização produtiva em nível nacional.

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