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2 PIRANDELLO: UM VIAJANTE SEM BAGAGEM

2.3 CARTA AOS HERÓIS

Claudio Vicentini e Romano Luperini afirmam que das obras de Goethe, Pirandello assimilou um dos princípios fundamentais da estética romântica174. Segundo este princípio, que reinou absoluto durante todo o período oitocentista, a criação artística é em tudo similar a formação dos produtos naturais. Karl Philipp Moritz e Goethe sustentavam que a criação estética, assim como uma planta, também nasce de um “embrião”. Um som, uma imagem, uma cor, uma palavra, atingem o artista provocando uma emoção; ele, com o seu mundo interior (o terreno fértil), nutre este embrião e o desenvolve com a sua própria riqueza espiritual, sem no entanto interferir ou mesmo modificar o desenvolvimento da criação: a obra não deve ter nenhuma interferência externa e se realiza de forma orgânica. Seguindo este princípio romântico, a atividade artística desenvolve um “aperfeiçoamento” da natureza, pois, in natura, elementos externos, raios, tempestades, geadas, interferem em sua perfeita realização. Poucos organismos, em seu confronto com a dura realidade do mundo físico, conseguem completar de forma perfeita o projeto inicial. O artista deve ser capaz de realizar, no mundo de sua fantasia, aquilo que a natureza, por sua intrínseca fraqueza ou por impedimentos naturais, não conseguiu desenvolver, permanecendo somente na intenção. O produto artístico seria assim superior aos fenômenos naturais, já que os “aperfeiçoaria”. Capuana e Séailles, que seguiram por esta via da superioridade da criação artística, também influenciaram a formulação estética pirandelliana do humorismo. Para Capuana a arte, em sua superioridade, “purificava” a natureza, eliminando os absurdos e as misérias provocadas pelas ações cegas do acaso. E Séailles entendia a criação artística como seleção e concentração daquilo que era essencial: eliminando as coisas insignificantes e as idiossincrasias, se produzia um “pequeno mundo” coerente e unitário, “menos real, mas muito mais verdadeiro” do que o mundo natural. Estes são essencialmente os termos

174 Cf Claudio Vicentini, Pirandello il disagio del teatro, Venezia, Marsilio, 1993; Cf Romano Luperini,

em que Pirandello, no ensaio L’umorismo e em todos os outros escritos teóricos em torno a 1908, apresenta e descreve o processo artístico175.

Pirandello, no ensaio L’umorismo, não se cansa de repetir que a alma do artista é apenas o “terreno” sobre o qual cai o “embrião” da obra de arte. Embora se nutra dos humores que encontram no artista, seu nascimento e seu desenvolvimento devem ser “espontâneos”, e o artista deve respeitá-la, aceitá-la, sem jamais interferir. A iniciativa de todo o processo da criação artística seria assim de responsabilidade da própria obra de arte. Só assim a obra se realiza plenamente se constituindo como um mundo superior ao nosso mundo cotidiano: “utilizando as sugestões de Capuana, Goethe e Séailles, Pirandello traça a distinção capital entre o território da realidade material que ‘limita as coisas, os homens e suas ações, os limita e os deforma’, e o reino fantástico da arte”176. Mas ao assimilar o idealismo romântico, da obra de arte como forma orgânica, autônoma e perfeita, analisa Vicentini, Pirandello já estava construindo uma atormentada teoria da condição humana, capaz de explicar a crise de final de século gerada com a queda dos valores e dos ideais que até então orientavam a humanidade. A crítica corrosiva do pensamento positivista e racionalista, o conceito da relatividade de todas as coisas, detona um processo de dissolução sobre as antigas certezas morais e os processos psicológicos. Um mal-estar obviamente percebido por Pirandello:

Para mim a consciência moderna se dá na imagem de um sonho angustiado, atravessado por rápidas larvas, ora tristes ora ameaçadoras; de uma batalha noturna, de uma mistura desesperada, na qual se agitam por um momento e depois desaparecem, para que outras apareçam, mil bandeiras, na qual as partes adversárias se sentem confusas e ameaçadas, cada uma em luta por si, pela sua defesa, contra o amigo e o inimigo. É uma continua luta de vozes dissonantes, uma agitação contínua177.

A inquietação provocada pela crise dos valores, os sintomas que emergem a partir da dissolução da ordem e dos princípios considerados absolutos, não são meras conseqüências de um período de crise, observa Pirandello, elas revelam a real condição do ser humano: nossa incapacidade de nos abandonar a normas e a princípios absolutos. Como muito bem simplificado por Vicentini, para nosso autor, “a relatividade de todo

175 Cf Claudio Vicentini, Pirandello il disagio del teatro, Venezia, Marsilio, 1993. 176 Ibidem, p. 42.

conhecimento e opinião, junto ao desesperado e insuprimível desejo de certezas que nos impulsionam a nos refugiar em auto-enganos e ilusões, são elementos primários e inevitáveis à nossa vida”178. Por esta situação, inerente ao humano, dirá Pirandello, o conflito também será inevitável, pois sobre o homem e o mundo reina o princípio da desagregação, que não destrói apenas as nossas pretensões de estabilidade e de coerência, mas que penetra em nossa alma, em nossa vida interior, até destruir a unidade de toda consciência individual. É sobre esta visão catastrófica da condição humana que o mundo da arte, com obras perfeitas e harmônicas, parece a Pirandello um mundo totalmente apartado da realidade cotidiana. E isto significou um grande problema. Se para Goethe a estrutura profunda da realidade não era diferente daquela da arte, em ambas a atividade criativa se guiava pelo princípio de harmonia e perfeição, em Pirandello, o horizonte cultural era totalmente diferente. Com a crise de fim de século os ideais de harmonia e os princípios organicistas, próprios à cultura da certeza oitocentista, não encontram mais reflexo na vida cotidiana. O artista da crise deveria então reconhecer que o princípio fundamental da realidade em que ele vivia era o da desagregação, da desarmonia, dos contrastes. Um princípio oposto ao da criação artística sob o domínio romântico.

Uma obra de arte perfeita, harmônica e coerente não pode ser extraída de um mundo em plena crise, feito de conflitos e de rupturas. Esta arte seria, na verdade, uma falsificação que esconderia os elementos e as características essenciais a este mundo. Para realizar uma obra de arte perfeita, neste mundo em crise, analisa Pirandello no ensaio

L’umorismo, o artista deve remover toda a tensão e os contrastes profundos da vida interior. Imerso na confusão turbinosa e incoerente da vida cotidiana, o artista, guiado pelo princípio de harmonia, deve então descartar quase todos os elementos contrastantes, as vicissitudes, as desarmonias inerentes à vida cotidiana, para daí criar a obra de arte perfeita. O resultado, avalia Pirandello, seria um mundo arbitrário e artificial: um “mundo de papel”, estranho à realidade, um mundo fantasioso, onde tudo parece em plena harmonia, com seus elementos cuidadosamente escolhidos, mas privado de toda e qualquer “verdadeira realidade”. O que Pirandello percebe, escreve Vicentini, é o inevitável conflito entre os ideais estéticos radicados na sensibilidade oitocentista com a nova percepção da realidade inaugurada com

o novo século: uma realidade desagregada e contraditória. O próprio movimento das vanguardas, ao início do século XX, chegam para liquidar definitivamente com os conceitos da estética tradicional, colocando em cheque a própria noção de obra de arte. Mas, observa Vicentini, a posição de Pirandello era diversa aos movimentos de destruição das vanguardas, para ele não interessava liquidar com as categorias conceituais tradicionais; até porque ele não acreditava no futuro. O que importava era justamente a crise, o desconforto, a incerteza que nos assola nos períodos de transição: um lugar nenhum, que nos paralisa, que nos impede de voltar e que não nos oferece nenhum horizonte além da própria desagregação. Para nosso escritor, o mal-estar diante da ruína era o traço fundamental da condição humana. Era esta a angústia que a obra de arte deveria assimilar e expressar para ser de fato uma arte autêntica, radicada na realidade.

De frente a este problema, Pirandello realiza, no ensaio sobre o Humorismo, uma operação teórica extremamente sugestiva, única entre as poéticas literárias ao início do século. Mantém corajosamente a noção oitocentista da obra como forma orgânica e completa, coerente e perfeita. Mas tenta, contemporaneamente, introduzir no processo da criação estética o contraste, a ruptura, a desagregação, que são inerentes à vida real. Deste modo emergirá um modelo de obra de arte capaz de refletir em si, na própria regra de sua composição, o desconforto do homem no mundo da desagregação179.

Em resumo, o projeto estético de Pirandello, o humorismo, se baseia sobre o conceito de que a obra de arte se desenvolve a partir de um “embrião” originário que o autor acolhe em seu íntimo, evitando interferir, com as suas próprias intenções particulares, o seu crescimento. Por isso, o resultado do processo ainda será uma forma “completa” e “perfeita” (na idéia de superioridade do mundo da arte). Mas, salienta Vicentini, a obra de arte que Pirandello chama de “humorística” possui uma característica diferenciada: “nutridas com as qualidades e características de um artista consciente do desconforto da condição humana, envolvidas no jogo dos contrastes conduzido pela reflexão sobre os sentimentos e sobre as imagens, elas apresentam internamente os aspectos da desagregação, da multiplicidade, das contradições”180. O efeito sobre o leitor de uma obra com estas características será fundamental para compreender, um pouco mais à frente, o trabalho de composição da atriz Marta Abba; também fundamentado no contraste e na desagregação

179 Ibidem, p. 46. 180 Ibidem, p. 47.

das imagens e das emoções. Uma obra humorística, em seu turbilhão de imagens e emoções contrastantes, impede o abandono do leitor a um sentimento preciso e exclusivo que possa lhe guiar ao interno da obra. Ele quer rir, mas, explica Pirandello, alguma coisa na própria representação turva este mesmo riso. Esta multiplicidade de imagens e sentimentos contrastantes, acrescenta Vicentini, também se reflete na questão estilística da obra, tornando-a completamente refratária a “harmonia” apresentada por obras comuns. Aspectos triviais, particularidades comuns, irão conviver com momentos de insensatez, num jogo de imprevistos e sobressaltos, totalmente adverso ao mundo idealizado e simplificado da arte de um modo geral.

Carlo Salinari também compartilha a idéia de que o humorismo, muito mais do que uma definição conceitual de um aspecto da arte, se trata de uma individuação, em imagem, de um estado de ânimo181. De um estado de ânimo de um homem que vem a ser sempre “fuori di chiave”, “ao mesmo tempo violino e contrabaixo”. De um homem no qual cada pensamento é acompanhado de seu contrário, de um homem que não pode abandonar- se aos seus sentimentos (ou desejos) sem que subitamente algo (a consciência, a reflexão) o advirta, lhe causando um grande mal-estar. Segundo Pirandello, o humorista seria aquele indivíduo que, em função de uma amarga experiência da vida, passaria a observar em si mesmo, e em outras almas, as contradições e os pensamentos mais secretos, normalmente inconfessáveis, para em seguida, revelá-los um a um. O prazer e a dor do humorista é saber da existência das nossas misérias, ele se compadece diante daquele que se ilude em sua prepotência, se acreditando grande, e que nem mesmo desconfia que a ilusão que mantém nosso pequeno lume aceso pode, com um simples sopro, se apagar de repente e nos deixar como cegos, assim, perplexos diante da vida: “um dos maiores humoristas, sem o saber, foi Copérnico”, conclui Pirandello182.

Estamos ou não estamos num invisível piãozinho, para o qual um fio de sol serve de chicote, num grãozinho de areia enlouquecido, que gira e continua a girar, sem saber por que, sem chegar nunca a destinação, como se achasse muito divertido girar assim, para fazer-nos sentir ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e, no fim, fazer-nos morrer [...] nós, ainda hoje, acreditamos que a lua esteja no céu tão-só para dar-nos luz à noite, tal como o sol de dia, e as estrelas, somente para oferecer-nos um maravilhoso espetáculo. E com muita

181 Cf Carlo Salinari, Miti e coscienza del decadentismo italiano, Milano, Feltrinelli, 1989. 182 Luigi Pirandello, O humorismo, in Pirandello, do teatro no teatro, op. cit., p. 174.

freqüência esquecemos que somos átomos infinitesimais, passamos a respeitar- nos e admirar-nos reciprocamente e somos capazes de engalfinhar-nos por um pedacinho de terra ou de queixar-nos de certas coisas que, se estivéssemos compenetrados do que realmente somos, deveriam parecer-nos desprezíveis misérias183.

A ilusão faz com que nos vejamos não como somos, mas como queremos ser. Quanto mais se é fraco, prossegue Salinari, mais se sente a necessidade de enganar os outros simulando uma força, ou uma certeza, que não se tem. O humorista revela o jogo e ri complacente, pois sabe que todos nós, por amor-próprio, acreditamos e nos fazemos acreditar que somos diferentes do que realmente somos. Esta teatralidade, que pertence a todos nós, nasce da necessidade de criarmos uma identidade, um caráter, uma forma social e com ela fazer uma boa figura, adquirir um elevado conceito sobre nós mesmos, para assim nos orgulharmos de nossa própria dignidade. Buscamos parecer com um modelo social e cultural de uma determinada época histórica e, com isso, dominamos e aprisionamos certos impulsos e desejos não muito “aceitáveis”, que ficam lá, soterrados, embaixo de nossa máscara social, como o magma de um vulcão adormecido, mas em constante atividade. O humorista sabe que de uma hora para outra um sopro pode espantar as cinzas e revelar que embaixo de toda aquela matéria morta ainda borbulham aqueles desejos “proibidos” e repudiados pela consciência. Mas, por que todo este esforço para se parecer diferente daquilo que se é? Salinari observa (e esta pode ser uma boa resposta) que a hipocrisia se encontra na base do viver social porque é muito mais fácil, por meio de um código comum, conciliar tendências contrastantes. Mas o humorista não quer a harmonia e por isso se preocupa muito mais com a sombra do que com o corpo:

O artista comum cuida somente do corpo: o humorista cuida do corpo e da sombra, e talvez mais da sombra que do corpo; nota todos os gracejos desta sombra, como ela ora se alonga, ora se encolhe, quase a fazer o arremedo do corpo, que no entanto não a calcula e nem se preocupa com ela184.

“Sentir-se viver”. Esta é a grande diferença entre o herói da tragédia antiga e o herói da tragédia moderna que, descrente de uma verdade universal, suspeita de si mesmo e de seu próprio julgamento. O humorismo significa o abandono da possibilidade trágica

183 Luigi Pirandello, O falecido Mattia Pascal, cit, p. 13-14.

(mas não da experiência trágica185), pois o geral sempre será visto como grotesco ou ridículo, e, conseqüentemente, todo pressuposto de uma verdade absoluta ou de uma subjetividade capaz de recompor e unificar a realidade moderna, repleta de contradições e contrastes: “seja a crença em um conhecimento objetivo, seja a crença no poder de um sujeito em condição de dar forma e sentido ao mundo e à própria vida, encontravam sua justificação no antropocentrismo; derrubado este, entramos na época da modernidade ou do relativismo absoluto”186. Não é sem razão que Pirandello vai dizer que Copérnico foi o primeiro humorista. Com suas descobertas despertamos para uma nova consciência da condição humana sobre a Terra, e, é claro, as manifestações artísticas e culturais que viriam após o cientista não poderiam deixar de retratar em suas obras a consciência da impossibilidade (da obra de arte ou do artista) de fornecer um sentido justo e universal, válido para todos, que outrora se revelava na figura do herói e da famosa “moral da história”. O fim da história já não existe mais, porque não há mais nenhuma verdade para ser revelada, e o herói, nosso salvador e guia, está morto. E se em toda nossa relatividade ainda quisermos nos levar a sério, como os heróis de outrora, nos tornaremos ridículos.

O humorista não reconhece heróis; ou melhor, deixa que os outros os representem; ele, por seu turno, sabe o que é o mito e como se forma, o que é a história e como se forma: composições todas elas, mais ou menos ideais, e talvez tanto mais ideais quanto mais pretensões de realidade mostram; composições que ele se diverte decompondo, ainda que não se possa dizer que seja uma diversão agradável. O mundo, se não propriamente nu, ele o vê, por assim dizer em mangas de camisa: em mangas de camisa o rei, que vos causa tão bela impressão quando a gente o vê composto na majestade de um trono com o cetro e a coroa e o manto de púrpura e de arminho187.

185 “A sociedade é que se constitui, inevitavelmente, da soma dos seus relacionamentos, e quando estes são

perversamente errados, ou quando as pessoas não mais os compreendem, há uma complicada estrutura de culpa e ilusão que é vivenciada em cada setor da experiência, assim como nos mais óbvios pontos de confluência. E no entanto há uma etapa ainda além dessa, quando a condição é tão completa que é tida como normal, e a estrutura particular torna-se geral e passa a ser vista como a vida propriamente dita. Isso acontece, parece-me, de modo decisivo em Pirandello. Aqui o mundo dramático é um mundo de culpa e ilusão: a culpa entrelaçando-se e assumindo uma feição complexa em uma série de falsas relações pessoais: a ilusão elaborada e persistente, como um meio de evitar a culpa ou de viver com ela. E no entanto este não é um mundo peculiar: ele é deliberadamente generalizado. Relações sinceras e verdadeiras tornam-se impossíveis, e a única defesa contra o sofrimento, a única fonte de inocência, é a fantasia” (Cf Raymond Willians, Tragédia

moderna, São Paulo, Cosac & Naify, 2002, p. 192).

186 Romano Luperini, Pirandello, op. cit., p. 48.

187 Luigi Pirandello, O humorismo, in Pirandello, do teatro no teatro, op. cit., p. 175. Substitui a palavra

“O humorista não reconhece heróis”. Em Pirandello a tragédia não é mais possível porque a realidade não significa o absoluto, ela é apenas uma construção humana. Se ainda existe a “experiência do trágico” (inerente ao humano) é porque esta realidade, arbitrária, incongruente e normalmente opressora, será aceita como a vida propriamente dita. Afinal, diz Pirandello, ainda é necessário “iludirmos a nós mesmos com a criação espontânea de uma realidade”. Diante desta realidade, todos aqueles que optarem, diante do conflito, por uma solução humana, mas não conforme, serão massacrados pelo coro opressor. Assim, o personagem viverá o trágico como uma experiência humana íntima e profunda: a experiência desta realidade é trágica porque ela desfia o drama íntimo de um indivíduo (ou indivíduos) que tem como cenário um momento histórico social adverso. O indivíduo isolado é, na verdade um herói negativo, pois ainda que declare a inviabilidade do mundo burguês, reconhecendo toda a sua negatividade e mazela, ele não consegue ser portador de um novo ideal, ou de um plano alternativo para substituir a decadente sociedade que ele renega. Enquanto o herói trágico renunciou a si mesmo para exprimir o universal e o homem do renascimento (da fé cristã) renunciou ao universal para tornar-se indivíduo, o humorista vai desmontar o indivíduo, em sua pretensão de univocidade, e o representar em suas incongruências (o futuro deste personagem será a alienação, com a desapropriação de sua individualidade pelos outros). Não é sem motivo que Mattia termina dizendo que só por “distração” ele pôde escrever alguma coisa sobre ele mesmo.

No romance, o senhor Anselmo pergunta: o que aconteceria ao títere que representa Orestes se no momento de sua vingança, o céu de papel do teatrinho se rasgasse? - a resposta não poderia ser mais lúcida; o títere ficaria tão horrivelmente desconcertado com aquele buraco no céu de papel que seus braços cairiam. Ou seja, ele não conseguiria mais obedecer aos seus impulsos de vingança. O títere, que se pensava Orestes, se daria conta do que realmente é, ou seja, um títere, um boneco de madeira “recheado” com um nome (uma representação, um conceito). Percebida a cisão entre o corpo do títere (matéria) e o nome “Orestes” (significado) não resta nada mais do que uma alegoria vazia:

Felizes os títeres sobre cujas cabeças de pau o céu se conserva sem rasgões! Nada de perplexidades angustiosas, de escrúpulos, de tropeços, de sombras, de piedade: nada! E podem dedicar-se com empenho e tomar gosto à sua comédia e amar-se e ter-se a si mesmo em consideração e apreço, sem nunca sofrer de

vertigens ou tonteiras, pois, para suas estaturas e ações, àquele céu é um teto à altura 188.

O personagem pirandelliano só aparece quando se abre uma fratura entre uma