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2 PIRANDELLO: UM VIAJANTE SEM BAGAGEM

2.1 FILHO DO CAOS

... Eu sou filho do Caos; e não alegoricamente, mas de verdade, porque nasci em um campo que fica perto de um intrincado bosque, denominado, em forma dialetal, Càvusu, pelos habitantes de Girgenti.

Luigi Pirandello 120.

“Eu sou filho do Caos; e não alegoricamente”. Assim inicia Pirandello seu

Frammento d’autobiografia, ditado ao amigo Pio Spezi em 1893121. O escritor nasceu próximo a um intrincado bosque de oliveiras sarracenas e de amendoeiras no dia 18 de junho de 1867, e lá passou sua infância e adolescência. Mas, se tratando de Pirandello, não podemos deixar de procurar os sentidos que envolvem tal afirmação. Como sabemos, caos significa uma série de fenômenos que não podem ser previstos por leis matemáticas em função de suas múltiplas variáveis. Esta falta de previsibilidade determinaria o caos. E será justamente no L’umorismo que, alguns anos mais tarde, o dramaturgo irá dizer que se os fenômenos não estão sujeitos às leis matemáticas, sendo portanto variáveis, a alma também estará sujeita a contínuas metamorfoses e contradições. Para o dramaturgo a alma se comporta sempre de forma imprevisível. Continuando com a leitura do Frammento, que narra alguns episódios aparentemente triviais de sua jornada de estudante, se destaca uma única e inquietante constante: a idéia de fuga. Todo o percurso do estudante é marcado por uma necessidade ou por uma imposição que o faz sair, fugir, de onde ele está. O tema recorrente da fuga faz com que a afirmação “eu sou filho do Caos” adquira um sentido bem mais “alegórico” do que uma simples informação factual. Ser filho do caos indica com lúcida determinação o desejo de permanecer “fora” das tais leis de previsibilidade em uma contínua e ininterrupta metamorfose. Mas vejamos o que diz o fragmento autobiográfico:

Seu pai, Stefano Pirandello, proprietário de uma rica mina de enxofre, querendo que o filho se dedicasse aos negócios da família, o obriga a freqüentar uma escola técnica

120 Luigi Pirandello, Frammento d’autobiografia, in Saggi, Poesie, scritti varii Saggi, op. cit., p. 1281.

Disponível virtualmente no site http://www.classicitaliani.it/index070.htm, Progetto Luigi Pirandello, a cura di Giuseppe Bonghi.

121 O fragmento foi publicado pela primeira vez em Nuova Antologia, em 16 de junho de 1933. A nota de

rodapé do volume VI da coleção Mondadori, Saggi, Poesie, scritti varii , de 1965, informa que: apesar de Pirandello ter dado ao amigo Spezi a autorização para publicar o Frammento, ele não reconheceu de fato sua paternidade, colocando em dúvida alguns dados biográficos, particularmente a fuga para Como. Porém, há uma clara alusão a uma estadia em Como na poesia intitulada Convegno, contida na coletânea Fuori di

chiave. Já, Pio Spezi, procurado pelo editor Vecchio-Musti, afirma ter transcrito o texto com a máxima fidelidade às palavras de Pirandello.

em Girgenti122. Porém, todos aqueles números e regras, toda aquela rigidez matemática lhe repugnavam o espírito; se recorda Pirandello. Impaciente e ávido por liberdade, o jovem usa de um estratagema: apesar de ter passado nos exames de julho (o que para ele mesmo foi algo surpreendente), ele simula que precisa ficar em Girgenti por conta de um mau desempenho em aritmética. Com o dinheiro para pagar as hipotéticas lições de matemática, Pirandello cursou aulas de latim, já que almejava pelo menos ingressar no ginásio. Tudo corria bem, até que ele se viu traído por uma circunstância banal: na escola técnica a cada dois meses seu pai tinha que assinar uma caderneta escolástica, e no ginásio não existia nenhuma caderneta. Assim, Pirandello teve que usar de outros estratagemas para não se deixar apanhar. Porém, a situação chegou a tal ponto que, com medo de ser descoberto e julgado pelo seu pai, ele resolve fugir de casa, fugir de Girgenti.

Sabendo que um amigo da família iria partir para Como (Milão), Pirandello foi até ele e pediu para ir junto nesta viagem. Eles iriam até Palermo de trem, de lá pegariam um navio para Gênova e depois um outro trem os deixariam na Cidade de Como. Mas quando o tal senhor (Pirandello não revela seu nome) soube que se tratava de uma fuga, lhe negou ajuda. Entretanto, o jovem não desistiu de seus planos e partiu sozinho para Palermo no mesmo trem que o tal senhor. Depois, com um bom discurso, convenceu o homem que havia finalmente obtido a permissão paterna para a viagem. Tudo ia bem durante a viagem de navio, mas na metade do caminho, Pirandello sentiu um terrível remorso com tudo que havia feito à sua família, principalmente à sua mãe, Caterina Ricci Gramitto, com a qual mantinha uma forte relação de afeto. Então, resolveu contar tudo àquele senhor, que mal pisando em Gênova telegrafou imediatamente para sua família. Mas, surpreendentemente, seu pai lhe concedeu a permissão para freqüentar o curso ginasial.

Logo depois, em acordo com seus pais, Pirandello volta à Sicília e termina seus estudos secundários em Palermo e, em 1886, consegue ingressar na Faculdade de Filosofia e Letras. Sozinho, sem os seus, Pirandello sofre a distância e a solidão, mas resiste123.

122 Em 1927, por decreto do governo fascista, se restitui o nome mais antigo, Agrigento: Akragas dos gregos;

Agrigentum dos romanos.

123 Em 1886 Pirandello escreve para a sua mãe: “Estou feliz, a despeito do meu coração que, batida por batida,

parece que chama por vocês que estão longe” (Luigi Pirandello, Lettere giovanili da Palermo e da Roma,

Pouco depois se transfere para Roma, para continuar com os estudos universitários. Lá se desentende com o professor Occioni, docente de língua e literatura latina (também presidente da Faculdade de Letras e Filosofia de Roma). Diante do complicado fato, um outro professor, Ernesto Monaci, docente de filologia românica, lhe aconselha a terminar seus estudos na universidade de Bonn, na Alemanha. Mais uma fuga. Em 1891 se licencia em filologia românica com uma tese em alemão sobre o dialeto de Girgenti, Laute und

Lautentwickelung der Mundart von Girgenti (Suoni e sviluppi di suono della parlata di

Girgenti), permanecendo um pouco mais em Bonn como leitor de língua italiana. Ao final do Frammento Pirandello explica que a nostalgia e a saudade da família, da Sicília e de Roma o fizeram retornar a sua bela Itália, e completa: mesmo “sem saber, como realmente não sei, o que será de mim ou que coisa farei...”124.

Em suas análises sobre o escritor, Roberto Alonge entende as repetidas fugas de Pirandello (de Agrigento para Como, de Palermo para Roma, de Roma para Bonn e finalmente de Bonn para Roma125) como um meio para poder crescer e ampliar seu conhecimento lingüístico, cultural, e principalmente humano e existencial126. De outubro de 1889 até abril de 1891, Pirandello permaneceu em Bonn e pôde experimentar, como observado por Gramsci, aquela contradição entre o mundo siciliano e o mundo europeu. E foi nesta cidade que o escritor conheceu e se apaixonou pela jovem e extrovertida alemã Jenny Lander. Pirandello, desde 1887, era noivo de sua prima Lina (mesmo nome de sua irmã), quatro anos mais velha que ele, mas se mostrava arrependido pelo compromisso firmado127. Em 1890 acolhe com indisfarçável alegria o veredicto de um médico alemão que, diagnosticando problemas no seu coração, o desaconselha peremptoriamente ao matrimônio. No ano seguinte o escritor é obrigado a deixar definitivamente Bonn, ele

124 Luigi Pirandello, Frammento d’autobiografia, op. cit., p. 1283.

125 Anos depois, já com fama mundial, Pirandello retoma sua estratégia de “fuga” numa espécie de exílio

voluntário, primeiro em Berlim e depois em Paris. A problemática do exílio, suas causas e conseqüências, serão analisadas posteriormente, principalmente nos capítulos três e quatro da tese.

126 Roberto Alonge, Luigi Pirandello, il teatro del XX secolo, Roma-Bari, Laterza, 1997, p. 04.

127 Em Bonn, Pirandello não desejava mais retornar para a Sicília, e o declara expressamente numa carta de 08

de abril de 1890, “aquela terra de cabras” (Luigi Pirandello, Lettere da Bonn, 1889-1891, Roma, Bulzoni, p. 110). Depois, numa carta para Marta Abba, confirma a necessidade de se “escapar” da Sicília: “Qualquer um dos sicilianos que quiseram viver da arte, Verga, Capuana, eu, De Roberto, e tantos outros, tiveram que ir embora da Sicilia – fugir dela!” (Luigi Pirandello, lettere a Marta Abba, op. cit., p. 417, carta de 26 de abril de 1930).

retorna para a Itália, mas não se casa com sua prima Lina. Em uma carta para seu pai, em 11 de agosto, de 1891 escreve: “Eu não sou um homem que possa ou que deva se casar. Eu sinto que o contato com todas essas pequenas misérias cotidianas me mataria”128. De volta à pátria, Pirandello desfaz o noivado, se estabelece em Roma e, financiado pelo pai, começa a desenvolver sua própria vocação artística.

A percepção de uma estranheza em relação ao mundo sempre acompanhou Pirandello desde cedo. Em uma carta para a irmã Lina, em 31 de outubro de 1886, o escritor declara se sentir como “um viajante sem casa, um pássaro sem ninho”. Isolado em Roma, a arte se apresenta ao nosso jovem escritor como o único meio para expressar o seu sentimento de exclusão (ou de auto-exclusão) da vida. Se não poderia mais fugir de forma concreta, com a arte ele poderia sim continuar fugindo, isto é, olhando e escrevendo a vida ao invés de viver: se fugir significou ampliar suas experiências humanas, existenciais e seu conhecimento, como analisado por Alonge, fugir foi também um modo para Pirandello se refugiar para fora da vida, evitando todo e qualquer conflito ou embate. Em duas sucessivas cartas, datadas em dezembro de 1893, escreve:

Que coisa é o justo? Que coisa é o injusto? – Eu não encontrei neste labirinto nenhuma via de saída. E não poderia mesmo encontrar nada, porque lá não coloquei nada, nem um desejo, nem um afeto qualquer. Tudo me era indiferente, tudo me parecia vão e inútil – eu era como um espectador entediado e impaciente, [...]

Eu tinha me libertado completamente de todo vínculo; olhava os outros viver, indagava a vida como um complexo de absurdos e de contradições banais.129

Em um posterior escrito autobiográfico, curtíssimo, datado provavelmente entre 1912-1913, chamado Lettera Autobiografica, Pirandello nos dá algumas informações sobre sua arte e sobre sua rotina cotidiana; uma vida descrita como solitária e reclusa. Vivendo em Roma desde 1891, Pirandello foi introduzido no ambiente literário e jornalístico por Luigi Capuana que o encorajou a “experimentar a arte narrativa em prosa”, disto resultou seu primeiro romance, Marta Ajala (publicado em 1901 com o título L’esclusa). Em 1894 nosso escritor se casa em Girgenti com Maria Antonietta Portulano, e o casal se estabelece definitivamente em Roma. O escritor passa então a colaborar intensamente com jornais e

128 Luigi Pirandello, Lettere giovanili da Palermo e da Roma, 1886-1889, op. cit., p. 75.

129 Luigi Pirandello, Lettere della formazione 1891-1898, Roma, Bulzoni, 1996, p. 158 e 160,

revistas. Porém, com o alagamento repentino em 1903 da mina de enxofre em que seu pai havia investido todo o dinheiro da família (inclusive o dote da nora Antonietta), Pirandello se vê obrigado a sustentar com seu estipêndio mulher e filhos. E, em 1908, começa a trabalhar como professor no Instituto Superior de Magistério Feminino, atividade que lhe “pesa enormemente”, pois sua maior aspiração seria poder voltar ao Caos e lá se dedicar à narrativa (de fato abandonará a atividade didática em 1922). Na Lettera, Pirandello comenta que não freqüenta o teatro e que leva uma vida simples de homem comum, sem grandes aventuras ou emoções: “Como vê, na minha vida não tem nada que seja relevante: é toda íntima, no meu trabalho e nos meus pensamentos que... não são alegres”130. A amargura destas palavras se reflete na arte do escritor: o personagem pirandelliano é o símbolo incontestável de uma ruína, da falência da sociedade burguesa e de sua angustiante condição:

Eu penso que a vida é uma tristíssima bufonaria, já que sentimos - sem poder saber como, por que ou por quem - a necessidade de continuar nos enganando com a criação espontânea de uma realidade (uma para cada um e nunca a mesma para todos) a qual aos poucos se descobre vã e ilusória. Quem entender o jogo, não consegue mais se enganar, mas quem não consegue mais se enganar não pode mais sentir gosto ou prazer na vida. É assim mesmo. A minha arte é plena de amarga compaixão por todos aqueles que se enganam, mas não poderia deixar de ser seguida pela irrisão feroz do destino, que condena o homem ao engano. Esta é, em sucinto, a razão da amargura da minha arte, e também da minha vida.131

A tensão entre a compaixão de saber que cada um de nós necessita criar para si uma realidade, e a consciência lúcida de que esta, pouco a pouco, se revela vã e ilusória é uma postura genuinamente humorística. Topos que já se configura, de forma embrionária, no Frammento d’autobiografia de 1893. Percebe-se no discurso do Frammento que o “filho do Caos” já se atormentava com a idéia de um “destino caprichoso” que improvisadamente destrói nossa realidade, revelando-a ilusória. Voltar para a Itália sem saber, “como realmente não sei, o que será de mim, ou que coisa farei...” são as palavras finais de um Pirandello sufocado por uma falta de horizonte ou objetivo que o conduza por um caminho alternativo para fora da sociedade em que ele vivia. Como escapar, fugir de uma sociedade que se apresenta hostil aos nossos olhos, e da qual conhecemos quase todas as mazelas, sem

130 Luigi Pirandello, Lettera Autobiografica, in Saggi, poesie, scritti varii, op. cit., p. 1286. 131 Idem.

nem mesmo ter um projeto eficiente de evasão? Sua dúvida e angustia por não saber o que fazer dele mesmo é o nó capital de sua futura dramaturgia, (aquela fundamentalmente burguesa e que corresponde ao segundo período de sua produção, de 1917-1924): a oposição entre um coro, um corpo social, e um indivíduo isolado, que também faz parte do mundo negado, mas que dele se destaca por uma escolha auto-excludente132. Para entendermos sua evolução e transformação dramatúrgica, do período dialetal à fase burguesa e por fim ao que denominamos o teatro para Marta Abba, é necessário acompanharmos o personagem humorístico em seu comportamento, em seus procedimentos, desde o início de sua formação.

Em seu primeiro romance L’esclusa de 1893 (mesmo ano do Frammento

d’autobiografia133), o escritor já nos dá uma viva imagem desta tensão humorística (realidade X ilusão). No romance, Marta Ajala se torna vítima e conseqüência de uma “marca trágica” que os Pentagoras acreditam possuir: “Está cansado de saber que nós os Pentagoras, não temos sorte com mulher... com casamento!”; diz Antonio Pentagora ao filho Rocco, marido de Marta e, com uns sinais de chifre na testa, acrescenta: “Isso é o nosso emblema de família! Não há por onde fugir. [...] É destino! Cada um tem que carregar a sua cruz!”134. No seu entender todos os Pentagoras já vinham ao mundo com esta herança: ser traído pela esposa. Sem possibilidade de remissão, e diante de uma sorte tão ingrata que lhes coloca “chifres na testa”, aos Pentagoras só restam duas opções: “exporem- se ao ódio ou ao ridículo”. Ao final do romance, a protagonista, que não havia traído anteriormente, após tanto sofrer e de tanto ser humilhada, se entrega aos braços do amante que sem ser já tinha sido. Marta Ajala, que se deixou sucumbir, engravida de Gregorio Alvignani, seu suposto amante, e confirma assim a “marca trágica” dos Pentagoras. A grande virada é o perdão final de seu marido Rocco; diz Marta acusando o marido:

- “... Que sou eu agora? Está me vendo? Que sou?... Sou aquilo que toda a gente, por sua causa, acreditou que eu era, acredita que sou e acreditará que sempre serei, mesmo que eu aceitasse o seu arrependimento. É tarde demais, compreende? Estou perdida! [...]

132 Cf Mario Baratto, Le théâtre de Pirandello, Paris, Debresse, 1957.

133 Em Monte Cavo escreveu seu primeiro romance, L’esclusa, publicado em 1901 em La Tribuna. 134 Luigi Pirandello, A excluída, São Paulo, Germinal, s/d, p. 14-15.

- “Com que então é verdade! E eu que cheguei a pensar que... Eu que vim até aqui, que vim pedir-lhe perdão... Mas, agora, confesse, antes também, não foi mesmo? Diga, fale, com ele?

“- Não! Pois então não compreende que você, sim, você mesmo, com as suas mãos, e todos, todos com você, me reduziram ao ponto de aceitar ajuda dele? Que você e todos os mais fizeram com que eu só por meio dele tivesse a minha vida, dele só recebesse, através da minha amargura e de tantas injustiças, uma palavra de conforto, um ato de justiça? Ah! Não, você não pode me jogar nada nacara, nada, entende, absolutamente nada!

[...]

- “... Eu perdôo... eu perdôo...”135

O romance L’esclusa inicia quando Rocco Pentagora surpreende sua mulher, Marta Ajala, lendo uma carta de Gregorio Alvignani, um admirador secreto. É a partir desta descoberta, uma mera casualidade, que se desenvolve a história da excluída. Como observado por Carlo Salinari no livro Miti e coscienza del decadentismo italiano, de 1962 (1. ed.), Pirandello já introduz neste seu primeiro romance o fermento para a dissolução do naturalismo dominante, de Capuana e de Verga. Embora o pai de Rocco (emblema de tudo que há de negativo e institucionalizado na sociedade) acredite numa “marca trágica”, o que derruba a personagem principal é um mero fato casual: a leitura de uma carta. Com esta estratégia, o escritor se opõe ao pensamento verista, e determinista, de que existe uma realidade lógica, um movimento da sociedade em seu conjunto, determinante da sorte de cada indivíduo. Não será a realidade social, objetiva e científica, que determinará a sorte do personagem, Marta será derrotada simplesmente por um fato traiçoeiro, por um ardil do acaso: a descoberta por seu marido das cartas de seu admirador secreto. Agora, a interpretação deste fato isolado, por seu marido, por sua família e pela sociedade, é o que “realiza”, concretiza a tal “marca trágica”, precipitando assim todos os acontecimentos posteriores. Muitos anos depois da escritura do romance, em 1931, Pirandello faz uma comparação entra a arte do humorista e a arte de Verga:

O mundo não se organiza por ele mesmo numa realidade, se nós não lhe dermos uma. E assim, como fomos nós que a produzimos, é natural que se explique que ela não pode ser diferente. Precisaria duvidar de nós mesmos, da realidade do mundo posta por nós. Para sua sorte Verga não suspeita disso. É exatamente por isso que ele não é e nem pode ser, no sentido verdadeiro e próprio da palavra, um humorista136.

135 Ibidem, p. 246.

136 Luigi Pirandello, Discorso alla Reale Accademia d’Italia, 1931. Cf Luigi Pirandello, Saggi, poesie, scritti

Em Verga, a partir da novela Nedda: bozzetto siciliano de 1874137, os estratos pequeno-burgueses e populares da província italiana (Sicília) são representados a partir de um olhar determinista, isto é, os esquecidos pela sorte e os oprimidos são dissecados em seus aspectos históricos e sociais e, não importando o que façam, sempre serão derrotados por sua herança social. Assim, a figura feminina em Verga irá enfrentar toda a sorte de preconceitos, de honra e de pudor, impostos pela sociedade, e sempre será vencida pelo ambiente social. Os personagens de sua fase verista já se encontram de antemão vencidos, porque, antes mesmo de lutar, eles já foram derrotados pelo determinismo social e histórico. Em Verga, e nos veristas de um modo geral, os excluídos e os oprimidos possuem uma marca, um sinal: ter cabelos vermelhos, ser órfão, ser acometido por uma insatisfação sexual, a desgraça econômica, e por ai vai. Já o humorista, que não acredita em uma única verdade, vê a realidade como uma construção humana: a “verdade” do mundo, que é uma ilusão, muda conforme o tempo, o lugar e a ocasião. O que é o justo? O que é o falso? Não há uma resposta definitiva para estas perguntas. Por isso o humorista não pode levar tão a sério a vida que gira ao seu redor (nem a dele mesmo). Ainda que o humorista perceba a derrota como inevitável, já que não consegue entrever uma via de saída que não seja o auto- isolamento, ele, com sua amarga lucidez, tentará demolir os alicerces da sociedade, sacudindo seus contratos sociais.

A traição amorosa, preferencialmente feminina138, é um tema comum tanto para os romances veristas italianos, quanto para os dramas naturalistas ao final do século XIX139.

137 Esta novela representou a virada verista de Giovanni Verga. O escritor ao descobrir a literatura francesa

moderna – Honoré de Balzac, Émile Zola, Gustave Flaubert, Maupassant, etc. – abandona seus folhetins de fundo histórico, os temas sentimentais e os ambientes refinados da aristocracia e da burguesia e abraça definitivamente o Naturalismo, cujos pressupostos estéticos visavam uma representação direta, objetiva