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Carta à Uber: cuidados para levar crianças com deficiência*

Thais Valim

Cara Uber,

Usualmente, utilizo os serviços da Uber em momentos específicos de meu deslocamento: quando estou em outra cidade ou com o horário apertado para chegar a determinado local. No geral, tive boas experiências com a empresa: motoristas solícitos, pontuais, bons preços. Como uma estudante de pós-graduação de 26 anos e sem filhos ou outras crianças próximas que comigo circulem pela cidade, não tenho do que recla-mar. No entanto, desde a primeira vez que peguei um Uber acompanhada de crianças, problemas surgiram.

Na primeira vez estava em Recife, em uma reunião realizada na Secretaria de Apoio à Pessoa com Deficiên-cia (SEAD). Estava lá com mais duas colegas, ambas antropólogas e pesquisadoras. Juntas, participamos de um projeto de pesquisa que vem, desde 2016, acompa-nhando os impactos da epidemia do Zika vírus sobre a vida e o cotidiano de crianças diagnosticadas com o que se convencionou chamar de Síndrome Congênita Associada à Infecção pelo Vírus Zika (SCAIVZ).  Como * Tentamos enviar esta carta diretamente à Uber, por e-mail, mensa-gem no Facebook ou até mesmo pelo aplicativo. Mas como não con-seguimos nenhum retorno, optamos por publicar esta carta aberta, e esperamos que o conteúdo chegue à empresa.

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Micro-histórias para pensar macropolíticas

um dos programas oferecidos pela SEAD contempla as crianças nascidas com a síndrome, estávamos lá para encontrar algumas das mulheres que têm participado de nossas investigações. 

Era perto do meio-dia quando a reunião acabou, e sobre as ruas da cidade fervia o trânsito intenso da capital pernambucana. Eu e minha colega de pes-quisa tínhamos que atravessar para outro ponto da cidade e decidimos pedir um carro da Uber. Assim que finalizamos o pedido, o motorista que aceitou a viagem nos mandou uma mensagem perguntando se havia criança conosco. Com a resposta negativa, ele confirmou que nos buscaria.  

Quando entramos no carro, então, decidi sanar a minha curiosidade, e perguntei o porquê do ques-tionamento. Como resposta, obtive a explicação de que a fiscalização está mais rígida com relação aos as-sentos e equipamentos de retenção específicos para bebês e crianças. Como a multa é alta (R$ 293,47), os motoristas, em geral, estavam mais apreensivos com o deslocamento sem as cadeirinhas. Perguntei então se ele perdia muitas corridas por conta disso, ao que ele me respondeu afirmativamente que sim, perdia muitas corridas.

Ponderei se não seria interessante equipar o carro, transitar com a cadeirinha à disposição, e ele me respondeu que não existe apenas um tipo de ca-deira, e, sim, três, que variam de acordo com a idade e o tamanho da criança. Não caberia tudo no carro, era como ele resolvia as questões que eu e minha colega íamos colocando. Ele nos deixou em nosso destino, e seguimos com a agenda programada para a tarde.

Alguns dias depois veio a segunda experiência com crianças. Chamamos o carro, que nada nos per-guntou antes de confirmar a corrida. Eu estava no hall

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Carta à Uber de entrada de um prédio com duas crianças, enquan-to aguardávamos a mãe delas descer com seu outro filho, diagnosticado com a SCAIVZ. Quando o mo-torista chegou, fui até o carro com as duas crianças pedir para que ele esperasse mais alguns instantes que logo todos os passageiros estariam lá. Ele sorriu e acenou afirmativamente. Voltei ao saguão principal para que as crianças não ficassem muito próximas da rua, e, quando retornamos ao carro, o motorista havia desaparecido, dado no pé sem qualquer explicação. Lembrei que talvez ele não tivesse uma cadeirinha, que dirá três. A mãe dos meninos tentou me acalmar dizendo para não me preocupar porque aquilo acon-tecia recorrentemente.

Trouxe esses dois relatos como uma forma de chamar atenção para o que enxergo como uma falta de adequação da empresa às necessidades de seus usuários. Procurei no site da Uber se havia alguma orientação com relação a bebês e crianças e tudo o que encontrei foi uma postagem que imputava ao usuário a responsabilidade de averiguar com o motorista se ele tinha uma cadeirinha, além de sugerir também que os responsáveis pela criança deveriam ter esses assentos eles mesmos, orientação muito pouco prática quando somada à lista de apetrechos que uma pessoa carre-ga consigo normalmente para cuidar de uma criança, como mamadeiras, fraldas, muda de roupa. No caso de crianças com deficiência ou “especiais”, a lista vai só aumentando: seringas, remédios, órteses, extensoras. Como exigir dessas mulheres que, para conseguirem usar táxi e Uber pela cidade, ainda levem uma cadeiri-nha a tiracolo?

Entendo que a empresa não pode obrigar seus motoristas a equiparem seus carros com os assentos específicos, mas enxergo algumas mudanças que

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poderiam beneficiar e melhorar a experiência de crianças, bebês e seus cuidadores com a empresa. A primeira delas seria a de incluir no próprio aplicativo da Uber a opção de solicitar um carro com cadeirinha. Assim, o usuário não precisa fazer malabares nas men-sagens privadas com os motoristas, como ocorrido no primeiro relato que trouxe, nem passar pelo cons-trangimento de ser recusado ou, pior ainda, deixado à deriva urbana, como no caso do segundo relato; e cabe também à empresa oferecer incentivos aos mo-toristas para que esse tipo de inclusão aconteça.

Uma outra sugestão seria a de atualizar as op-ções de cancelamento do aplicativo, adicionando uma alternativa que informe sobre cancelamentos decorrentes dessa falta de adaptação do carro ou da empresa às necessidades especiais do usuário. Essa seria uma atualização interessante não só por facili-tar a comunicação do usuário com a empresa como também permitiria à própria Uber mapear essas de-mandas específicas a partir do aplicativo e tomar providências adequadas com relação a elas.

Bebês, crianças e seus cuidadores também são atores da vida social, e, caso a Uber concorde com essa última afirmação, seria interessante então repensar como seus serviços têm sido fornecidos a essa parcela da população.

Agradeço a atenção e me coloco à disposição para mais informações.

Microcefalia e preconceito: uma