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Jeniffer Cardoso Ferreira

Era primavera de 2016 em um bairro da periferia de Re-cife, uma das maiores capitais do Nordeste. O trânsito funcionava como em outras cidades brasileiras, ora o fluxo estava no sentido bairro, ora centro da cidade, a depender do horário do dia. Era um bairro comum, com ruas estreitas e muitas curvas. Na paisagem, havia moradias sem acabamento nos muros, ferros de vigas à mostra, casas em reforma, roupas secando no varal, “escadarias pesadas” e estreitas, vizinhança na calça-da, muitas bicicletas, plantas e grades, muitas grades, casas que ficavam em meio aos morros verdes, vista que se tinha em um dos horizontes.

Ali morava Dandara, mãe de três. O caçula, Mi-guel, chorava com frequência pelas altas temperaturas da cidade nordestina com seu um ano e dois meses de idade. O diagnóstico da micro de Miguel não veio das ultrassonografias no período de pré-natal, estas mostravam a cabeça com perímetro menor do que o esperado (microcefalia), mas não se sabia diagnosti-car o quadro naquele primeiro momento, era o início da epidemia do vírus Zika no Brasil, em 2015, e não se tinha informações para dar o diagnóstico com o bebê ainda na barriga. Assim, Miguel foi diagnosticado

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Micro-histórias para pensar macropolíticas

ao nascer, pelo seu visível micro encéfalo e outras características que mais tarde vieram a compor o quadro da Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCVZ).

Dandara contou que alguns dias após o nasci-mento de Miguel, enquanto ainda estava no hospital, recebeu uma ligação de sua mãe e, ao atender, come-çou a chorar por antecipação, antecipando a rotina que viveria. Sua mãe dizia para se acalmar, pois todos amariam o bebê, pensava que o choro em questão era por causa da deficiência do seu neto, mas não. Dan-dara odiava hospitais, naquele momento percebia as possíveis necessidades do bebê, viu-se no futuro, com agendas cheias de compromissos, cercada pelo cons-tante cuidado com a saúde de seu filho em hospitais e clínicas. Ressaltou para a mãe: o problema não era seu filho ser especial, eram as implicações que isso traria, eram os novos compromissos que o “ser espe-cial” demandaria.

Uma vez, Dandara foi à policlínica onde o caçula realizaria as sessões de fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia e lá lhe conseguiram uma psicóloga. A clínica já havia sugerido que Dandara fizesse acom-panhamento psicológico, tendo em vista tudo que ela já vivenciou, violência doméstica, complicações ao longo de toda a gravidez de Miguel, além das compli-cações que ter um filho com micro geraram naquele contexto. No entanto, a mãe se negou, dizendo que não queria “perder tempo” com a consulta psicológica. Dizia que conversava com todo mundo, que sempre que lhe perguntavam sobre seu filho ela falava, fala-va e falafala-va. Não precisafala-va se sentar apenas para isso. Profissionais da clínica sugeriram que ela estava meio doidinha e que precisava de ajuda, assim interpretou Dandara. Mas não sentia a necessidade de acompa-nhamento. Sua terapia era nas ruas, que, por vezes,

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Distâncias e presenças era também educação pública gratuita, era direto da fonte que experimentava viver com uma criança com micro para o civil questionador e curioso do cotidiano nos ônibus, nas paradas, no espaço público.

A constante luta dessas mães pelos direitos de suas crianças levou-as a se aproximarem das Organi-zações não Governamentais (ONG), onde conseguiam doações e capacitações enquanto mães, por exemplo, mas também tinham compromissos com a organi-zação, participando eventualmente de filmagens, entrevistas e grupos de apoio, o que intensificava ainda mais a rotina cansativa. Com Dandara não era diferente, o que ela fazia desde o nascimento de Mi-guel era procurar o que “conseguir”. Conseguir as consultas na rede pública, conseguir as várias terapias que seu filho necessitava, conseguir o passe livre para se locomover pela cidade entre clínicas, hospitais e ONGs, conseguir doações de leites e fraldas descartá-veis, conseguir óculos e aparelhos para a melhoria do físico de Miguel, havia muito o que conseguir.

E Dandara conseguia de fato. Nessa primavera de 2016, Miguel tinha uma rotina de consultas e te-rapias em que sempre estava na companhia de sua mãe. Era ela quem sempre o levava, sem familiares que a auxiliasse. Dandara residia depois de longas e altas escadarias, na altura que o cansaço já estava pre-sente para aqueles que sobem livremente. Imagina com uma criança nos braços?! Miguel tinha 9 quilos, era no mínimo cansativo para ele e para sua mãe, mas o sair de casa para a rotina dos cuidados com a saúde não se resumia apenas a descer e subir escadas nos braços de sua mãe, contava também com o entrar nos ônibus para ir até as instituições. O transporte público, por si só, era puro cansaço. Os motoristas encrenca-vam com a presença do carrinho: ora um motorista

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abria só a porta da frente; ora só podia entrar com o carrinho pela porta de trás; às vezes, achavam que Dandara não iria pagar a passagem, quando na verda-de estava apenas garantindo a segurança do seu filho, colocando os cintos e amarrando o carrinho para, então, depois, entrar novamente pela porta da frente; ora não os deixava entrar por porta alguma.

Na rotina dos ônibus, muito acontecia, a mãe lidava com olhares de estranhamento daqueles que ali circulavam, comentavam entre si percepções ofensivas sobre a imagem visual que tinham de Mi-guel, do tamanho de sua cabeça. Certa vez, Miguel foi chamado de “monstro” pelo motorista de um ônibus. Enfrentar os preconceitos fazia parte das dificuldades enfrentadas pela mãe no dia a dia, ao sair de casa e se fazer presente nos espaços públicos. Dandara e Mi-guel dependiam do transporte público, não tinham carro para se deslocarem. Havia degraus das esca-darias para irem da casa à parada de ônibus, havia motoristas e passageiros arrogantes, havia quilôme-tros no percurso até o centro da cidade onde ficavam as ONGs, os hospitais e as clínicas que faziam parte da vida de cuidados com Miguel.

A rotina de Dandara e Miguel era rodeada por distâncias físicas, geográficas, de classe, de gênero, capacitista e outras mais. Essas distâncias eram barrei-ras pequenas que iam se somando dia após dia, e que também iam sendo quebradas à medida que Dan-dara seguia com seu filho nos braços, no carrinho de bebê pelas ruas esburacadas de Recife, à medida que fazia sua própria terapia pelos espaços que compar-tilhava com outros, contando da condição de Miguel a civis que interpelavam e nada sabiam dos cuida-dos com crianças de micro, à medida que usava cuida-dos seus direitos para locomoção, utilizando-se dos

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Distâncias e presenças ços públicos recifenses; Dandara e Miguel iam sendo vistos e observados na rotina daquela vizinhança, no bairro e na cidade, iam se fazendo presentes junto a outras mães de micro. A presença afastava aos poucos as distâncias e os estranhamentos inconvenientes do cotidiano, iam se fazendo comuns aqueles espaços, e, assim, seguiram com a rotina de cuidados.

“Ele não tem nada não, eu que