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Cuidar cuidando, descobrir e aprender com crianças com

deficiência

Monique Batista

Existiria um dentro assim como um fora. Fora e dentro de nós. Esse era um dos dilemas que me pareceu abor-dar a experiência de crianças com deficiências e que fora apresentado por Lúcia, que praticava o ofício de fisioterapeuta em Recife/PE, diariamente atendendo crianças com deficiências. Além de fisioterapeuta, era mãe de um menino com pouco menos de dez anos de idade e de uma menininha que falecera em decorrên-cia de uma doença rara que a acometeu durante os primeiros anos de vida. Entre as atividades elaboradas num dia de trabalho, ao mesmo tempo que manusea-va uma criança com a Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCVZ) a partir de todo um saber técnico-cien-tífico, com entusiasmo, defendia ainda a necessidade e o direito dessas crianças se desenvolverem dentro de relações com o mundo. Com efeito, descrevendo como crianças com deficiências frequentemente são estimadas como menos capazes de aprender ou in-teragir para além da esfera da casa e destacando a necessidade de romper com esta perspectiva.

Em diálogo com a mãe de Bernardo, uma crian-ça descrita como bastante “reparadora” – atenta aos movimentos daqueles e daquilo que a cercava –, a

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Cuidar cuidando, descobrir e aprender... mãe comunicou à Lúcia que havia conquistado uma vaga numa creche nas proximidades do lar para o filho, mas que aguardava a chegada de uma monito-ra pamonito-ra acompanhá-lo. Ele emonito-ra um dentre os muitos bebês nascidos com a síndrome nas periferias do Nor-deste a partir de 2015/16, momento em que o Brasil enfrentou a epidemia do Zika vírus, associado a um novo vírus transmitido pelo Aedes aegypti – o nosso popular e multifacetado mosquito da dengue. Perante a notícia, Lúcia enalteceu a iniciativa da mulher em buscar uma creche para o filho, dizendo: “isso mesmo, tem que ir pra escola. Lá, vai ver outras crianças. Isso é muito importante pra eles, pra desenvolverem”. Em outro momento, Lúcia explicou que no próprio espaço de trabalho é importante que as crianças sejam es-timuladas umas pelas outras, aprendendo e criando desafios entre elas. Uma criança que ainda não cami-nha necessitaria assim ser estimulada por outras que já se aventuravam a conquistar as primeiras passadas, ou a se tornarem mais reparadoras e atentas ao meio externo na presença de Bernardo.

Por outro lado, enfatizou que igualmente é rele-vante que as crianças que não apresentam deficiências diagnosticadas convivam e aprendam com aquelas que apresentam: “é importante socializar com outras crianças. É importante elas conviverem com uma crian-ça especial, aprendam a cuidar. É cuidar cuidando, aprendendo a não malvadar”. E completa:

Tem muita mãe com medo de mandar pra cre-che. Mas a criança vai se adaptar no começo. A gente ensina a professora a usar a sonda. No começo pode parecer novo, mas ela consegue fazer direitinho. Ninguém é insubstituível. Eu, como mãe, posso morrer, preciso considerar quem vai cuidar da minha filha se eu faltar.

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Elucida esse pensamento através de fragmen-tos da própria experiência ao lado da filha, de uma ocasião na qual a menina estava aos cuidados da avó e de como esta senhora ficou aflita e entrou numa crise de choro diante da recusa da criança em ser alimentada, atraindo a atenção dos vizinhos. Logo depois, ao retornar para casa da mãe após uma pas-sada no mercado e com sacolas entre as mãos, Lúcia de longe avistou uma movimentação incomum na frente da casa, em disparada correu com o temor de que o pior tivesse acontecido com a filha, enquanto as compras se espalhavam pelo chão.

Diante do posicionamento de Lúcia, antes de mais nada, fica marcado o comprometimento com a construção de um horizonte menos hostil em relação às crianças com deficiências, em que elas possam ha-bitar além do espaço doméstico e das instituições de saúde, amadurecendo habilidades que muitas vezes lhe são negadas. Crianças com a síndrome do Zika não só podem aprender como também podem ensinar e estimular as demais. Elas não precisam estar fechadas dentro de um diagnóstico, nem dentro de casa, nem em si mesmas. Igualmente importante na fala dessa fisioterapeuta é reestabelecer a distribuição do cuidado, em que o cuidado se aprende cuidando, por se tratar, justamente, de uma ação relacional, recíproca e mútua. Entretanto, como proceder se não há monito-res que possam atendê-las na sala de aula? Ou mesmo diante dos muitos casos nos quais essas mães e esses filhos são humilhados dentro de espaços coletivos, em que a humanidade deles reiteradamente é negada? Talvez o medo comum entre as mulheres de man-darem seus filhos tão pequenos para a creche reúna uma apreensão de que as crianças estarão expostas às malvadezas de outras crianças e de adultos ignorantes

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Cuidar cuidando, descobrir e aprender... das necessidades e potencialidades de pessoas com deficiências. O medo é de tudo isso acontecer, como experimentam todos os dias, mas dessa vez distante do olhar protetor delas. Ou da desconfiança de que serão elas quem empreenderão os maiores esforços de sensibilização ao ensinarem sobre a existência da dife-rença e da deficiência em uma unidade escolar. Não obstante, mantém-se potente acompanhar a proposta de Lúcia a respeito de como a mudança perpassa por uma reescrita das relações de cuidado, demandando, então, uma redistribuição dessas tarefas e preocupa-ções entre um número maior de atores que estejam interessados em recompor um pouco da realidade so-cial que habitamos.

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