• Nenhum resultado encontrado

CARTOGRAFAR O PODER E COMPREENDER SEUS DIFERENTES FLUXOS: CONDIÇÃO NECESSÁRIA À ANÁLISE

RELAÇÕES ENTRE AS MULHERES/MÃES E O ESTADO NO CONTEXTO DE VIOLÊNCIA

3.1 CARTOGRAFAR O PODER E COMPREENDER SEUS DIFERENTES FLUXOS: CONDIÇÃO NECESSÁRIA À ANÁLISE

O estudo sobre as mulheres vitimadas pela violência que atinge os filhos jovens e adolescentes, naturalmente irá transitar por um difícil caminho, um caminho quase intransitável: os fluxos da dor, da saudade, dos vazios, da indignação, revolta, adoecimentos, que constroem a cartografia dos sentimentos das mulheres/mães. Deverá, todavia, este estudo, comprometer-se em mapear, nesta trama violenta, genocida, que produz a negação do direito à vida, os fluxos de poder, os fragmentos, as potências, localizadas em corpos individuais ou coletivos, que produzem, neste cenário, novas performances. A análise de performances, narrativas, tanto dos agentes policiais como das mulheres/mães, intenta compreender aspectos das relações. Para tanto, será necessário tentar desnaturalizar percepções sobre a subalternização de sujeitos, buscando flagrar outras formas de poder, das quais lançam mão também os(as) sujeitos(as) vítimas da violência institucional, seja a luta ou o silêncio.

Certa vez, num diálogo com uma professora de uma universidade sobre a pesquisa que aqui apresento, ela me narrava que durante uma experiência de curso de extensão numa comunidade, uma mulher, moradora, ao ser

entrevistada, dizia que “perdeu o filho para o tráfico”. Curiosa, perguntei se o filho havia sido assassinado por traficantes, a professora respondeu que ele foi vitimado por policiais. Complementou, entretanto, que a mãe afirmava na entrevista que o filho não tinha nenhum envolvimento com o tráfico, descrevendo características do filho. Ela explicava que a mulher dizia com ironia que “perdera o filho para o tráfico” reproduzindo o discurso montado a partir da narrativa dos policiais. Esta história, surgida numa conversa sem propósito de pesquisa ou investigação, passou a ocupar, durante algum tempo, a centralidade das minhas reflexões. A morte de jovens negros e pobres, em circunstâncias de violência letal, é uma produção discursiva. Neste sentido os discursos lançam mão de essencializações, os sentidos associados à marginalidade, para justificar-se e sustentar-se, realimentando a realidade. Ao captar o discurso dominante sobre a juventude pobre, a mulher o utiliza com ironia, quem sabe, uma estratégia, no quase anonimato, de devolver à instituição polícia, ou ao Estado, o veneno do estereótipo. Seria leviano fazer interpretações desta fala, tento em vista que não se trata de uma interlocutora da pesquisa. Penso, porém, que o exemplo, inspira as reflexões sobre as relações de poder e sobre os discursos que definiram poder.

Ainda de acordo com Diniz e Oliveira (2013):

Fazer genealogia é desconstruir o discurso essencialista de enunciados que aparecem como grandes descobertas, e mostrar que estes não passam de invenções que nasceram de discursos repetitivos sobre elas. Sendo assim, a pesquisa genealógica não parte de um objeto fixo no presente para ir ao passado na tentativa de explicar a origem de tal objeto. Mas mapeará as investigações de fragmentos e omissões que se tratando da história tradicional são deixados de fora (p. 145).

A discussão sobre o direito à vida e o direito à morte é tecida a partir de um conjunto de crenças, significados, valores que, tentam se reproduzir e se tornar atemporais. Para Foucault (1979) “Somos submetidos pelo poder a uma produção de verdades e só podemos exercê-lo através da produção de verdade.” (p. 180).

É certo que, se o todo poder sobre a vida e a morte cabe ao soberano e o súdito apresenta-se como elemento passivo, elemento neutro, é imperativo buscar entender os mecanismos que asseguram esta assimetria. “Não há, pois, simetria real nesse direito de vida e de morte. Não é o direito de fazer morrer ou de fazer viver. Não é tampouco o direito de deixar viver e de deixar morrer. É o direito de fazer morrer ou de deixar viver. O que, é claro, introduz uma

dissimetria flagrante.” (FOUCAULT, 1999, p. 287). A Foucault interessou investigar e compreender os mecanismos, as técnicas, as tecnologias de poder que permitiam e asseguravam o controle dos corpos. Esta preciosa análise permitiu a compreensão da amplitude e das sutilezas dos diversos métodos e técnicas disciplinares exercidas nos diferentes espaços de relações, que asseguravam a vigilância, os treinamentos, as hierarquias, etc.25 A atenção à forma como as técnicas afetam a coletividade e a multiplicidade de corpos, aos corpos vivos, por meio de procedimentos massificantes dirigidos ao homem espécie, a biopolítica,26 abriu as fronteiras das discussões a respeito do controle sobre a vida e a morte.

Integram a organicidade das estruturas sociais, as instituições e o Estado, técnicas, mecanismos e estratégias, que materializam o poder institucionalizado, e alimentam o imaginário de soberania, medo, hegemonia, etc, elementos que na nossa memória ancestral se associam às máscaras de ferro por meio das quais se buscava disciplinar negros escravizados e negras escravizados no período colonial. O pensamento de Foucault, ainda sob o ponto de vista de Francisco Rômulo Alves Diniz e Almeida Alves de Oliveira (2013), contribui para uma atenção aos cuidados necessários, ou precauções metodológicas, no exame sobre os fluxos que o poder atravessa. Assim sintetizam o pensamento de Foucault:

Para que se possa fazer uma pesquisa genealógica, devem-se ter alguns cuidados que Foucault chama de precauções metodológicas. Estas por sua vez são elencadas da seguinte maneira: a primeira precaução é analisar o poder não em seu centro, mas nas extremidades, em suas formas e instituições mais regionais. Segunda precaução: ao invés de se perguntar, quem tem o poder? Ou por que alguns querem dominar? Deve-se estudar o poder em sua face externa, onde ele se relaciona diretamente com o seu objeto, ou seja, onde eles e implanta e produz seus efeitos reais. Terceira precaução: o poder deve ser analisado como algo que só funciona em cadeia. Por isso, não se deve tomá-lo como um fenômeno de dominação maciço de um indivíduo sobre os outros. Quarta precaução: fazer uma análise descendente, ou seja, analisar como as técnicas de poder atuam nos níveis mais baixos, como se deslocam e se modificam sendo depois anexados por fenômenos mais globais. Quinta e última precaução: devido ao fato das grandes máquinas de poder ser acompanhadas de produções ideológicas, para que o poder seja exercido, será necessário

25 Para Foucault, a disciplina não está nas mãos do Estado ou de instituições, mas é uma técnica de poder

que funciona como uma rede que atravessa os aparelhos do Estado e diversas instituições. A punição e a vigilância são usados, pelo poder disciplinar, para adestrar e disciplinar os corpos

26 Com o conceito de biopoder Foucault busca explicar como os métodos de regulação e adestramento

ampliam-se dos corpos individuais para os corpos coletivos, as massas, buscando otimizar e preservar a vida.

organizar aparelhos de saber que não são construções ideológicas (FOUCAULT, 1979 apud DINIZ e OLIVEIRA, A., 2013, p. 145).

A síntese apresentada pelos autores sobre o elenco de precauções que uma pesquisa genealógica deve atentar, ilumina as reflexões sobre as dinâmicas relacionais que compõem o cenário da violência institucional, embora estas reflexões venham sendo produzidas diante de limitações teóricas. A organização do pensamento foucaultiano feita pelos autores acima citados contribuem para uma maior atenção às complexidades das relações entre poder e saber, enquanto resultado de um processo autoritário. O deslocamento da ideia de um poder centrado no Estado para a rede de micropoderes, que dá origem ao conceito de microfísica do poder oferece pistas, não apenas em direção ao poder das instituições que irão se responsabilizar pela regulação dos corpos, como também em direção a indivíduos, grupos, etc.

O que me proponho a pensar neste capítulo é, em que medida, as relações entre mulheres/mães, instituição policial, instituição jurídica, se organizam na cadeia perpassada por fluxos de poder onde, mesmo no contexto das políticas de morte, as insurgências e insubmissões se evidenciam por parte de sujeitos(as) vitimados(as). O debate, proposto por Achile Mbembe (2011), sobre como as necropolíticas27 caracterizam o estado de exceção, negando ao outro a sua dimensão humana e o seu direito à vida agrega argumentos à demarcação da racialidade como dispositivo.

O contexto onde são vividas as experiências dos grupos excluídos, marcados pelo fator racial, é uma combinação entre o Estado penal, conforme Loic Wacquant (2003) e o estado de exceção. Neste sentido, considero que o Estado penal, e estado de exceção, coexistem, expressando-se muitas vezes como estágios de transição. Tento, a partir das narrativas das interlocutoras, sustentar que, embora os lugares das mulheres/mães, sejam moldados por valores de marginalização e criminalização e penalidades, num contexto de desequilíbrio de forças, dissimetrias, desigualdades e de construção do não-ser, estes lugares se expressam muitas vezes como potenciais para a produção de deslocamentos nas relações de gênero, gerando novas práticas de saber e poder e produzindo tensões entre o instituído e o instituinte.

27 Conceito utilizado por Achile Mbembe ao se referir às novas formas de dominação na África pós-colonial.

Segundo ele, “um poder difuso, nem sempre Estatal, se insere na economia da morte em suas relações de produção e poder.” (MBEMBE, 2011, p. 13)