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INTERSECCIONALIDADE NAS CONSTRUÇÕES DE GÊNERO DAS MULHERES/MÃES NO CONTEXTO DE

2.7 MATERNIDADE COMO DIREITO: ESSENCIALISMO TÁTICO

“Como mulheres, alguns de nossos problemas são comuns, outros não. Vocês, brancas, temem que seus filhos ao crescer se juntem ao patriarcado e testemunhem contra vocês. Nós, em contrapartida, tememos que tirem os nossos filhos de um carro e disparem contra eles a queima-roupa, no meio da rua, enquanto vocês dão as costas para as razões pelas quais eles estão morrendo.”

Audre Lorde

Uma das grandes conquistas do feminismo reside nesta dissociação entre a construção do feminino e a determinação biológica associada a maternidade obrigatória. A história das mulheres negras, no entanto, marcada por atrasos e defasagens nas conquistas, é cercada por episódios de violência e cerceamentos ao livre exercício da maternidade. Enquanto as mulheres brancas brigavam pelo direito a ocupar espaços públicos, tendo assegurados os seus direitos mais básicos, as mulheres negras pleiteavam o direito de cuidar dos filhos, ou de terem os filhos, de mantê-los vivos.

A voz de Audre Lorde, no texto acima, traduz o drama diário atual vivido por mulheres negras, principalmente nos grandes centros urbanos onde as percepções de mulheres, jovens, adolescentes sobre o Estado são associadas a violação, violência e agressão. As tensões que caracterizam essas relações atribuem às experiências das dessas mulheres uma maior complexidade que, ao produzir diferentes demandas de lutas, mantém-nas distantes das grandes pautas feministas. As suas causas continuam a ser quase as mesmas de séculos atrás.

Vários são os depoimentos de mulheres que inscreveram na história do feminismo os dilemas da maternidade ou da construção do feminismo a partir da experiência da mulher negra, uma problemática que nos aproxima dos debates sobre essencialismo. Um dos clássicos depoimentos que problematiza o essencialismo e ofereceu elementos para os debates sobre gênero é o famoso discurso da ativista Sojourner Truth em 1851:

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para

isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? 23

Para Deepika Bahri (2013, p. 7) os estudos de grupos e coletividades devem enfrentar o problema do essencialismo, ou seja, a atribuição de uma qualidade constitutiva fundamental, uma falsa continuidade, a uma pessoa, categoria ou grupo. Os essencialismos levam ao risco de criar estereótipos, aprisionar, reduzir, ofuscar os aspectos de pessoas ou grupos. As lésbicas, por exemplo, enfrentaram as opressões das tipologias essencialistas que impunham à mulher expectativas com relação a desempenhos de papéis associados à heterossexualidade. Posto isso, chamo atenção ao conceito de essencialismo estratégico ou essencialismo tático e intencional que vêm sendo proposto por algumas autoras, e ocorre quando há um interesse político manifesto (SPIVAK, 1996. p. 214). Nestes casos, argumentar a favor de uma qualidade constitutiva ou falsa continuidade pode ser o caminho para reivindicar a igualdade de direitos.

Avtar Brah (2006, p. 341) traz preciosas contribuições para o debate sobre essencialismo quando, ao recuperar os modos como o determinismo biológico é tratado nos diversos feminismos, no radical, no socialista, etc, afirma que as mudanças não assinalam uma mera abordagem pragmática, mas uma resposta estratégica a novas circunstâncias políticas. Para ela o signo mulher tem as suas especificidades que são construídas dentro de configurações específicas das relações de gênero, nos quais o fluxo semiótico assume diferentes significados em discursos sobre as feminilidades.

O dispositivo de racialidade, proposto por Sueli Carneiro (2005), atende à emergência de flagrar significados que constituem o fluxo semiótico e que conferem especificidade às experiências das mulheres mais interseccionalizadas. A lógica colonial empurra homens e mulheres negras para o lugar da marginalidade, destituindo-lhes do status de cidadania, de normalidade, etc. Ao fazê-lo, utiliza-se do patriarcado e estabelece um ataque às mulheres negras atingindo a sua natureza reprodutiva. As conexões entre capitalismo, patriarcado e racismo produzem tensões de gênero intrarraciais, de forma que sejam satisfeitas as necessidades do sistema de dominação.

23 Trecho do discurso proferido pela ex-escrava Sojourner Truth, na Convenção sobre os Direitos das

A potência da categoria interseccionalidade poderá operar no sentido de romper o ciclo de silêncios que reproduzem violências. Ao usarem a voz, especialmente em eventos públicos, frequentemente as mães dedicam um tempo da sua fala desconstruindo o discurso ou ideia de marginalidade em relação ao seu filho, como se sentissem permanentemente sob suspeição. Segundo algumas interlocutoras, as mulheres que se isolam são aquelas que têm mais dificuldades em lidar com a suspeição que se instaura.

A análise destes comportamentos indica como atuam sobre as mulheres/mães a força dos discursos da criminalização. O silêncio imposto a mulheres/mães, mais interseccionalizadas pela dor ou pelo medo, são mecanismos que realimentam a opressão e mostram que máscaras de ferro, continuam a cumprir o seu papel.

Refletir sobre os aspectos que constituem o gênero de mulheres vitimadas pela violência policial contra seus filhos sugere examinar as diferentes performances assumidas por estas mulheres no curso da sua experiência: resistência associada à consciência sobre a opressão, estratégias de silenciamento, de invisibilidade, entre outras. Tais performances podem incluir a imersão numa prática religiosa, adoecimentos, isolamentos, rompimento de laços, ou ativismo, militância, etc. A ideia que impregna o imaginário social de que a identidade feminina se traduz, sobretudo, na maternidade é também muito recorrente nas vozes das mulheres/mães vitimadas.

Esta percepção que se confirmou nos diferentes encontros com as mulheres, se torna mais objetiva na forma como Débora Silva, integrante fundadora do Movimento Mães de Maio, narra, em debate realizado na Reitoria da UFBA, as experiências vividas após a perda. Ela afirma “Nós oferecemos a nossa voz para várias famílias. Quem fala por mim é meu filho” (informação verbal).

As mães militantes sinalizam para a necessidade de ressignificar a ausência do filho através de uma nova forma de presença, a luta. Grande parte dessas mães afirma falar em nome do filho, apresentando-se ao público como uma representante desse ausente. Para além dos componentes afetivos e psicológicos que parecem indicar uma indissociação entre mãe e filho, esta afirmativa carrega uma potência política que tem se revelado estratégica nas lutas. As estratégias de alteração de lugares nas relações de poder e de enfrentamentos serão discutidas nos próximos capítulos.