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INTERSECCIONALIDADE NAS CONSTRUÇÕES DE GÊNERO DAS MULHERES/MÃES NO CONTEXTO DE

2.6 O RACISMO FUNDANTE DO PROJETO DE MODERNIDADE

A violência, este vasto campo de estudos que habita fronteiras entre disciplinas, exige, ao ser estudada, uma perspectiva interseccional, que dê conta dos nexos entre os sujeitos e os sistemas, e das relações entre sujeitos. Muitas são as definições sobre este fenômeno social. Para Michaud “há violência

quando, em uma situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou a mais pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais.” (MICHAUD, 1989, p.75).

Uma perspectiva histórica, por exemplo, é fundamental ao debate sobre violência, entretanto não será possível no âmbito deste trabalho. Todavia, é preciso sustentar que o projeto de modernidade introduziu diversas formas de violência, por meio de discursos que produziram recortes que fornecem representações e imagens controladoras sobre determinados grupos. Ao discorrer sobre o tema no Relatório sobre o Mapa da Violência no Brasil20 (2002), o relator Julio Jacobo Waiselfisz afirma:

É esta enorme complexidade que nos permite falar não de uma violência unívoca, mas de diversas violências, cada uma com sua própria lógicas e seus próprios determinantes. Assim falamos, em nosso país, de violência doméstica, violência criminal, violência nas ruas, no trânsito, nas escolas, no campo, contra o jovem, a criança, a mulher, os idosos, os portadores de deficiências, os afrodescendentes e os homossexuais. O mundo hoje nos apresenta um enorme e variado repertório de violências políticas, Étnicas, religiosas, entre outras. E esta enorme multiplicidade de significantes e manifestações é a que torna seu combate e enfrentamento mais complexo e desafiador (WAISELFISZ, 2002, p. 8).

Os mapas da violência vêm evoluindo no sentido de oferecerem ao(às) leitor(as) análises a partir de importantes recortes como raça/cor, idade, sexo que o traçarem o perfil das vítimas, oferecem elementos para identificação de fatores determinantes. Recentemente alguns mapas incluíram dados sobre a letalidade policial. Entretanto ainda é necessário atentar para os discursos que costumam acompanhar os debates sobre os mapas, que elegem como protagonistas das violências, sujeitos isolados(as), ocultando a ação do Estado. Paulo Sérgio Pinheiro, no livro Violência, Crime e Sistemas Policiais em Países de Novas Democracias (1977, p. 44), explora a relação entre o fenômeno da violência e o contexto de desigualdades sociais e relações assimétricas, “resultante da continuidade de uma longa tradição de práticas de autoritárias das elites contra as não-elites, que se reproduzem nos mais pobres”. Segundo

20 Mapa da Violência III / Julio Jacobo Waiselfisz. Brasília: UNESCO, Instituto Ayrton Senna, Ministério

ele há uma relação de continuidade entre regimes autoritários do passado e os novos governos civis eleitos democraticamente que sugerem ser o mesmo sistema de dominação da mesma elite e argumenta ainda que o “Brasil é uma sociedade que se baseia na exclusão, é uma democracia sem cidadania.” (PINHEIRO, 1977, p. 45).

Os debates sobre racismo ainda enfrentam grandes icebergs que, mergulhados no inconsciente coletivo, produzem sombras que impedem os avanços e conquistas de igualdade: são os resíduos das ideias sobre os povos negros, disseminadas pelos europeus, a compreensão do negro como um bem móvel, um ser abaixo do status da cidadania. Homens e mulheres eram vistos como unidades rentáveis de trabalho, de acordo com Ângela Davis em “O legado da escravatura: bases para uma nova natureza feminina” (DAVIS, 1981). Esta percepção sobre os homens e mulheres negras como mercadoria, ou algo mais próximo dos animais, esconde uma face do sistema de dominação nos regimes coloniais que muito poderia enriquecer os debates sobre violência e racismo: a sua face violenta, agressiva, perversa. Pelo contrário, os relatos sobre o período colonial transformam em violentos exatamente os que estavam subordinados, sob o domínio de práticas repressivas, perversas, desumanas, referindo-se sempre a negros e índios como indisciplinados, insubordinados, inclinados à agressividade. Tais relatos encontraram base nos tratados científicos construídos na modernidade sobre raça.

Para Renato da Silveira (1999, p. 89) a necessidade da construção de um grande império territorial e de uma sociedade colonial a partir de uma mão de obra salarial mal paga impeliu as elites dirigentes a formularem uma ideologia discriminatória. Ele segue: “Neste contexto, o racismo europeu fortaleceu-se como teoria durante a própria constituição das organizações científicas, ganhou credibilidade como uma concepção “objetiva” do mundo oficialmente reconhecida, como um sistema respeitável”. Silveira nos ajuda a compreender como a agressão colonial e a escravização africana foram legitimadas em bases científicas, nas premissas que embasaram a classificação racial. Tais premissas, presentes nos diferentes setores como a educação, alterando o imaginário social, a percepção sobre os tipos humanos. “O racismo científico foi um fator estruturante da ordem ocidental ainda muito mal estudado enquanto tal.” (SILVEIRA, 1999, p. 91).

Silveira insere as ricas contribuições sobre o racismo científico no contexto da revolução científica explicando como ao cientista foi atribuída credibilidade, e a crença de que eles traziam a Verdade, tornando-se os principais legitimadores da supremacia ocidental. Tendo o mundo sob seu domínio, conforme Silveira, o homem branco teria que assumir, diante das raças inferiores, uma missão civilizatória resgatando-os do paganismo e da ignorância. O racismo científico evolui e se expande através de um grande número de representantes, porta vozes da ciência. Proliferam as classificações que apresentam uma hierarquia a partir das raças nas quais negros e índios aparecem sempre como populações selvagens que deveriam submeter-se à tutela, “postura opressiva curiosamente entendida como fator de libertação.” (SILVEIRA, 1999, p.98). Uma das descrições apresentadas por Silveira (1999, p. 101), a de Buffon, define o africano “como divertido, porém massacrante,” “desprovido de imaginação”. Ainda entre os adjetivos associados ao povo negro surge no texto, a partir das polêmicas ideias de Goubineau21, a o termo “degenerado”, a ideia de um povo em decadência, que perdeu o seu valor. (p. 105) um povo para quem “a suprema alegria é a preguiça, sua suprema razão é o assassinato”. Silveira conclui, após apresentar argumentos de diferentes cientistas afirmando que:

O racismo científico foi portanto uma força estruturante, referência fundamental na montagem de um esquema industrial de entretenimento, controle da opinião e formação do consenso, onde novos e complexos mecanismos burocráticos de integração, enquadramento e discriminação, bem adaptados às novas condições, tornaram-se operativos. Apesar de termos banido juridicamente a discriminação, uma imensa massa de produtos e padrões racistas, criados no momento da gênese da indústria cultural, continuam circulando (SILVEIRA, 1999, p. 144).

Kabengele Munanga (2010) defende que a máscara científica, a raciologia tinha um discurso mais doutrinário do que científico, já que ela esteve muito mais a serviço de justificar os sistemas de dominação racial do que para explicar a variabilidade humana. Para o autor a hierarquização é montada a partir de uma relação intrínseca entre características biológicas e quase morais, psicológicas, intelectuais e culturais, o que podemos ver na classificação do

21 Joseph Arthur de Gobineau foi um diplomata, escritor e filósofo francês, um dos mais importantes

Homo Sapiens de Lineu22 por ele organizada, que a associa a cor da pele a demais características. Esta classificação divide a humanidade em quatro raças. Destaco a descrição dos não brancos, o americano e o africano, colocando um acento no fato de que, apenas neste último, foi feito um apontamento sobre a mulher:

● Americano: moreno, colérico, cabeçudo, amante da liberdade, governado pelo hábito, tem o corpo pintado.

● Africano: negro, flegmático, astucioso, preguiçoso, negligente, governado pela vontade dos seus chefes, unta o corpo com óleo ou gordura, sua mulher tem vulva pendente e quando amamenta seus seios se tornam moles e alongados.

O autor revela preocupações com o uso popular do racismo e o risco da sua associação com rejeição ou injustiça social, tendo em vista a ênfase nas características biológicas e a criação do estigma corporal. Essa simplificação, a seus olhos, pode minimizar a gravidade do racismo e o esvaziamento dos seus efeitos nefastos no mundo. De fato, apesar da gravidade dos prejuízos psicológicos, há ainda muita energia a ser gasta contra as necropolíticas de poder que se revertem no alto índice de mortalidade de homens e mulheres.

Na descrição do Homo Sapiens de Lineu pula aos olhos a observação sobre o corpo das mulheres negras, a objetificação deste corpo. Transformados em mercadorias, homens e mulheres negras sempre estiveram expostos(as) a mecanismos de controle. Nesta direção, características biológicas das mulheres negras são inferiorizadas, o que não foi observado em relação às características de outras mulheres.

O que a “máscara científica” por meio dos relatos e produções acerca do comportamento características e psicológicas do povo negro, tenta ocultar é que o Estado colonialismo/capitalismo, representado ora pelo capataz, ora pela polícia militar, assume o papel de inimigo e protagoniza a violência. O Estado moderno utiliza aparatos repressivos, ainda que muitas vezes, incompatíveis com o Estatuto de Direitos Humanos ou a Constituição Brasileira, mecanismos forjados no racismo, que articulado ao sexismo e com outros fatores, vão tecendo a matriz única de dominação. No interior da matriz de dominação, a violência contra os jovens negros é também a violência contra as mulheres negras.

22 Carlos Lineu, sueco, botânico, zoólogo e médico, criador da nomenclatura binomial e da classificação

As reflexões acerca dos mecanismos de controle sobre os corpos negros nos aproximam do debate articulado por Achile Mbembe (2011) no qual ele amplia o conceito, de biopoder, desenvolvido por Foucault integrando a este debate os conceitos de estado de exceção. Retornarei a estes conceitos no capítulo seguinte. Considero, contudo oportuno antecipar argumentos de em torno das questões de soberania e do direito de matar: Aprofundando as ideias de Foucault para quem a soberania que assegura o direito de matar, bem como os mecanismos de controle, estão inscritos na forma como o Estado moderno funciona, representando os elementos constitutivos do poder do Estado na modernidade, Mbembe defende que o estado de exceção tem se convertido na base normativa do direito de matar.

A partir dos pressupostos desenvolvidos por Foucaultde que a organização e segregação dos grupos tem como base o racismo, nos quais se debruçam sobre as tecnologias de poder, Mbembe (2011, p. 33) toma um caminho político discute as relações entre política e mortes, racismo e dominação recolocando na cena o escravo como exemplo, não apenas de violação de direitos, mas de negação da própria humanidade. A violência que permite tanto açoitar, mutilar em vida, quanto tirar a vida do escravo, nega-lhe o status de cidadão. Ao destacar que as execuções de judeus, a partir de mecanismos técnicos, mecanizados, foram possíveis a partir da alteridade e do racismo, é nestes termos que o autor analisa as questões relacionadas às necropolíticas:

Este proceso fue en parte facilitad por los estereotipos racistas y el desarrollo de un racismo de clase que, al traducir los conflitos sociales del mundo industrial en terminos racistas, ha terminado por comparar las clases obreras y el «pueblo apatrida» del mundo industrial con los salvajes» del mundo colonial. (MBEMBE, 2011, p. 26).

A perspectiva oferecida pelo autor confirma a percepção de que os estereótipos forjados na alteridade e no racismo, que regularam o período colonial, se fazem presentes na sociedade contemporânea, por meio dos mecanismos que integram os sistemas de dominação. Buscarei, no capítulo seguinte, propor reflexões sobre como os contextos de violência e as condições de interseccionalidade acionam o poder dos grupos subalternizados produzindo e instituindo novas práticas e discursos. Para tanto, retomarei o debate sobre estado de exceção e Estado penal, buscando dar visibilidade às formas como o braço do Estado pesa sobre os grupos excluídos.