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PARTE I O QUE É A FESTA

1.3 O CARURU DO MERCADO

Nos três meses que antecedem os festejos, a comissão da festa começa a se organizar para a arrecadação de recursos e preparar o caruru. Tais recursos provêm de diversas fontes: da cooperação de lojistas da Baixa dos Sapateiros, através de

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“Eparrê Iansã! Eparrê Santa Bárbara me ajude!” Diário de Notícias. Caderno 2, Salvador – BA, 01 de dezembro de 1970.

assinatura dos doadores em livro de ouro; das doações dos fornecedores de azeite de dendê; das colaborações de instituições governamentais e das ofertas depositadas nos cofres (uma espécie de mealheiro que permanece durante todo ano, no santuário do mercado), abertos posteriormente pelos membros. Após a coleta dos recursos, é distribuída uma quantia para a compra dos ingredientes e preparação do caruru. As pessoas comungam o rito de preparação com muita alegria e crença em Iansã. A Senhora Maria Izabel M. Batista é uma filha de Iemanjá com Iansã e proprietária de dois boxes, sendo um deles o local onde ela comercializa artigos de candomblé. Ela foi responsável pela organização da festa do ano de 2004 e 2005 e nos esclareceu que os preparativos tiveram início quatro meses que antecederam a festa, prolongando-se até o mês de fevereiro, quando finalizava o compromisso referente aos custos.

No passado, o ritual de preparo para a festividade à Iansã era feito com muito entusiasmo. Segundo depoimento do antropólogo Valdeloir Rego36 ao jornal Correio da Bahia, “... os carurus eram realizados pelos barraqueiros, os quais faziam suas promessas a Santa Bárbara, convidando os fregueses para comerem o caruru nas suas barracas, mas só era o caruru sem acompanhamento”. O autor se refere ao “amalá”, que é uma oferenda específica para Iansã, nos ritos do candomblé. O “amalá” é preparado com quiabos cortados em rodelas e temperados com cebola e camarão seco, a depender da qualidade da Iansã, ou seja, quando é preparado para Oya, coloca-se azeite doce e, quando é preparado para outra qualidade de Iansã, coloca-se o azeite de dendê. Entretanto, esse procedimento só é realizado nas oferendas depositadas no santuário no dia da festa em louvor ao orixá. Já o caruru que é feito para ser distribuído à população, no dia da festa, é servido com vários acompanhamentos, como, por exemplo, xinxim de galinha, arroz, farofa de dendê, vatapá, feijão preto, feijão fradinho e acarajé, nos moldes do tradicional caruru realizado em comemorações festivas no Estado da Bahia.

Durante a preparação do caruru, observamos a atualização de promessas que se processaram através das diferentes expressões do corpo e da memória, cujo pensamento está vinculado aos modos de (re)atualização dos peditórios e (ou) agradecimentos do povo-de-santo. Destacaremos o comportamento das DICs, juntamente com os participantes dessas atividades, o que será objeto de

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análise do processo de (re)significação desse estudo. Vale mencionar que, na década de 80, do Século XX, os jornais da cidade mencionam festas em que eram cortados cem mil quiabos, tornando-se o preparo e a oferta do caruru os pontos altos das comemorações do mercado, com a grande presença da população.

A preparação do caruru ficava a cargo de uma determinada Iyalorixá, com a ajuda dos membros do candomblé e de pessoas da comunidade, que constituíam um grupo, com cerca de 50 pessoas que disputavam um banquinho para o corte do quiabo e, assim, prestar a sua homenagem à Iansã. No apogeu das preparações, às doze horas do dia, a zeladora de santo, responsável pelo caruru, servia a tradicional salada de bacalhau ao mutirão, num clima repleto de alegria. As mulheres responsáveis pela preparação dos alimentos, ofertavam o “amalá” para Iansã, no santuário, onde as velas se multiplicavam aos pés da Santa Bárbara turca. Ao cair da tarde, o caruru era distribuído a toda a população. No início da noite, o espocar de foguetes finalizava os festejos no antigo Mercado. Após a finalização dos festejos, a Santa turca ficava, durante quinze dias, à mostra para os fiéis, no santuário do mercado. Nesse período festivo, havia a presença de pessoas de diversos estados, como também de fora do país. Elas participavam da festa, e seus depoimentos sobre os sentimentos associados às promessas ligadas Ilustração 5 – O povo de Santo nos

preparativos do mercado Fonte: Acervo da autora, 2005

à Iansã, que foram relatados por diversos jornalistas nos periódicos da época e por nós investigados, posteriormente.

O Senhor Fausto é uma das “memórias vivas” do mercado e nos revelou que a oferta do seu caruru aos convidados ainda é realizada no dia 06 de dezembro, segundo os padrões da tradição, quando cada barraqueiro fazia o seu caruru e ofertava aos seus fregueses e convidados, no sexto dia da festa. Ele nos revelou ainda, que havia o costume de conservar os três primeiros dias do mês de dezembro para a preparação da festa, com a procissão no quarto dia, festejando com o samba de roda no quinto, a distribuição do caruru com o maculelê e a capoeira no sexto dia. Atualmente, a preparação é feita de uma só vez, envolvendo uma equipe de quinze pessoas da comunidade do candomblé de etnia angolana, tendo como responsável, no ano de 2005, uma mameto-de-ínkice37.

Essas atividades, geralmente, são realizadas no dia 03, estendendo-se pela madrugada do dia 04 de dezembro. Assim, os modos de preparação e realização da festa do antigo mercado de Santa Bárbara e do atual Centro Comercial são provenientes daqueles utilizados na liturgia do candomblé da etnia congo-angola, na Bahia, seja na maneira de preparar os alimentos, seja na forma de decorar as oferendas aos orixás. Após o preparo da comida, existia o tempo de “descanso” para o esfriamento das iguarias que seriam ofertadas aos orixás e à divindade Iansã e, também, para a descontração natural entre fiéis e povo-de-santo envolvido nessa atividade. Em 2004, a madrugada foi reservada para a realização dos ritos de oferenda aos mensageiros, finalizados com o ritual do Padê de Exu, realizado por um Tata38 de inquice na manhã de 04 de dezembro, abrindo as celebrações festivas do mercado. De modo que, só após a passagem do cortejo em procissão de Santa Bárbara, o caruru foi distribuído aos participantes, que comiam e bebiam, ao renovar o ponto alto dessa comemoração, num ambiente de intensa alegria.

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Cacciatore (1988, p. 169) cita esse termo, que designa “Mãe-de-santo, em terreiros de angola. É usado em uns poucos terreiros. F. corr. Do Kim. “mam’ etu” (“mama” – mãe; “etu” – nós) nossa mãe.

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Lopes (2004, p. 642) afirma que, nos cultos de Origem banta, significa grande sacerdote, chefe de terreiros. Do termo multilingüístico (quibundo, quicongo etc.) tata: “pai”.