• Nenhum resultado encontrado

PARTE II CORPO IMERSO NA CULTURA

2.2 MEMÓRIAS DO CORPO QUE DANÇA

2.2.5 O pulso entre nós

Diferentemente das duas primeiras, a preparação da terceira DIC para a pesquisa de campo foi sendo realizada na prática dos laboratórios. Ao assistir ao vídeo do “Corpo Festivo”, para atualizar algumas informações de campo, ela ficou fascinada para pesquisar o corpo de uma senhora negra de, aproximadamente, 60 anos de idade, que passou o dia inteiro a cortar os quiabos para a preparação do caruru. Sobre o que assistia, ela ressaltou: a posição em que a senhora se colocava no espaço do pequeno box do mercado, contra a parede lateral, de onde observava tudo que acontecia naquele lugar; os objetos que estavam a sua volta; sua atenção aos acontecimentos naquele ambiente; a maneira como ela cortava os quiabos; o silêncio, pela ausência da sua fala; e a extensa duração do tempo dedicado a essa atividade. Tudo isso despertou a curiosidade dessa dançarina. Observamos que muitas informações foram sugeridas a partir da observação realizada junto às duas primeiras DICs, que participaram ativamente dos preparativos tradicionalmente realizados no Mercado de Santa Bárbara.

Chegou, finalmente, o dia 04 de dezembro de 2005, essa dançarina se encontrava curiosa para o encontro. Que decepção! O tempo estava distante daquela mesma situação, as pessoas foram outras e os preparativos mostravam uma outra ordenação. Por esse motivo, utilizamos o termo “atualização” para designar os acontecimentos verificados no interior dessa tradição. As imagens em vídeo preservavam o sentido daquela atuação nos festejos, mas o tempo decorrido distanciava essas observações antes vividas em campo. Nesse sentido, a contemporaneidade traça comunhão com a tradicionalidade dos preparativos que antecedem o dia da grande festa. Esse fato nos remete à importância de estar realizando um processo fincado em acontecimentos que operam em tempo real, no tempo em que a vida acontece, no “aqui e agora”, como ressaltou o etnocenólogo

Armindo Bião, citado na primeira parte deste estudo. Por esse motivo, não cabem conceitos de tradição como fatos imutáveis.

Ao retornarmos, mais uma vez, da pesquisa de campo para os laboratórios de criação, focalizamos o nosso olhar no corpo da terceira DIC, buscando ativar sua memória através de conversas sobre a investigação de campo. Então, a questão proveio numa ação comportamental, aqui vista como um ato cognitivo que ocorre entre “uma variável intermediária”, constituída pela maneira como foi conhecido o objeto, nessa espetacular manifestação dos “Vivas”. De modo que, alerta para a confluência de movimentos que ocorreram ao seu redor, a dançarina buscava, dentro de si mesma, as reflexões sobre suas observações.

Ela nos revelava que, na atmosfera do ambiente festivo, com os fervores da multidão, junto às palmas e espocar de fogos, os “Vivas” se destacavam nas homenagens a Santa Bárbara (turca), que saía da nave central da Igreja. Então, surgiu imediatamente a seguinte indagação na sua mente: “Como uma pequena imagem pode mover tantos corpos”? Ela esclareceu que, “naquele” exato momento, quando olhou para o lado esquerdo, observou uma senhora de aproximadamente 75 anos de idade entrar, momentaneamente, em estado de “corporificação”. Então, percebeu que a respiração daquela senhora acelerava, e o seu corpo tremia, a cabeça se deslocava para frente e para trás, juntamente com a ação de olhar ora para céu, ora para terra, repetindo esse gesto continuamente. Ao perceber as primeiras alterações do corpo, logo nos aproximamos dela, e fizemos um círculo ao seu redor, a fim de proteger o seu corpo. Após o espocar dos fogos, ela abaixou a cabeça e colocou a mão direita na testa e a esquerda na parte posterior, apertando-a. Deu-nos a impressão de que essa ação, finalmente, trazia bem-estar ao seu corpo. Então, a senhora segurou a mão de sua neta, que tinha aproximadamente 12 anos de idade, e seguiu, subindo a ladeira do Pelourinho, juntamente com o cortejo de Santa Bárbara. A DIC nos revelou que “coincidência ou não, aquela situação trouxe uma Ilustração 11 – Corporificação em uma filha de

Oya no meio da multidão

resposta afirmativa, associada a sua crença na existência de uma força que se manifesta no corpo humano – a vibração de Oya”.

Buscamos iniciar as atividades com a questão formulada pela DIC: “Como uma imagem pode mover tantos corpos?”. Tínhamos a intenção de observar como poderia ser construída uma resposta no seu corpo, através da pesquisa de movimento. Apesar de estarmos vivenciando essa experiência com as outras três DICs79, nosso olhar esteve direcionado para a investigação dessa dançarina, a qual produziu certo estado de sensibilização e concentração no ato da criação. A sua atenção estivera voltada para as lembranças da manifestação, que trouxeram resposta à sua indagação, cujo foco esteve na especificidade dos movimentos observados nas partes do corpo daquela senhora, durante os “Vivas” que aconteceram na procissão.

Com a rememorização, buscávamos a investigação dos movimentos que iniciava com certa tensão entre o contato da planta dos pés com o chão. Sugerimos a imagem-metáfora “boca dos pés”, a qual promovia a investigação desse contato com o solo. Essa imagem nos trazia a sensação de germinação, na qual a raiz vai sendo constituída a partir desse contato com a terra, cresce em direção à cabeça, ao mesmo tempo em que, se expande por todas as outras partes do corpo.

Após um período pesquisando o corpo, percebemos a verticalidade do pilar80, motivo pelo qual resolvemos entrar num rito próprio, colocando uma música que é tocada na roda do xirê, nas festas públicas para Iansã Oya. Solicitamos que elas, com olhos fechados, percebessem o ritmo e a respiração, atentas, para não trazerem códigos de movimentos já conhecidos, especialmente, aqueles ligados à sua religiosidade. Entretanto, elas começaram a perceber certo tipo de impulsão que o ritmo estimulava. Nesse momento, a tônica era localizar o pulso. Cada DIC, ao perceber o surgimento da engrenagem que daria propulsão ao movimento de partida, começava a se deslocar para outros espaços da sala de ensaio. Simultaneamente, nesse período de tempo, outros movimentos foram desencadeados, sendo investigados em cada corpo.

79

A segunda dançarina - Renilda; a quarta dançarina - Tariana; e a quinta - Edilene.

80

Que pudemos associar com a concepção de mundo da história iorubana que segundo J. Elbein (1998) simboliza os compartimentos do òpó-òrun (pilar que liga o òrun ao aiyè).

As repetições fizeram com que elas percebessem que as ações que provinham dos balanços evidenciavam as partes, que se estendiam como um todo, em cada

corpo e, por conseguinte, de maneira distinta. Como afirma Morin (2005, p. 207), “o pensamento mobiliza integralmente o ser e pode absorvê-lo totalmente”. Cada

indivíduo utiliza, do seu jeito, as possibilidades dialógicas do pensamento, conforme a sua idiossincrasia, sua história pessoal, sua formação, sua profissionalização. Com essa experiência, foi surgindo outro caminho de construção, que deixava o corpo ser levado por esse êxtase, a partir das sensações que o levavam a descobrir outras possibilidades de movimento, as quais promoviam certa permanência do estado sensível e voluntário, durante a execução das ações corporais.

Nesse processo, surgiram dois estágios. O primeiro esteve ligado ao plano vertical, no qual o corpo explorava certa mobilização, utilizando as direções para baixo e para cima, como uma espécie de mola. Nas repetições, surgiam impulsos internos, os quais acionavam a aceleração da respiração das DICs. O segundo foi decorrente desse primeiro, com a promoção de certa transferência de peso nos pés e, com ela, surgiram movimentos que salientavam distintas partes, mobilizadas entre a saída e o retorno ao eixo (coluna vertebral) dos corpos. O impulso foi proporcional aos movimentos que surgiam no corpo, os quais construíam o espaço em volta dele, bem como as relações entre os corpos nessa cena. Porém, observamos que a repetição, no caso das primeiras DICs, foi mais rápida e prazerosa que para a quinta DIC, para a qual foi exaustiva, principalmente, porque os padrões das dança sagrada (de Iansã) foram marcas adquiridas nos registros da sua memória, desde infância. Observávamos que ela tentava se desprender desses códigos, para encontrar outra maneira de dizer o que pensava. Ela nos revelou que, “houve um momento em que queria desistir de participar desse processo, pois ele é bem diferente daqueles antes vivenciado”, com a autora deste estudo.

O que ela queria dizer é que, antes, o processo estava calcado na imitação dos movimentos transmitidos pelo coreógrafo. Já neste, ao contrário, o dançarino é estimulado, a todo o momento, a refletir sobre ele mesmo, ao interagir com a sua própria cultura, através da investigação sobre a memória corporal. Dessa maneira, exercitávamos uma prática em que cada DIC se fazia intérprete da sua própria

história, a qual configurava sua visão de mundo81, revelada na sua própria criação. Ou seja, a dançarina se fazia co-criadora do resultado poético. Procuramos focalizar a criação sem incluir nenhum elemento de fora do corpo da dançarina, apenas o ar que o oxigena, do qual emerge o impulso interno e, conseqüentemente, a criação. Contudo, pudemos observar rastros de códigos culturais e religiosos em pequenos impulsos, quando, por exemplo, essa dançarina entrou em cena com uma bacia nas mãos, circulou o corpo da outra DIC e se retirou gradativamente.

Os assuntos ligados ao fenômeno da “corporificação”, atualizados pela questão trazida pela terceira DIC, nos motivaram a elegê-lo como princípio básico para a improvisação, no ato da interpretação em cena. Nesse sentido, haverá sempre espaço para o encontro com o movimento inusitado, haja vista a maneira como foi construído o princípio (impulso) que se configurou nessa improvisação. Além dessa apropriação, esse mesmo princípio foi desdobrado no processo investigativo e objetivado para o aquecimento do corpo, o qual foi selecionado pela DIC, como o aquecimento imprescindível à prontidão do corpo para dar início à cena: “Ar-em-cantos”.

Rodrigues (1997, p. 75), em seu olhar sobre diferentes manifestações populares brasileiras, caracterizadas por distintas linguagens, com sotaques regionais, infere importantes instrumentos para a “prática da dança e para o olhar em contínua descoberta”. O foco de sua pesquisa esteve na densidade do corpo, cujo tônus de resistência se mobiliza com o tônus do apoio. Os aspectos concretizados são os tônus, ou seja, a ação que corporifica os sentidos e se materializa na festividade. Nesse sentido, ela evidencia que “os desempenhos do corpo, nas suas relações com o movimento, caracterizam-se por pontuações, impulsos e por uma fruição que é conseqüência de todas as suas ações integradoras a que denominamos dínamos”.

Concluímos que, o pulso realizado, através de pequenos balanços promoveu certa qualidade de respiração, cuja ação gerou impulso interno ao investigar o corpo; O tônus muscular pôde ser percebido, na medida em que trabalhamos com o

81

Na discussão antropológica recente sobre “a visão de mundo” e a análise dos símbolos sagrados, Geertz (1989, p. 93) nos revela que os aspectos cognitivos, existenciais, são designados como “visão de mundo”. Afirma ainda ser “o quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito de natureza, de si mesmo, da sociedade”. Nesse processo de criação, esse quadro abrange a crença religiosa e o ritual que “confrontam-se e confirmam-se” mutuamente no ato criativo.

estudo do peso. Então o “pulso”, o “impulso interno” e o “tônus” utilizado com essa ação corporal, nesse processo criativo, puderam ser entendidos como um princípio dinamizador, ou seja, aquele que gera fluências de movimentos, à medida que as ações corporais evoluíam no espaço da sala de ensaio. Eles são passíveis de futuras investigações no ato de criação. Assim, podemos entender esse ponto de vista com a maneira como foi identificado o que a autora Graziela Rodrigues (1997) aponta como dínamos, mais especificamente o pulso, o impulso interno e o tônus muscular, que surgiram como conseqüência do processo de sensibilização e investigação do corpo das DICs, o qual acabamos de descrever.