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PARTE II CORPO IMERSO NA CULTURA

2.3 CONCEPÇÃO E ORGANIZAÇÃO DAS CENAS

2.3.1 Olho do Mundo

Ao refletir sobre o caminho de conhecimento percorrido na investigação de campo e nos laboratórios, decidimos organizar as cenas de acordo com a nossa concepção sobre o objeto, motivo pelo qual não privilegiamos a ordem em que foram construídos os materiais criativos nos encaminhamentos da improvisação.

Iniciamos a investigação que levou, como resultado, à concepção atual, analisando os três primeiros processos vivenciados no corpo das duas primeiras DICs. Nesse período, todas as cinco DICs apreendiam e reorganizavam mutuamente as estruturas dos materiais criativos. Ao mesmo tempo em que a terceira e quarta DICs foram motivadas a apreender as estruturas construídas no corpo da primeiras DICs, em função do seu afastamento do processo criativo, elas maturavam os materiais criativos, juntamente, com os significados que sustentaram as construções das estruturas de movimentos através de repetições. A cada repetição, exercitavam a sua interpretação individual, a qual sofreu pequenas modificações em virtude da interpretação de cada corpo sobre os materiais criativos. Nessas transformações, deixaram permanecer as interações que se estabeleciam entre os corpos, os quais, conjuntamente, organizavam a construção da cena.

Nessa organização da cena, pretendíamos iniciar o trabalho com um solo da segunda DIC, pelos seguintes motivos:

 por ser ela a que levantou uma questão vinculada aos preparativos do mercado;

 por ser o mercado o local de procedência desses festejos;

 por ser ele um ambiente em que ocorrem os ritos diretamente vinculados à importância da crença religiosa das DICs e

 pela nossa intenção de acionar a memória do público receptor da obra, através da evocação da multiplicidade de imagens inter-relacionadas com a sua própria vida, nesse ambiente cultural.88

Duas senhoras participantes dessa manifestação serão integradas nessa concepção. Nessa abordagem poética não enfatizaremos o início da obra, com o propósito de traçar uma linha de abordagem com início meio e fim, e sim privilegiar uma atmosfera de algo que está ao nosso redor, ou seja, que já está acontecendo. Essa é uma concepção que ainda está em construção.

Na primeira parte, o solo representa o sentimento de crença em uma imagem idolatrada por uma jovem que, ao fazer seus pedidos no santuário de Santa Bárbara, vê-se diante de um conflito interior o qual lhe trás a sensação de “querer fazer e não poder”. Ele está associado aos anseios de um corpo devoto, com suas súplicas, que espera a intercessão da imagem da Santa Católica a seu favor, mas, ao mesmo tempo, tem a impressão de que aquela imagem não atenderia a seus desejos. E, assim, a DIC buscava refúgio na crença que costumava depositar na divindade dos ventos, Iansã.

A segunda parte da primeira cena é representada por um trio de DICs, cujas interpretações estão sedimentadas na convivência com as matrizes afro-brasileiras e cristão-católicas no “Corpo Festivo”. Nela se destaca a questão “o real se diviniza em mim” criando referências que interagem entre os três corpos que dançam, vinculadas à crença dos participantes e sacerdotes da liturgia afro-brasileira do candomblé da Bahia.

A terceira parte é representada por um quinteto que interpreta sentimentos referenciados pelo “rastro que transgride e cria”. Trata-se da natureza transgressora, caracterizada pela força do arquétipo de natureza criativa, calcada no mito de Iansã da história iorubana, cujo poder é o de metamorfosear-se de mulher em animal, para vivenciar distintas experiências. Ao guardar seu segredo, ela percorre o mundo, agindo de maneira transgressora, para então criar e ser livre como o vento atmosférico. “Olho do mundo no interior do ser” é a expressão que esclarece a maneira como as dançarina-intérprete-criadoras atuaram e participaram ativamente

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Para tanto, realizaremos estudo dos sons originais os quais foram registrados nos preparativos dos ritos da madrugada, desde as 4h00 da manhã até às 12h00, do dia 04 de dezembro, que farão parte da composição da trilha sonora da futura obra.

de tudo que envolveu a sua existência no ambiente festivo e criativo, tendo o corpo como mediador nesse plano da existência material e espiritual (aiyé-òrun).

2.3.2 Ar em cantos

Num só corpo, os “impulsos interiores” germinam e estabelecem ligações entre os espaços. As repetições acionam a corporificação dos movimentos emergentes, que geram um estado sensível no ato da interpretação, promovendo assim, a improvisação, nesse exato momento. Outros corpos vão surgindo de lugares distintos e são contaminados por esse estado de corporificação poética, desenvolvendo padrões de movimentos distintos. O emi se estende por todo o espaço de cada corpo, as sensações dos movimentos cortam os ventos numa velocidade ora acelerada ora desacelerada, permeando os corpos em ações continuas que desenham a cena, ligando os nossos impulsos e sentimentos. Assim, eles configuram a memória dos ritos, num estado de bem estar, de prazer e comunhão, que permeia a existência de completude do corpo que se expressa num rito de purificação. A água renova... Os passos lentos e compassados levam ao encontro... Os impulsos serão, sempre, a ignição (Greiner, 2005) para a saída e retorno de algo em eterno movimento... Nesse pulsar que se expressa em cena.

2.3.3 - Dentro de mim

A organização da cena nasceu da desorganização dos materiais construídos nos ensaios. A desordem das seqüências já estruturadas contribuía para a combinação de outras organizações que emergiam em cena. Observamos que, nesse processo, as estruturas dos movimentos seqüenciados se complementavam de maneira inusitada, ao serem experienciadas de frente para trás e vice-versa. Assim, selecionávamos e alterávamos as partes que foram criadas nos últimos ensaios, colocando-as no principio da cena. Como por exemplo, o elemento que interligava a cena II à III estava ligado ao ritual de passagem da água sobre o corpo

da dançarina. Posteriormente, o caminhar dava continuidade ao surgimento da primeira imagem da cena III. Nela, o corpo nu desloca-se deslizando sobre o pano e, simultaneamente, surgia uma cascata de água por trás desse corpo que, lentamente, se locomovia sobre o solo. Dessa maneira, fomos redefinindo os padrões que achávamos coerentes com a proposta que provinha de cada corpo e, conseqüentemente, com a sua criação.

A partir desse princípio, trabalhamos a organização de todas as partes dessa cena, de modo que a primeira parte foi denominada pela DIC como “início do mundo”, a segunda como “a morte” e a terceira “dentro de mim”. Ela sintetiza a referência religiosa, juntamente com os arquétipos que pudemos identificar com o temperamento, ora calmo, ora impulsivo e transgressor, em função do exercício da dignidade e da justiça, avesso aos poderes desmedidos, quando atribuídos ao comportamento humano. Trata-se de sorver o material e intensamente os acontecimento da existência, até a sua estagnação, para então renovar-se na continuidade da transcendência, retornando ao plano do além, referenciada pela crença das DICs na divindade “rainha dos òruns”.

Um dos fatores que moveu o nosso processo de criação foi a maneira como buscamos nos encontrar com o que poderia vir a ser. A referência surge, então, num fazer que se construiu com a experiência de ampliar e reduzir a nossa retina, com os nosso sentidos, o que poderíamos chamar, metaforicamente, de “olho do mundo no interior do ser”.

2.4 O TEMPO COMO FATOR NA CONSTRUÇÃO DO AQUECIMENTO