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4. O PAPEL DOS MERCADOS PÚBLICOS NO CONFLITO ENTRE

6.1 O CASO ARGENTINO

Uma topoeugenia traz consigo os mesmos riscos do fenômeno representado pela ficção cinematográfica, com a diferença de ser tentada com frequência no mundo real. Buenos Aires, por exemplo, clonou um “cromossomo” de shopping center no DNA de seu Mercado de Abasto Provedor, a fim de salvar sua “genética” mal adaptada ao clima econômico de um mundo globalizado, que despontava no início dos anos 1990. A criatura mutante que nasceu daí, no coração do até então pitoresco Bairro de Almagro, espantou alguns dos habitantes tradicionais, num processo de gentrificação urbana criticado até os dias atuais.

Além disso, algumas anomalias físicas podem ser registradas, como uma roda- gigante que se encaixa à curvatura do imenso teto abobadado, verdadeira jóia arquitetônica da década de 1920, projetada pelo engenheiro José Luis Delpini. O “implante” da roda gigante segue mais um impulso “erótico” do que uma sensibilidade estética, algo como a mulher de três seios (Figura 36) do filme Total Recall. Afinal, todos sabem que a manipulação genética tem dessas coisas...

FIGURA 36: Pornocenografia arquitetônica kitsch no interior do Shopping Abasto.

Por outro lado, a preservação biológica de células-tronco embrionárias para a recuperação de tecidos danificados na vida adulta oferece uma analogia muito mais interessante, tanto para a medicina, como para a arquitetura urbanística e, ainda mais, para o patrimônio cultural das cidades. É claro que a conservação criogênica de células-tronco urbanas também não é a melhor alternativa para os centros históricos, ao menos nos casos em que a vitalidade desses lugares pode ser mantida animada, sem comprometer a integridade física do material genético.

Um bom exemplo pode ser as feiras de Buenos Aires. Entre 1999 e 2002 a Argentina enfrentou uma verdadeira catástrofe econômica e política que abalou as instituições do país. Descapitalizada, após a malfadada política econômica do presidente Fernando de la Rúa, a população teve que, em muitos casos, se organizar e “reinventar” o sistema produtivo do país. Naquele momento, a reativação dos tradicionais mecanismos de produção e circulação de mercadorias, bem como a reapropriação dos lugares necessários ao seu funcionamento, foi a estratégia traçada nas asambleas populares (OUVIÑA, 2004, p. 90).

Este movimento político comunitário, de matiz anarco-socialista, germinou em praticamente todos os bairros da capital argentina, sobretudo a partir de 2001, e logo em seguida foi “clonado” nas principais cidades do interior do paìs. Organizou e ampliou as tradicionais feiras de artesãos e manualistas, nas praças e parques públicos de Buenos Aires, garantindo o sustento de diversas famílias, mesmo após transcorrida a pior fase da crise argentina, permanecendo até os dias atuais. As tentativas de regularizá-las sempre resultam em novas transgressões, de modo que a relação entre os artesãos e manualistas com o poder público é definida por pactos de tolerância, freqüentemente desrespeitados por ambas as partes (ROTMANN In: Artesanías de América, 2001, p 64-65). A revelia do sucesso que fazem junto a turistas e moradores locais, não é incomum presenciar cenas de truculência policial, por exemplo, no desarme da Feira de San Telmo, ao final das tardes de domingo.

Da mesma forma a reapropriação comunitária do Mercado Bonpland segue também um histórico de resistência e organização popular. Até ser ocupado pela população local e servir como sede das reuniões da Asamblea Popular de Palermo Viejo, em 2001, o mercado construído pelo Intendente Torcuato de Alvear, em 1914 (Figura 37), estava passando por um processo de abandono e iminente privatização, por parte do seu proprietário e controlador, a Intendência da Ciudad Autônoma de Buenos Aires. Liderados, dentre outros, pela arquiteta e moradora local Ines Fernandez, a comunidade vecinal de Palermo Viejo reivindicou a manutenção e administração comunitária de seu velho Mercado.

Além de organizar marchas até a Praça de Maio, para juntar a comunidade do bairro aos demais “piqueteiros” de cada reivindicação em comum, o Mercado Bonpland defende o princípio da economia solidária, vendendo produtos originários de outros elos da cadeia produtiva insurgente, como das “fábricas recuperadas” e assentamentos agrìcolas, além de outras cooperativas igualmente engajadas em projetos sociais, desde ecoagricultores imigrantes até tecelãs ex-detentas.

Bonpland é o único antigo mercado público reconhecido como patrimônio histórico de Buenos Aires, que já teve mais de 40 e hoje ainda possui pelo menos outros 10 necessitando o mesmo reconhecimento. Em Palermo o tombamento não veio à toa, nem de graça: de acordo com relatos dos líderes do movimento, em todas as fases do processo a reivindicação enfrentou objeções e ingerências do poder municipal. Em 2004 finalmente o prédio recebe o reconhecimento histórico das autoridades locais, registrada com a fixação de uma placa de bronze na fachada. Apenas quatro anos depois, a pretexto de executar as obras de reforma do prédio a placa é retirada e, alguns meses depois, após remover revestimentos, detalhes ornamentais e todo o mobiliário do interior do prédio a obra é dada como encerrada, sem a reposição da placa. Para a Asamblea Popular de Palermo Viejo a intenção era clara: preparar o mercado para uma nova tentativa de privatização. A seqüência é uma nova reocupação e pressão sobre as autoridades, mobilização que provavelmente eles não esperavam, pois em 2008 o Bonpland já não era mais o centro comunitário de resistência à crise do Corralito, de alguns anos antes.

Pressionada, a Intendência retoma as obras no interior do prédio, construindo

FIGURA 37: Inauguração do Mercado Bonpland, em 1914. FONTE: Museo de la Ciudad de Buenos Aires, Argentina.

novas instalações para as bancas e, em 2009 finalmente recoloca a placa de bronze que registra o tombamento do Mercado. Na cerimônia de descerramento a polícia se faz presente, tentando executar ordens de encerrar o evento (Figura 38), no que foi entendido pelos moradores como uma última tentativa de impedir a apropriação comunitária do lugar.

Por detrás da trajetória de disputas em torno do Mercado Bonpland transparecem interesses de redes supermercadistas; a divisão dos moradores do bairro após o pior período da crise argentina, com a conseqüente aversão da burguesia local ao núcleo anarco-cooperativista que se formava; uma expectativa negativa quanto à privatização do lugar, alimentada pelo efeito resultante em outros mercados, como o próprio Abasto, já comentado anteriormente, e o Ciudad de Buenos Aires, vendido para a rede de supermercados Coto (Figura 38).

FIGURA 38: Cerimônia de descerramento da placa alusiva ao tombamento do Mercado Bonpland.

FIGURA 39: Antigo Mercado Ciudad de Buenos Aires. Ex-Shopping Spinetto e atual Supermercado Coto.

Além disso, os fenômenos político-sociais da nação vizinha reconhecidamente se revestem de um teor passional incomum no Brasil (FAUSTO e DEVOTO, 2005, p. 26), o que pode ser usado a favor de análises comparativas, pois os casos estudados lá expõem texturas que, apesar de se repetirem aqui, muitas vezes são “anistiadas” da memória local. Dessa forma, a Praça de Maio, pequeno ponto para onde parecem convergir todas as rotas, não só de Buenos Aires, como de toda nação Argentina, funciona como observatório microscópico de muitas tensões sociais comuns ao restante da América Latina.

Diante de crises de sub-aproveitamento dos meios de produção, com excesso de mão de obra parada, terras improdutivas, indústrias abandonadas e/ou comércio inoperante a Argentina demonstrou que é sempre bom ter “células-tronco” embrionárias à disposição, para recuperar, por “clonagem”, como sugere Castello, as frágeis tessituras danificadas do organismo econômico global. Os mercados públicos e as feiras livres formam boas amostras desse “material genético” original, ainda preservados no meio urbano.

Conforme foi constatado, apesar da economia formal argentina caber dentro da economia subterrânea brasileira, a mendicância por lá é rara, justamente porque na ausência de oportunidades “formais” há mercado para muitas atividades francas31, que por

isso mesmo nem sempre se somam ao PIB do país. Há, além disso, bloqueios comunitários à instalação de grandes centros comerciais, como o movimento de resistência à construção de um Shopping Center no Bairro de Caballito. O urbanista francês André-Marie Bourlon, responsável por muitas experiências de revitalização urbana no mundo todo, diagnosticou, em seminário proferido na FADU32, que se Buenos Aires tivesse o padrão de abastecimento das grandes cidades brasileiras o sistema de tráfego da capital argentina já teria entrado em colapso.

Mesmo tendo sido fechados a força, na passagem das décadas de 1970 para 1980, os mercados públicos portenhos deixaram o legado do pequeno comércio local, que hoje predomina na cidade. Da mesma forma, alguns daqueles pequenos mercados vão sendo reabertos, como o Centenera, no bairro de mesmo nome, e Uriarte, em Villa Crespo (Figura 40), além do já mencionado Bonpland e muitos outros. Já no Brasil os mercados públicos foram se deteriorando a partir do momento em que passaram a competir com os supermercados, com destaque para os incêndios nas décadas de 1960, que quase riscou do mapa o Mercado Central de Pelotas, assim como ocorreu em Salvador (BA).

Talvez por não ter sido oficialmente truculenta, a substituição dos mercados

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Atente-se para o fato de que não se tratam de atividades “informais”. No Brasil, a escassez de atividades isentas de tributação não permite a geração de um ramo regular de mercado “franco”, ficando, jogando tanto pequenas manufaturas quanto piratas na mesma vala comum da informalidade.

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Seminário Proyecto y Gestión Urbana en Buenos Aires, promovido pela Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo da Universidad de Buenos Aires, em agosto de 2009.

públicos por super e hipermercados não sofreu resistências comunitárias como na Argentina, e hoje cada brasileiro economicamente ativo não perde menos do que três horas semanais dentro desses estabelecimentos, por semana, em média.

FIGURA 40: Mercados Uriarte (à esquerda) e Centenera (à direita), em Buenos Aires.