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3. PROBLEMATIZAÇÃO

3.3 O PAPEL NORMATIZADOR DO ARQUITETO

3.3.1 Humano, Anormalmente Humano

Outrossim, a suposta tendência humana em busca de ordem e segurança é na verdade contingente, sendo ela própria determinada pela necessidade criada, e não uma demanda natural, como sugere o geógrafo sino-estadunidense Yi-Fu Tuan, professor emérito da Wisconsin-Madisons University:

É um erro pensar que os seres humanos sempre procuram estabilidade e ordem. Qualquer um que tenha experiência sabe que a ordem é transitória. Completamente separada dos acidentes cotidianos e do peso das forças externas, sobre os quais uma pessoa tem pouco controle, a própria vida é crescimento e deterioração: é mudança, senão não é vida. Porque a mudança ocorre e é inevitável nos tornamos ansiosos. A ansiedade nos leva a procurar segurança, ou, ao contrário, aventura. (TUAN, 2005, p. 17)

Na mesma linha, Zygmunt Bauman propõe que a principal atração da vida urbana é a capacidade de surpreender e ser ocasião de aventura, e não exatamente ordem e segurança, que acabam por se traduzir em tédio: “O que se substitui à insegurança não é o êxtase da calma, mas a maldição do tédio. Será possível eliminar o medo suprimindo igualmente o tédio? Há razões para pressentirmos que esta interrogação se tornará o dilema fundamental que os urbanistas e arquitectos deveriam enfrentar” (Bauman, 2006, p. 65-66). O autor, em passagem anterior, já diagnosticara: “Como falta conforto à nossa existência, acabámos por nos conformar com a segurança, ou com a sua ficção” (Idem, p. 49).

As pessoas querem se encontrar umas com as outras, querem trocar olhares e afetos, estão inseguras e querem logo “descobrir” que todos gostam e odeiam exatamente das mesmas coisas. É muito oportuna essa ilusão do encontro fácil, da “sedução programada”, do afeto gratuito; enquanto que, em oposição, é muito assustadora, e igualmente fácil, a perspectiva de enquadramento nos cada vez mais numerosos “desvios de comportamento”. Em sua 10ª revisão, de 2001, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionadas à Saúde, da Organização Mundial da Saúde, elenca nada menos que 99 “transtornos mentais e comportamentais”.

Ou seja, se por um lado ocorre um oportuno processo de normalização, por outro lado, praticamente não há atitude autodeterminada que escape imune ao risco de ser diagnosticada como doença. Esse fenômeno não é exatamente novo, Michel Foucault o identifica já no século XVII, no que ele chama “nascimento da medicina social” (FOUCAULT, 2004, p. 79-98). Da mesma forma Yi-Fu Tuan remete há tempos imemoriais a “invenção” do medo, não só de se descobrir atacado por uma doença, como de praticamente tudo que, ao redor do homem, fugisse à sua compreensão.

Se desde os tempos mais remotos essas “paisagens do medo” fazem parte do dia a dia do ser humano, hoje o medo é usado como argumento de venda da paisagem urbana. Empregando os conceitos de “estìmulo percebido” e “percepção estimulada”, do arquiteto brasileiro Lineu Castello (2007, p.31), pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pode-se chegar a esta conclusão, de que o medo sempre foi um “estìmulo percebido” na paisagem, mas, cada vez mais, é uma “percepção estimulada” (para venda).

O medo leva as pessoas a considerarem gratificantes experiências “existenciais” controladas, e a deixarem-se levar, ainda que momentaneamente, por “seduções programadas”, como definem os franceses Jean Baudrillard (sociólogo, filósofo, poeta e fotógrafo, falecido em 2007) e Jean Nouvel (arquiteto) ao estímulo sensorial predominante na cidade contemporânea. Porém eles o vêem como uma ambição totalizante impossível, dado que todo espaço urbano resguarda algo ininteligível. A regra do espaço urbano é contingente, o que o torna capaz de acolher o acontecimento:

No se puede programar la seducción, y este efecto de desaparición, sea de las cosas o de la ambivalencia generalizada, no puede ser oficializado. Debe permanecer en secreto. (...) La regla del juego es verdaderamente el secreto, y el secreto se vuelve sin duda cada vez más difícil en un mundo como el nuestro, donde todas las cosas se brindan en una promiscuidad total, de tal manera que no existe intersticio, no existe vacío, no existe la nada, nada de esto existe ya, y la nada es el lugar del secreto, el lugar donde las cosas pierden su sentido, donde se desidentifican, no solamente donde adquirirían todos los sentidos posibles, sino donde permanecen verdaderamente, en cualquier parte, ininteligibles. Creo que en todo edificio, en toda calle, hay algo que produce acontecimiento y es eso lo ininteligible. Esto puede darse también en las situaciones que les ocurren a las personas o en su comportamiento, en algo que no percibes, que no puedes programar. (BAUDRILLARD e NOUVEL, 2001, p.29-30)

Da mesma forma, Zygmunt Bauman (2008, p. 30) faz uma aposta no instinto de autodeterminação do ser humano, pois “o fetichismo da subjetividade, tal como, antes dele, o fetichismo da mercadoria, baseia-se numa mentira. (...) Ambas as variações tropeçam e caem diante do mesmo obstáculo: a teimosia do ser humano, que resiste bravamente às tentativas de objetificá-lo.” Em oposição, tal instinto de autodeterminação e a ocasião da aventura “ininteligìvel” estariam sendo transformados em sentimento de culpa, pela cultura do medo.

A percepção do medo estaria sendo estimulada pelos “bons dividendos” gerados na chamada sociedade de consumo: “A insegurança e o medo pode produzir (e produzem) bons dividendos. (...) Tal como a boa moeda sonante e pronta para qualquer investimento, o capital do medo pode empregar-se no negócio que melhor se entender: tanto comercial como polìtico” (Bauman, 2006, p. 52). A esse processo, de controle pela culpa e

“empacotamento”23 da realidade para melhor consumo dá-se o nome de reificação:

É extremeamente difícil para os indivíduos se perceberem que a estrutura social onde vivem é assim porque os homens a fizeram e a mantêm assim. Ela se apresenta a nós sempre como uma coisa objetiva: afinal, estava aí antes de nascermos e continuará depois de nossa morte. Este fenômeno é chamado de reificação (...).

Esta é a estranha dialética que reje o mundo humano: o homem cria sua realidade através das instituições, que lhe dão uma estrutura social, mas passa então a ser "condicionado" por tais instituições. (DUARTE, 1984, p. 42-44)

O capítulo seguinte aborda o cenário que se reifica ao redor do próprio homem, enquanto esse finge contruí-lo. A relação entre o homem e a cidade, sob a mão invisível do mercado, forma esse Anel de Moebius. Sem ter a pretensão de planificá-lo, as próximas seções apenas contornam suas curvas, tencionando pelo lado de uma maior ação consciente do homem sobre o seu espaço.

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Se a reificação pode ser entendida como um processo de “empacotamento” da realidade, são alguns dos “empacotadores”, os publicitários, que criaram a expressão “pensar fora da caixa” (ou do pacote), como a atitude primordial de um bom profissional de mídia.

4. O PAPEL DOS MERCADOS PÚBLICOS NO CONFLITO ENTRE A