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A INFLUÊNCIA DAS ESCOLAS FRANCESAS

2. AS ORIGENS ANCESTRAIS DOS LUGARES DE COMÉRCIO

2.1 A INFLUÊNCIA DAS ESCOLAS FRANCESAS

A superação da Economia de Troca pela Economia de Mercado exigiu, num curto período de tempo, a criação e aperfeiçoamento dos sistemas monetários, parâmetros comuns das relações comerciais. O processo de monetização é descrito mais detalhadamente por Michel Foucault, em sua Análise das Riquezas, onde o pensador francês foca os séculos XVII e XVIII, quando os temas essenciais da economia política teriam se estabelecido:

Uma economia científica se tornara durante muito tempo impossível graças a uma problemática puramente moral do lucro e da renda (teoria do preço justo, justificação ou condenação do interesse) e, em seguida, por causa de uma confusão sistemática entre moeda e riqueza, valor e preço de mercado (...). Mas, pouco a pouco o século XVIII teria assegurado as distinções essenciais e discernido alguns dos grandes problemas que a economia positiva, em seguida, não cessaria de tratar com instrumentos mais bem adaptados: a moeda teria assim descoberto seu caráter convencional, ainda que não-arbitrário (...); ter-se-ia também começado a distinguir, uma da outra, a teoria do preço de troca e a do valor intrínseco; ter-se-ia definido o grande “paradoxo do valor”, opondo à inútil carestia do diamante a barateza dessa água sem a qual não podemos viver; ter-se-ia começado a vincular o valor a uma teoria geral da utilidade; ter-se- ia compreendido a importância dos preços altos para o desenvolvimento do comércio; enfim (...) ter-se-ia encetado a análise do mecanismo de produção. (FOUCAULT, 1999, p. 228-229)

Portanto, não é por acaso que, exatamente ao final desse período, no ano de 1809, o arquiteto francês Jean-Nicolas-Louis Durand publicou seu tratado de arquitetura Précis des leçons d‟architecture données à l‟École royale polytechnique, no qual propõe, dentro de sua própria concepção de método projetual, um novo modelo de mercado público, que viria a superar as supostas deficiências dos modelos anteriores. Outrossim, em 1771 o arquiteto Jacques-François Blondel já denunciava, em seu Cours d'Architecture, que os mercados existentes até 1770, inclusive os mais novos, eram equipamentos “totalmente inadequados” às novas necessidades da época (ROMANO, 2004, p. 49).

Blondel era neto e sobrinho de dois outros grandes arquitetos em suas respectivas épocas, no que ele seguiu os seus passos, tornando-se um arquiteto de grande influência na França. Seus tratados serviram de referência para os cursos da École Polytechnique de París, de caráter militar, onde estudou e lecionou J.N.L. Durand. Os mercados criticados por Blondel eram estruturas a céu aberto, como o de Liège (Figura 7).

A atitude de institucionalização das relações comerciais proposta por Blondel, através de grandes estruturas específicas para a atividade, antecipava uma tendência que seria comum após a Revolução Francesa, com a ajuda do tratado de Durand, de 1809, e na Grã-Bretanha, após um Ato Governamental local, de 1858, conforme observa Heliana Vargas:

Desde o estabelecimento de um sistema moderno de governo local, depois da Revolução Francesa e, na Grã-Bretanha, com o Ato do Governo Local, em 1858, houve uma tendência para institucionalizar os antigos mercados e de diminuir as desvantagens dos mercados ao ar livre, criando espaço reservados onde as barracas poderiam ser permanentes e onde fossem providenciados serviços para coleta de lixo e controle sanitário. O mercado coberto era, pois, um edifício capaz de acolher um grande número de lojas e atrair um público diversificado.

Dois aspectos assumiram importância considerável. O aumento numérico de mercados para abastecer uma população que crescia e se urbanizava fortemente e a preocupação com as questões sanitárias dos espaços de mercados abertos. (VARGAS, 2001, p. 160)

Com base na pesquisa do arquiteto Rosenthal Schlee, professor da Universidade Federal de Santa Maria, Leonora Romano aponta o tratado arquitetônico de Durand, de 1809, como a referência essencial para o projeto da Praça do Mercado de Pelotas. No entanto, além de não apresentar uma semelhança inequívoca entre os dois casos, o método de J.N.L. Durand foi importante, na época, não apenas para os mercados públicos cobertos como para toda a arquitetura eclética oitocentista (PATETTA In: FABRIS, 1987, p. 12). Ao que parece a proposta de Durand fica muito mais evidente em galerias e passages, como

FIGURA 7: Antiga Place Marché de Liège, na Bélgica. Gravura de Nabholz, entorno de 1737. FONTE: <http://commons.wikimedia.org>. Acesso: 14 de setembro de 2010.

Au Bon Marché, na França, ou a Galeria Pacífico, em Buenos Aires, do que na arquitetura dos mercados públicos gaúchos do século XIX.

A proposta de Durand, enquanto metodológica, previa mecanismos de adaptação aos condicionantes de cada projeto. Para ele “a finalidade da arquitetura é a utilidade pública, conservação e bem-estar dos indivíduos e da sociedade através de princípios construtivos, respeitantes à conveniência: solidez, saúde, conforto, economia familiar, simetria, regularidade e simplicidade.” Exatamente é essa a estratégia projetual que fica evidenciada na Explicação das Estampas do Projeto para a Praça do Mercado desta Cidade de Pelotas (Apêndice B, p. 177), de autoria desconhecida, encaminhada pela Câmara Municipal de Pelotas para a Presidência da Província, em 12 de fevereiro de 1849, onde seu desconhecido autor se mostrava preocupado com a pouca ventilação dos quartos, e questionava as razões de tal ordenamento “em um paìs quente como o Brasil”:

Hé o interior do edifício quase sempre a parte menos pensada, no entanto dahi nace a salubridade ou as epidemias, como se poderá em um país quente como o Brasil. Conservar os viveres abafados em pequenos quartinhos só abertos por uma mizeravel portinha que nem o ar necessário aos pombeiro lhe dá!

E disto um exemplo o mercado de Porto Alegre e Rio Grande. Para corrigir então esse defeito dei ao interior deste mercado uma fachada composta por um entablamento continuo, sustentada por uma columnata formando uma galeria aberta de 12 palmos de passeio, sendo as paredes colaterais a estas columnas abertas por arcos de dez palmos, só feichados por uma grade de pau para melhor giro do ar interno, e conservação dos viveres. Cada um destes arcos, ou portas, designa um dos pequenos armasens com quinse palmos em quadro, e vinte um de pé direito só assoalhado na galeria, este assoalho deverá ser pela parte superior para que as linhas formem com o assoalho uns [caixões?], gênero de forros próprios as galerias, rezultando disto não só a perfeição como a utilidade de servir como rezervatório de generos seccos.

O autor da “Explicação das Estampas” estava mais preocupado em dominar os condicionantes locais, como o clima, do que em obedecer às ordens clássicas, como fariam, mais tarde os arquitetos tardosetecentista, formados na civil École Supérieure des Beaux- Arts. Ao contrário de seus colegas civis, amantes da ornamentação efusiva, inspirada em modelos neogregos, neorromanos e neorrenascentistas, Durand e sua École Royale Polytechnique antecipava o racionalismo pragmático que iria se adaptar perfeitamente aos métodos industriais nascentes em sua época, configurando-se num prelúdio do futuro Movimento Moderno:

Não devemos nos esforçar por tornar um edifício agradável, já que, se houver unicamente a preocupação com o preenchimento dos requisitos práticos é impossível que não se torne agradável. (...) Tampouco devemos buscar a variedade, o efeito ou o caráter nos edifícios, posto que é impossível que o arquiteto não tenha tido no mais alto grau todas essas

qualidades quando, fazendo uso somente dos verdadeiros meios desta arte, tenha lhes dado tudo que a eles faz falta, nada mais do que o necessário. É portanto, apenas da disposição que deve se ocupar o arquiteto (...). (DURAND apud ROMANO, 2004, p. 48)

No entanto, a postura dos engenheiros militares eurogaúchos, além de se referirem ao “novo” racionalismo de Durand, se refere também às recomendações dos tratadistas militares da Roma Antiga, reproduzidas e adaptadas por vários outros estrategistas militares ao longo da história, como o italiano Maquiavel, no século XIII e o prussiano Carl Von Clausewitz, contemporâneo de Durand. Mais do que ser vanguarda do pensamento racionalista, ditado por novas condições econômicas e tecnológicas, em oposição à ornamentação da Beaux Arts, a escola de arquitetura militar francesa colocava em prática antigas recomendações romanas que, por sua vez, objetivavam superar o pensamento grego.