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3. PROBLEMATIZAÇÃO

3.1 PRODUÇÃO E CONSUMO DO HOMEM

Hermes, o deus grego que empresta seu nome à etimologia do método herme- nêutico é, também, o Deus do Comércio. Por isso a representação de Hermes, além de estar presente em logomarcas de associações e clubes comerciais, se faz presente em alguns mercados, como no de Pelotas e, igualmente, em livros de hermenêutica, nos quais ele é apresentado como patrono da “teoria geral da compreensão”. A mitologia clássica ainda acrescenta que o deus com asas nos pés foi o criador da linguagem e da escrita, e era o patrono da comunicação e do entendimento humano entre os gregos.

Esta é uma noção primordial para o desenvolvimento das proposições deste trabalho: Comércio e entendimento humano sempre andaram juntos, ao menos enquanto a relação entre ofertas e demandas pode ser satisfatoriamente equilibrada. Em cenários de desequilíbrio comercial, no entanto, pequenas e grandes tiranias foram e continuam sendo cometidas, como já advertia o pensador alemão Max Weber, na penúltima virada de século:

Em todos os períodos históricos, sempre que foi possível houve a aquisição cruel, desligada de qualquer norma ética. Como a guerra e a pirataria, o comércio tem sido, muitas vezes, irrestrito em suas relações com estrangeiros e com externos ao grupo. A dupla ética permitiu o que era proibido negociar entre irmãos.

A aquisição capitalista aventureira tem sido familiar em todos os tipos de sociedade econômica que conheceram o comércio com o uso do dinheiro (...). Do mesmo modo, a atitude interior do aventureiro, que zomba de qualquer limitação ética, tem sido universal. A implacabilidade absoluta e voluntária na aquisição tem muitas vezes estado estritamente ligada à mais rígida conformidade com a tradição. (WEBER, 2001, p. 50)

De fato, como lembra a arquiteta e economista Heliana Comin Vargas, professora da Universidade de São Paulo, não é de hoje que a atividade comercial carrega consigo o preconceito de ser uma “atividade indigna, pouco nobre e especulativa” (VARGAS, 2001, p. 19). Desde a Grécia antiga o deus Mercúrio (versão romana de Hermes) que, segundo a mitologia clássica, protegeria os comerciantes, era também o deus dos ladrões.

Esse preconceito milenar parece afetar a interpretação do comércio enquanto fenômeno social, e mais ainda enquanto objeto da memória social. Em termos de patrimônio cultural, é ainda indefinido o papel que será dado aos saberes, artefatos e lugares de comércio. Mesmo os mercados públicos, cuja patrimonialização é frequentemente reivindicada pelas comunidades locais em diversos países, os seus inventários normalmente ficam restritos ao monumento arquitetônico, reconvertido a outros usos. Desnaturalizar a visão segundo a qual os mercados públicos representam um modelo de produção

incompatível com a dinâmica econômica das cidades atuais, está contido no objetivo deste trabalho, que é o de fomentar a apropriação da memória social em torno deles.

Tal noção naturalizada, só se torna ainda mais forte quando a Academia, ao condenar a reificação da realidade, vira as costas também para a atividade comercial, como reclama a antropóloga do consumo Diana Lima, pesquisadora da UFRGS:

O paradoxo entre consumir muito e de muitas maneiras diferentes, e de pensar pouco sobre esta prática, não é apenas um erro. O preconceito não é só uma forma perigosa de perceber um fenômeno. Por conta do preconceito, muitas vezes, deixamos de compreender o fenômeno em questão e ainda colocamos de lado tudo o mais que ele envolve. (LIMA, 2010, p. 7)

Deixar de lado “tudo o mais que o fenômeno do consumo envolve” deve incluir os produtos e os lugares criados para vendê-los, dentre os quais, um dos mais insólitos ausentes são os mercados públicos. No mercado editorial (é impossível evitar a confusão dos sentidos de “mercado”) encontram-se poucas publicações sobre os espaços comerciais19, especialmente enquanto lugares de memória.

O convívio até certo ponto hostil, entre Academia e Mercado, impede que um se reconheça pelos olhos do outro. Por um lado é verdade que desde a monastização do saber, nos primórdios da Idade Média, o lucro é tratado como ação pecaminosa pela Academia: "nullus christianus debet esse mercator"20. Se naqueles tempos a salvação da alma do bom cristão dependia do controle agostiniano de suas tentações, a vanguarda intelectual, no Século XX, dependia de sua resistência adorniana ao fetiche da mercadoria:

Mientras el individuo desaparece frente al aparato al que sirve, ese aparato lo provee como nunca lo ha hecho. En el estado injusto la impotencia y la dirigibilidad de la masa crece con la cantidad de bienes que le es asignada. La elevación del nivel de vida de los inferiores materialmente considerable y socialmente insignificante – se refleja en la aparente e hipócrita difusión del espíritu, cuyo verdadero interés es la negación de la reificación. El espíritu no puede menos que debilitarse cuando es consolidado como patrimonio cultural y distribuido con fines de consumo. El alud de informaciones minuciosas y de diversiones domesticadas corrompe y estupidiza al mismo tiempo. (ADORNO, s/d, p. 6)

No entanto, há de se concordar que, diante do aparato de mídia criado para promover o consumo, ou, melhor, diante do sistema de reprodução cultural, inventado para gerar um mundo onde o consumo de objetos se transforma numa objetivação de mundo a ser consumida, o que permanecerá como legado humano para a própria humanidade?

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Afora, é claro, as dicas de placemarketing e arquitetura de interiores para espaços comerciais, que, ainda assim, não são exatamente abundante.

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Karl Marx já preconizava que, diferentemente do animal, é inerente ao ser humano se confrontar entre o sentido de sua existência e a pragmática do seu existir:

O animal identifica-se prontamente com a sua atividade vital. Não se diferencia dela. É a sua própria atividade. Mas o homem faz da atividade vital o objeto da vontade e da consciência. Possui uma atividade vital lúcida.

(...) O trabalho alienado inverte a relação, uma vez que o homem, enquanto ser lúcido, transforma a sua atividade vital, o seu ser, em simples meio da sua existência. (MARX, 2001 [1857], p. 116)

O projeto filosófico de Marx era a emancipação revolucionária da comunidade de sujeitos, sobretudo em relação à exploração do trabalho alienado, substituindo-o pelo trabalho criativo e lúcido (“objetivação da vida genérica”). Sem estar “sujeito” à ditadura das falsas necessidades, de produção e consumo, dos objetos demandados pelo sistema, o homem se tornaria livre. Livre para criar seu próprio mundo, inclusive, “em de acordo com as leis da beleza”:

O homem produz quando se encontra livre da necessidade, o animal apenas se produz a si, ao passo que o homem reproduz toda natureza; o seu produto [do animal] pertence imediatamente ao seu corpo, enquanto o homem é livre diante do seu produto. (...) assim, o homem constrói também em de acordo com as leis da beleza. (Idem, p. 117)

Esta é a premissa básica das “idéias estéticas de Marx” (VÁZQUEZ, 1968), segundo a qual, a beleza só seria possível quando antecipada pela precondição moral do trabalho livre. Da mesma forma, a objetivação do mundo real seria dada pela duplicação projetiva do homem sobre a natureza, atribuindo a ela sua própria imagem:

...o elemento do trabalho é a objetivação da vida genérica do homem: ao não se reproduzir somente intelectualmente, como na consciência, mas ativamente, ele se duplica de modo real e percebe a sua própria imagem num mundo por ele criado. Na medida em que o trabalho alienado tira do homem o elemento da sua produção, rouba-lhe do mesmo modo a sua vida genérica, a sua objetividade real como ser genérico, e transforma em desvantagem a sua vantagem sobre o animal. (Idem)

Mas, não haveria espaço para beleza e experiências existenciais, dentro da reprodução de mundo capitalista? Devido este tipo de determinismo, os ideais humanistas de “beleza”, “objetividade real”, “lucidez”, ou emergência de “vida genérica”, presentes na obra de Marx, ganharam, muitas vezes, uma opacidade quase niilista no discurso dos marxistas.

Estudos antropológicos mais recentes, bem mais recentes, por exemplo, que aqueles nos quais Friedrich Engels baseou seu A origem da família, da propriedade privada e do Estado [1884], ajudam a contemporizar os axiomas marxistas. A presente dissertação

compartilha, por exemplo, com a antropóloga do consumo, Diana Noqueira Lima, pesquisadora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, a premissa geral de que o consumidor deve ser visto como sujeito pleno e autônomo, dotado de livre-arbítrio e capacidade de julgamento (LIMA, 2010, p.21). Qualquer teoria reducionista sobre o papel do sujeito, como todas as formas de determinismo, deve ser abominada, porque seu efeito sobre a sociedade é a redução do sujeito na prática.

O que se quer dizer com isso é que fazer a crítica ao consumo a partir da noção de que os consumidores são simplesmente vítimas passivas das estratégias de marketing, autoriza os profissionais de mídia, assim como, seus colegas cada vez mais próximos, - arquitetos e designers, a tratar os receptores da mensagem como massa acéfala. Ocorre que essa atitude infantilizante é que cria o sujeito imaturo, irresponsável e heterônomo, ou seja, a atitude passiva não é pré-dada pela natureza individual de cada ser humano, e sim determinada pela amnésia coletiva da humanidade