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4 ACONTECIMENTOS NA PRODUÇÃO DO CUIDADO

4.9 Caso 9: “Cadê a cuidadora? Chama ela lá!”

Na primeira visita ao paciente (A14), estavam presentes a enfermeira, a médica e duas técnicas de enfermagem (PA3 e PA5). O paciente é idoso, tetraplégico, sequelado de AVC e foi acompanhado apenas em uma visita.

A primeira parte da residência é composta por uma varanda. Ao lado possui o quarto do paciente, que se situa do lado de fora da residência. Este quarto é isolado do restante da casa. Nele encontram-se uma cama de casal, uma geladeira, um guarda-roupa e uma cômoda.

Devido à ausência do cuidador principal, para receber a equipe e relatar as condições do paciente, os profissionais adentram ao domicilio e começam a realizar a assistência.

Na parte da manhã, o paciente havia consultado com o médico especialista. Os profissionais precisavam que a cuidadora informasse as orientações e condutas indicadas para possibilitar a compreensão do paciente integralmente.

 Enfermeira (PA10) pergunta à filha do paciente: “O que aconteceu com o paciente, que o pé dele está machucado e sangrando?”.

 Filha: “Hoje, quando fui colocá-lo na cadeira de rodas para levá-lo ao medico, o pé dele arrastou e machucou”.

[...]

 PA10: “Cadê a cuidadora (filha mais velha)?”.  Filha: “Está na casa dela”.

 A14: “Chama ela lá”.

 Filha: “Acho que ela não vai descer”.

 A14: “Diz ela que são os profissionais do programa que ela vem”. A filha foi lá e voltou sem a cuidadora.

 PA10: “Por que ela não veio?”.

 Filha: “Ela está cozinhando e disse que os resultados estão em cima da

geladeira”.

Os profissionais procuram, mas não encontram (Nota Observacional, 1ªvisita, A14,

12-02-2015, p.22).

Mesmo com a ausência da cuidadora, os profissionais realizam a assistência. Os profissionais percebem que os cuidados assistenciais não estão sendo realizados adequadamente.

É possível captar, em alguns momentos, na fala do paciente, a preocupação de não condenar o cuidador, uma tentativa de poupá-lo, por se sentir um “fardo”.

“Pode ficar tranquilo que nós vamos dar um jeito”, diz PA10, ao paciente.

A médica, ao analisar a ferida sacral, verifica que ela piorou, também observou que não havia sido feito a limpeza naquele dia.

[...]

 PA11: “Deve passar óleo todos os dias no pé e na perna, pelo menos três vez ao dia”.

 A14: “Tadinha, elas passam”.

 A11 “Se passasse, não estaria desta forma, descascando a pele”. (Nota Observacional, 1ª visita, A14 –12-02-2015, p.22).

Ao finalizar o atendimento, os profissionais deixam afixado todos os procedimentos que devem ser realizados com o paciente. Ao saírem dizem: “Se, na próxima visita, a cuidadora não comparecer, o paciente será desligado” (Nota Observacional, visita 5, A14 – 12-02-2015, p.22).

A negligência do cuidador com o paciente é reconhecida como um problema pelos profissionais.

[...] alguns assinam o termo de responsabilidade, assinam como cuidador oficial, pelo fato de tá usando isso, pelo fato de estarem tirando o paciente do hospital. Mas, quando chega em casa, não assume, né. Ai interrompe, fica meio que injustificável a gente fazer a nossa parte, sendo que a família, que é responsável por uma parte maior, né, não, não está fazendo (Entrevista PB1).

Nessa situação, a produção do cuidado vem se interrompendo desde o momento da entrada da equipe ao domicilio. Durante a assistência, esta ruptura se alargou após a negativa da presença da cuidadora, informando que estaria ocupada. Outro fator que culminou nesta tensão foram as observações, por parte dos profissionais, quanto à falta de cuidados com o paciente. A pele do paciente estava descamando e ferida devido à falta de hidratação. Essas situações contribuíram para limitar as ações de cuidado integral, com envolvimento e comprometimento de todas as partes: profissionais e cuidador.

A equipe atua de forma emancipadora durante a produção do cuidado, com presteza e diligencia para ofertar aquilo que o paciente necessita. Entrelaçado a isso, verifica-se, nessa situação, que a equipe se tensiona quanto ao rigor da presença de um cuidador.

Os profissionais tentam, assim, atuar como mediadores para que o usuário não seja prejudicado. Realizam anotações e deixam afixados na geladeira os cuidados necessários. Dessa forma, os profissionais têm como tática de orientação o conselho ao paciente sobre a necessidade de solicitar um cuidado mais efetivo e participativo. Não se pode esquecer que o poder possui dinâmica própria, ancorada nas regularidades e nas leis. Assim, é necessária virtude para um bom governante, tal como: a paciência, a sabedoria e a diligência (FOUCAULT, 2000). Nas cenas relatadas, esses aspectos foram observados por parte da equipe.

Mas, mesmo com toda essa atuação, após buscas incessantes de estabelecer vínculo, ocorreu a negativa da cuidadora. Isso leva os profissionais a estabelecerem uma sanção expressa pelo desligamento do paciente. Este embate é ponto de irrupção das relações existentes (CASTELO BRANCO, 2015). A censura e interdição do cuidado são estratégias para que os sujeitos se adequem às normas, refletindo-se, no caso estudado, em mecanismos de controle que tendiam para restringir a liberdade de escolha da cuidadora.

Vale mencionar que acompanhar o paciente em apenas uma visita não permitiu captar exatamente a plenitude do acontecimento. Para superar esse limite, a pesquisadora deveria ter reestabelecido a experiência mostrando o momento histórico e os processos que os constituem (PAGNI, 2010), o que não foi possível. Mas pode-se levar em consideração pontos que corroboram para a negativa da presença da cuidadora durante a assistência: possuir vínculo parental, acumular atribuições do lar e de cuidado ao paciente idoso e muito dependente.

O desgaste faz com que o cuidador se desvincule do cuidado. A literatura indica que a dificuldade de estabelecer o cuidador no domicilio pode ser resultante de distintos fatores tais como: queda da qualidade de vida, sobrecarga e intensidade da tarefa, possuir outras atividades paralelas ao cuidado (AMENDOLA; OLIVEIRA; ALVARENGA, 2007; SCHOSSLER; CROSSETTI, 2008) Estes fatores corroboram para a redução do convívio social, mudança das atividades diárias, sobrecarga, tensões, fadiga, frustração e depressão, decorrente da tarefa contínua e duradoura do cuidado. Podem referir-se também as questões financeiras, falta de orientação, desencadeando uma situação de desgaste físico e emocional (VIEIRA et al., 2011; GIR, 2001)

Tornar-se cuidador apresenta pontos que vão além da objetivação, do conjunto de atividades determinadas. É um processo de subjetivação no qual compreende o ponto de vista pessoal e interior; algo particular e parcial que vai sendo constituído conforme o desenvolvimento da vivência e das experiências da vida e, por isso, é constitutivo do modo de ser do individual, subjetivo. Por tanto, para ser tornar um cuidador, faz-se necessária a construção da objetividade como estimuladora da construção da subjetividade de um cuidador integral.