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4 ACONTECIMENTOS NA PRODUÇÃO DO CUIDADO

4.2 Caso 2: “Não fui ao aniversário Quero morrer!”

A paciente (B12) foi acompanhada durante seis visitas. A usuária possui 76 anos, é paraplégica e mora no domicilio com outros três irmãos. O quarto da paciente é amplo e organizado. É composto por uma cama hospitalar e uma de solteiro. De frente para as camas, há uma cômoda com uma televisão e um guarda-roupa. No quarto, há também um baú de plástico com os medicamentos e produtos da usuária.

Os profissionais, durante a assistência, mantêm uma interação com a usuária. Ao final de todas as visitas, a cuidadora entrega algum agrado, tal como balas e chocolates para todos. A usuária gosta de estar com pessoas ao entorno para interagir, relacionar e conversar.

Na primeira visita, a cuidadora diz: “Ela gostou do dia em que foi à UPA, disse que estava vendo gente”. Na quinta visita, a cuidadora menciona: “A usuária me chama o tempo todo. Às vezes, fico com a cabeça cansada, porque ela chama toda hora” (Nota Observacional, 4ª visita, B12, 04-05-2015, p.81).

Na segunda e terceira visitas, a usuária convida os profissionais a participarem da festa de um amigo e demonstra grande expectativa para esta comemoração.

 CB12 (cuidadora): “Ela está convidando todo mundo para o aniversário de outra pessoa. Ela tem mania de fazer isso”.

 B12 (paciente): “O aniversario será as 9:30. [...] vai ter bolo, vai ser dia 10.  PB4: a festa vai ter que ser aqui para você ir”.

Ninguém diz nada sobre o comentário da profissional (Nota Observacional, 2ª visita, B12, 24-04-2015, p.28).

Um dia antes do aniversário, a equipe realiza uma visita à usuária. Estavam presentes a enfermeira (PB1) e os técnicos de enfermagem (PB6, PB9).

 “Volte amanhã para ir à festa”, diz a usuária (B12) ao técnico de enfermagem (PB4).

 PB6: ”Nnão é meu plantão amanhã”.

A enfermeira (PB1) levanta, se aproxima da usuária e diz: "O técnico de enfermagem, vem de tarde. Ai você separa diversas charadas para ele adivinhar" (Nota Observacional, 3ª visita, B12, 30-04-2015, p.28 ).

Quatro dias depois, os profissionais perguntam sobre o aniversário.

 PB1: "E o aniversário B12?".

 "Já passou", diz B12 em tom desanimado.  PB1: "Você foi?"

 B12: "Não fui, eu não tenho perna. Quero morrer."  PB4: "Você está doida, Deus é quem sabe."

No mesmo instante, PB1 que estava sentada na cadeira de plástico levanta e diz:  “Mas quem vai contar o que é o que é para nós? Contar as piadas para nós?". B12 fica em silêncio e depois pergunta: "qual a diferença da formiga para o boi?". Ninguém sabe.

A paciente diz, então: "o boi é grande e tem o nome pequeno e a formiga é pequena e tem o nome grande".

Em um tom de encantamento PB1 diz: "você vai para a minha casa? Morar comigo?".

 B12: “Eu posso ir, eu não presto para nada, mas eu te amo!”.

Os profissionais ficam ao lado da cama da paciente, enquanto a usuária conta várias “adivinhações” (Nota Observacional, 4ª visita, B12, 04-05-2015, p.58).

Nessa situação, verifica-se a relação profissional-usuária pautada no uso da tecnologia leve. As ações foram estabelecidas com empatia e envolvimento, permitindo captar e considerar a realidade, necessidades e expectativas da usuária. Assim, se expressa o trabalho vivo, com estabelecimento da produção de subjetividades nas práticas de saúde.

Os profissionais desenvolveram a capacidade de conhecer e reconhecer os pontos objetivos e subjetivos da usuária. Por isso, além do cuidado com as feridas, infecção urinaria e resfriados, os profissionais captam a importância do diálogo e do vínculo. Utilizam como táticas as brincadeiras, conversas e o envolvimento durante as visitas, em especial nos momentos de abatimento e tristeza. Foi possível verificar que os profissionais acolheram e

foram acolhidos nessa produção do cuidado. Esta busca para manter sentimentos positivos torna-se fundamental para desenvolver o cuidado.

A usuária sente prazer em interagir, dialogar e sair. No entanto, para saciar esta necessidade encontra-se dependente das pessoas, devido à impossibilidade de se locomover. A sua rota de fuga são os pedidos de presença, visitas e passeios.

Vários autores apontam que a família contribui para a saúde do paciente. Entretanto, a rede social de amigos é mais significativa do que os membros familiares para minimizar as dificuldades, o isolamento social e a solidão (WILBY, 2011; CANGA; VIVAR; NAVAL, 2011; ALEXANDRE et al., 2012; GOMES, LACERDA; MERCÊS, 2014).

Durante as visitas, foi visível o anseio da paciente em poder participar da comemoração de aniversário. A paciente expõe o seu o desejo como necessidade de possuir uma vida social, de sair e de planejar o futuro. Para tal, utilizou como meio, para conseguir o que queria, a fala do convencimento. O uso da fala foi estratégico. Por isso, a usuária reproduziu e reiterou em várias visitas o desejo de participar do evento. Contudo, devido à impotência expressa na incapacidade de se deslocar, seu desejo não se concretizou.

Frente a isso, a usuária, triste com o ocorrido, expressa sua vontade de não viver. Nesse momento revela-se a capacidade dos profissionais de criar rotas de fuga para a tristeza e o sofrimento, decorrente do sentimento da impossibilidade de autonomia.

Essa rota se sustenta, na fala dos profissionais, com referência ao mecanismo do poder supremo, o de Deus, aquele a quem não se questiona, não se contesta, pois ele sabe e pode tudo. A usuária, por sua vez, recorre ao uso das charadas como meio para desvincular-se do sentimento de impotência, e a equipe adere a esta rota de fuga utilizada pela mesma. Assim, estabelece um encontro baseado na afetividade, no respeito mútuo no dialogo, a atuação necessária para a produção do cuidado.

Neste caso, revela-se a produção pautada no uso de táticas de diálogo, no vinculo e nos mecanismo de controle e no discurso religioso e de estímulo, como formas de expressão das relações de poder. Com isso, as relações de poder encontram-se mais equânimes.