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Caso 3: “Ensinamos, mas também aprendemos com as famílias”

4 ACONTECIMENTOS NA PRODUÇÃO DO CUIDADO

4.3 Caso 3: “Ensinamos, mas também aprendemos com as famílias”

O usuário (A12) é um idoso, paraplégico e diabético que amputou a parte inferior de uma das pernas. Ele não consegue responder as indagações feitas pelos profissionais, recorrendo sempre a cuidadora: “Tudo ele olha para a cuidadora”. A cuidadora é repetitiva, mas envolvida com o cuidado e com a evolução do usuário. Observa-se que o casal possui baixo nível de escolaridade, não respeitando os manejos gramaticais pertinentes, além de apresentar dificuldade de leitura e escrita. Foi possível acompanhá-lo durante duas visitas, tendo alta na realização da segunda.

Ao adentrar ao portão, verifica-se, do lado esquerdo, uma horta e, mais à frente, diversos objetos dispostos no quintal. A maioria apresenta um aspecto de estragado e sem utilidade. No fundo do lote está situada a casa da família. A parte da frente da residência apresenta uma varanda com um banco extenso de madeira. A moradia é antiga e simples. As paredes apresentam a mesma textura de cimento grosso do chão. A pintura é antiga e desgastada.

O usuário estava com os índices alterados de glicemia e pressão. Devido a esses indicadores, os profissionais perceberam que o usuário poderia estar ingerindo a medicação sem se ater aos exatos horários ou dosagens recomendadas.

Para ajudar a cuidadora com os horários da medicação, os profissionais desenvolveram uma estratégia. Foram criadas caixas com os medicamentos para cada turno, associando os horários dos medicamentos prescritos aos hábitos diários de acordar, almoçar e

dormir do casal. A visita para orientação, quanto à conduta do uso de medicamentos, foi realizada na varanda da casa.

Os profissionais elaboraram três caixas com identificações simbólicas: um sol para os remédios que devem ser ingeridos na parte da manhã, o desenho do fogão para os remédios que deveriam ser tomados na parte da tarde, após o almoço, e uma lua com estrelas indicando os remédios que deveriam ser tomados antes de dormir. Esta estratégia foi pensada em conjunto para poder seguir os horários estipulados pelo médico. [...] A técnica que realiza a assistência pergunta a que horas eles acordam, almoçam e vão dormir.

A cuidadora fica falando o tempo todo.

 Técnica de enfermagem (PA3): “Fique tranquila, pois vamos organizar a medicação e depois vamos explicar como funciona”.

 Cuidadora (CA12): “Estou ficando desorientada”. O tom foi de piada, mas com um fundo de verdade.

Em seguida, pega caixa por caixa e explica à cuidadora o que o usuário deverá pegar dentro de cada caixa, respeitando os símbolos e que deveria ingerir apenas um medicamento de cada cartela.

A cuidadora escuta e, quando indagada se entendeu, ela diz que sim. Ao finalizar o atendimento, os profissionais se despedem.

 Paciente (A12): “Desculpa pelo trabalho que dou”.

 (PA3): “Quê isso: este é o nosso trabalho” (Nota Observacional, 1ª visita, A12, 21-02-2015, p.27).

Após essa visita, o paciente foi acompanhado pelo programa por mais 12 dias, para monitorar os valores que se encontravam descompensados: glicemia, pressão e saturação; e avaliar a evolução da cicatrização da ferida. Durante este período, o médico realizou o pedido de um aparelho para aferir a glicemia.

Na segunda visita, estavam presentes a enfermeira (PA1) e o médico (PA2). O paciente encontrava-se sentado na cadeira de rodas em frente ao seu portão. Ao tentar entrar no domicilio, o usuário apresenta dificuldade para virar a cadeira de rodas, em razão do desnivelamento do piso de “terra batida”. A enfermeira, então, se prontifica ajudá-lo. Quando chegam à varanda, a enfermeira informa ao usuário e à cuidadora que o paciente receberá alta do programa de atenção domiciliar, mas que o mesmo será o acompanhamento pelo Estratégia de Saúde da Família (ESF) e será mantida a consulta com a cirurgia vascular.

 CA12: “Doutor, você ajudou bastante, se você não conseguisse o aparelho de aferir a glicemia, teríamos que parar de comer para poder comprar este aparelho”.

 PA2 (rindo): “Está igual vender o carro para comprar a gasolina”.

 Cuidadora CA12 repete: “Isso mesmo, igual vender o carro para comprar a gasolina. Graças a Deus ganhamos o aparelho. Oha só que lega!". A cuidadora pega o aparelho e mostra para enfermeira

[...]

O médico aperta a mão do paciente e a enfermeira abraça a cuidadora.

Os olhos do paciente se enchem de lágrimas, a cuidadora e o paciente agradecem (Nota Observacional, 2ª visita, 02-03-2015, p.61).

Os profissionais reconhecem a importância da comunicação e do saber lidar com as diferenças:

[...] temos uma boa comunicação. [...] temos que saber lidar com as dificuldades do paciente, da família. Quando existe esta coesão, nós conseguimos ajudar a família a crescer. [...] nós ensinamos, mas também aprendemos com a família, eles tem muitas coisas para ensinar. Tenho como foco o paciente, temos que atuar para a melhora dele (Entrevistada PB3).

As ações, desse caso, estão pautadas no acolhimento, e empregam a técnica de conversa para oportunizar o conhecimento das necessidades dos usuários. O vínculo permite a compreensão do usuário, por meio do uso de termos acessíveis e proximais. Durante a assistência do cuidado do usuário, os profissionais buscaram olhar o paciente com empatia, não apenas do ponto de vista biomédico, mas na faculdade de compreendê-lo como pessoa, que tem medos, necessidades, anseios e história. O paciente já se apresentava clinicamente estável, podendo, desta forma, receber alta do programa, mas o que impossibilitava a realização da mesma estava relacionado ao uso inadequado dos medicamentos.

Oliveira et al. (2012) ressaltam que, na internação domiciliar, devem ser evitados termos técnicos que dificultem a transmissão da informação. Desse modo, a comunicação deve ser clara e efetiva e isso exige tempo, dedicação, escuta mais refinada das demandas individuais, compreensão dos anseios e necessidades do outro (OLIVEIRA et al., 2012; FEUERWERKER; MERHY, 2008).

Os profissionais precisam de um olhar voltado ao usuário, à família e ao contexto de vida. A realidade da família na AD faz com que necessidades expressas pelo usuário sejam captadas pelos profissionais e exigem destes a criatividade e a invenção (BRITO et al,. 2013).

A tática utilizada pela equipe para a sustentação das práticas em saúde foi pautada na criação de caixas para a separação dos medicamentos, segundo o tipo e horários. Os profissionais consideraram os hábitos do cotidiano, identificando e respeitando a rotina da família. Nesse processo de trabalho, coloca-se o cuidador-usuário no centro das ações realizadas, “lhe permitindo estar no mundo e poder vivê-lo”, com suas representações, com seu modo de sentir e elaborar necessidades de saúde (MERHY, 2002, p.40). Os profissionais assumem a posição de cuidadores e buscam atender às necessidades no interior do processo de intersecção partilhada, através da divisão do trabalho entre as partes.

Mas entrelaçado à forma humanizada e criativa, expressa pelo do simbolismo das caixas, há também a normalização das condutas do usuário e cuidador. Existe a vigilância permanente das ações do usuário por meio da supervisão. As caixas têm esse propósito: os

profissionais podem não ver, de forma direta, se os medicamentos estão sendo ingeridos no momento indicado e na quantidade estabelecida, mas possuem visibilidade por meio dos mecanismos de controle, utilizando como tática a mensuração dos índices glicêmicos, da pressão e da cicatrização.

Após as orientações sobre a forma exata de conduzir os horários e dosagens dos remédios, a equipe realizou uma nova visita para de certificar se as ações estavam sendo executadas do modo estabelecido, ou seja, se a família e o paciente estavam seguindo os comandos pré-estabelecidos, as normas. Existe ai uma relação de poder. Essa visibilidade constitui uma relação de saber e poder, uma interseção entre o que é visto e o que é dito, o que estabelece condições que permitem que as coisas sejam vistas da forma que são vistas, uma forma de visibilidade que possibilita que as coisas se mostrem como elas são ou como podem ser (DELEUZE, 2005). Desta forma, o controle e a supervisão ocorreram para a segurança do paciente, pois o paciente só iria receber alta se estivesse seguindo os comandos da equipe quanto ao uso correto das medicações.

Percebe-se, também, que a relação com os profissionais consiste em obedecer às ordens, aos comandos ditos pelo médico, e sabe-se que as relações médico-usuário são, em grande parte, de obediência, justificada por promessas de meios e resultados, pela crença de terem o acesso à verdade. (CARCAMO QUEZADA, 2011).

A obediência significa renúncia da vontade própria para submissão à vontade do outro. O trabalhador espera a obediência e relaciona-se com a patologia, com a predominância dos aspectos biológicos, em detrimento do sujeito portador de sofrimento.

De maneira complementar, foi realizado o pedido de um glicosímetro. Essa parte do processo de trabalho foi orientada pela dimensão da tecnologia dura, que constitui um componente do conjunto de trabalho morto, porém não se apresenta como elemento qualquer, mas, sim, como fundamental, pois ajuda a capturar o trabalho vivo em ato (FRANCO; MERHY, 2013). Esta ferramenta faz grande sentido devido à situação e à finalidade que se almeja, o controle da glicose.

As relações de poder nas cenas de cuidado podem se estabelecer propiciando o surgimento de novos aspectos que tornem o encontro terapêutico uma verdadeira produção na perspectiva que busque relacionar ativamente os aspectos técnicos da profissão aos aspectos humanistas da atenção à saúde. (ANDRADE et al., 2013). Nessas situações, é possível verificar a circulação e apropriação efetiva das tecnologias leves que consideram as necessidades e expectativas do usuário; as tecnologias leve-dura, quando perpassam pelo

saber técnico-cientifico, e o aparato da tecnologia dura, com seus instrumentos (MERHY, 2002; MERHY, 2004).

Independente dessa combinação, o acontecimento, no caso relatado, é um plano que opera marcado pelo poder disciplinar da equipe com a normalização e pela vigilância das condutas expressa nas ações que buscam controlar as ações da cuidadora e do paciente aos comandos. Esse caso opera com prevalência do modelo de cuidado médico-centrado, com uso da disciplina, mas o não embate pela cuidadora estabelece o declínio da resistência quanto às orientações da equipe.