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4. A JURISPRUDÊNCIA ANIMALISTA DO STF

4.3. O CASO DA FARRA DO BOI

No segundo semestre de 1997 o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordi- nário 153.531-8 de Santa Catarina, referente à Farra do Boi. Este recurso foi oriundo de uma ação civil pública promovida por organizações protetivas dos animais, a Associação Amigos de Petrópolis, Proteção aos Animais, a Sociedade Zoológica Educativa e a Associação Prote- tora dos Animais, contra àquele estado da federação, com o intuito de se proibir a Farra do

411 ENNECCERUS, Ludwig. Derecho Civil - Parte General, Barcelona: Casa Editorial Bosch, 1947, p. 326. 412 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 6.

413 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 127.

414 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil - Parte Geral, 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1971, p. 59–60.

Boi e assemelhados415. Importa-se, antes de analisar o caso em discussão, se contextualizar

quanto ao objeto cultural da mesma – a Farra do Boi.

A manifestação cultural da Farra do Boi é um evento tipicamente regional do litoral ca- tarinense, de origem colonial, tal como a Vaquejada, que será vista em seguida. Segundo La- cerda, a Farra do Boi se trata de uma das variedades do que o antropólogo denomina de “brin- cadeiras-de-boi”, grupo ao qual estão inseridos e contextualizados o rodeio e a Vaquejada416. A

especificidade cultural do surgimento da Farra do Boi como uma releitura colonial da tourada- a-corda – espécie de tourada popular desenvolvida nos logradouros públicos – praticada em todo o Arquipélago açoriano417.

Quanto à realização do evento em si, noticia Chauhy que a Farra do Boi envolve a per- seguição, por populares, de um boi pelas ruas de cidades litorâneas de Santa Catarina, moni- dos de armas improvisadas, com o fim de assustá-lo e conduzi-lo ao mar, onde acaba por afo- gar-se418.

Segundo Lacerda, existe uma polêmica envolvendo a condenação social por parte de di- versas parcelas da sociedade civil organizada, em especial a imprensa, o governo estadual e entidade ecologista, que eclodiu em 1988419. Para o autor, não havia notícia da contestação da

legitimidade social e cultural da prática antes desta década, dado que é contestado por Corrêa, que compreende que já no início do século XX, na pessoa de Othon Gama d’Eça, secretário estadual, empreendeu esforços visando a proibição da prática420.

Lacerda aponta que o processo de mudança dos processos produtivos do litoral catari- nense, mudando da pecuária e aquicultura para o turismo, envolveu a padronização das práti- cas culturais locais com o fim de torná-las aceitáveis para os novos consumidores – os turis- tas421. Na capital catarinense, tal processo inciou-se na década de 1970, quando, para Dias,

houve a transformação da paisagem urbanística de Florianópolis e a segregação sistemática

415 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 153.531-8 – Santa Catarina. Relator: Ministro Francisco Rezek. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 13 de março de 1998, f. 389. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=211500>. Acesso em 12 de dezembro de 2016.

416 LACERDA, Eugenio Pascele. As farras do boi no litoral de Santa Catarina, Dissertação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1994, p. 14.

417 Ibid., p. 13–14. 418 CHAUHY, 2009, p. 92. 419 LACERDA, op. cit., p. 15–20.

420 CORRÊA, Misael Costa. As Rinhas de Galos no Litoral Catarinense: relatos orais sobre uma prática em conflito com a urbanização (1980-2010), in: Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História, Florianó- polis: ANPUH, 2015, p. 5.

dos espaços destinados à Farra do Boi422.

Observa-se que o mesmo processo, de padronização da prática cultural ocorreu com a Vaquejada. Entretanto, enquanto que na Vaquejada, a prática transformou-se em um produto, enquanto neste, houve uma rejeição do novo padrão de consumo. Tal posição influencia o en- tendimento doutrinário referente àquela prática, como se verá adiante.

Desta forma, a Farra do Boi acabou se posicionando próximo à Rinha de Galo – ativida- de proibida desde 1961 através do Decreto 50.620423 –, quanto à percepção de sua incompati-

bilidade com a sociedade brasileira desde os anos 1980, ao contrário do que tem se observado com o rodeio e com a Vaquejada, que se tornaram instrumentos do capitalismo de entreteni- mento. Tal distinção é valiosa, porquanto a desvalorização jurídica deste fenômeno se alinha com o plexo axiológico do restante da sociedade brasileira, tornando socialmente exigido que o magistrado se posicione contrariamente à sua aprovação jurídica.

No caso concreto, recorriam as associações de proteção aos animais de um acórdão que tinha compreendido pela improcedência da ação em seu mérito, porquanto a Farra do Boi não configuraria crueldade, mas sim outras práticas alheias às tradições açorianas e que a cruelda- de existiria tão somente em alguns abusos, sendo eles coibidos por aquela unidade federati- va424. Entretanto, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina reconheceu, naquela decisão, que os

animais devem ser protegidos, mesmo quando da ocorrência de práticas tradicionais, quando submetidos à crueldade, aproximando-se do critério da senciência, com a discordância quanto à presença da crueldade no caso concreto.

Ineditamente, em uma decisão que envolve interesses de animais não-humanos, o Su- premo Tribunal Federal, na figura do Ministro Relator Francisco Rezek, passou a apresentar o entendimento de que os animais são tutelados pela Constituição Federal e que o simples fato de dada prática violenta e cruel contra animais ser consolidada na cultura e no tempo não a torna menos inconstitucional. Esse entendimento que, para Aragão, observa a proporcionali-

422 DIAS, Rafael Damaceno. Lembrança e nostalgia nos desacordos da memória: a cidade de Florianópolis nas últimas décadas do século XX, Espaço Plural, v. 17, n. 8, p. 33–38, 2007, p. 34.

423 BRASIL. Decreto 50.620, de 18 de maio de 1961. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-50620-18-maio-1961-390463-publicacaoo- riginal-1-pe.html>. Acesso em 20 de janeiro de 2017.

424 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 153.531-8 – Santa Catarina. Relator: Ministro Francisco Rezek. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 13 de março de 1998, f. 391 – 392. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=211500>. Acesso em 12 de dezembro de 2016.

dade porquanto protegeria uma manifestação cultural legítima425, revela-se insuficiente para o

relator, diante do caso concreto426, para quem a crueldade na Farra do Boi tem escalado pro-

gressivamente no tempo.

O que se revelou como parâmetro suficiente para tornar o animal juridicamente relevan- te para a composição do Supremo Tribunal Federal quando da decisão sobre esse recurso ex- traordinário foi o fato de que os animais seriam dotados de sensibilidade e estarem vivos. Cor- responde-se, assim, a signos típicos da senciência.

Merece especial atenção o entendimento divergente do Ministro Maurício Corrêa, que compreende que existe uma aparente antinomia entre a norma do dispositivo constitucional estampado no art. 225, VII, e o art. 215, § 1º, ambos da Constituição Federal. O primeiro veda a submissão dos animais à crueldade enquanto que o segundo assegura a todos o pleno exercí- cio dos direitos culturais, bem como institui que o Estado apoiará a valorização das manifesta- ções culturais. Conclui o Ministro, divergindo do entendimento de possibilidade de antinomia de normas constitucionais de Bekoff, que inexiste antinomia e que, portanto, a Farra do Boi não poderia ser coibida, mas tão somente seus excepcionais excessos427.

Este, entretanto, não foi o entendimento prevalecente da Corte naquela oportunidade, que passou a encampar, com os votos do Ministro Marco Aurélio e Néri da Silveira - este últi- mo presidente da Corte à época do julgamento - o entendimento de que a Farra do Boi consti- tui prática cruel e, portanto, inconstitucional. Para o primeiro, a Farra do Boi não merece pro- teção constitucional por não constituir cultura, mas sim uma prática cruel. Já para o segundo, a cultura constitucionalmente relevante deve ser lida diante dos princípios fundamentais da República, motivo pelo qual esta deve promover uma sociedade livre, justa e solidária. No caso da Farra do Boi, o Ministro Néri da Silveira não visualizou a sua compatibilização com àqueles valores constitucionais, mas o contrário428.

Houve, a partir de então, uma mudança no entendimento da Suprema Corte referente a questões que envolvem animais. A Corte passou a adotar um posicionamento de desprestígio de práticas que envolvam animais voltados para formas de entretenimento reconhecidamente

425 ARAGÃO, Nilsiton Rodrigues de Andrade. A Inconstitucionalidade da Vaquejada Esportiva: Uma pondera- ção entre os princípios da proteção das manifestações culturais e da proteção do meio ambiente, THEMIS:

Revista da Esmec, v. 14, n. 0, p. 57–76, 2016, p. 67.

426 BRASIL, 1998 f. 398 – 399. 427 Ibid., f. 412.

crués. Tal mudança não pode ser vista como overruling – a superação através da rejeição de um precedente429 –, posto que a solução trabalhada na decisão antecedente não possui simili-

tude com o caso concreto da Farra do Boi e do Habeas Corpus de Guanabara. Isso decorre pelo fato de que a inexistia, à época do Habeas Corpus retrocitado, o dispositivo normativo que fundamentou a decisão da Farra do Boi – o art. 225 da Constituição Federal de 1988.

Entretanto, a linha argumentativa puramente antropocêntrica foi superada. Passou-se a prestigiar os animais, com fundamento na capacidade de serem submetidos a experiências do- lorosas. As decisões que se seguiram utilizaram esta como precedente, demonstrando, assim sua especial relevância argumentativa.