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2. OS CRITÉRIOS DEONTOLÓGICOS DE INCLUSÃO DOS ANIMAIS

2.3. AUTONOMIA

2.3.1. Conceito de autonomia em Wise

O conceito de autonomia não é original de Steven Wise, nem ele pretende ser autor des- te conceito. Em verdade, como se verá adiante, Wise busca descobrir qual é o fundamento da proteção jurídica – na linguagem de direitos – dos seres humanos sob uma visão jurídica de- preendida do especismo. Ele, portanto, é um descortinador, de um conceito preexistente.

Quando se meciona autonomia, se está diante de uma palavra polissêmica, isto é, que possui uma pluralidade de significados. Portanto, para melhor apreender o significado deste termo, é necessário se recorrer a suas origens etimológicas e suas significações dispostas em dicionário. Segundo o dicionarista lusitano Cândido de Figueredo, a origem da palavra auto- nomia é grega, sendo composta pela junção de duas palavras daquele idioma: auto e nomos154.

Autossignifica “de si” enquanto nomos de “norma”. Isto é, etimologicamente está ligado a no- ção de uma normatização de si.

Assim, vê-se que a noção de autonomia possui uma importância em diversos ramos do conhecimento e em contextos diversos. Na ciência política utiliza-se este conceito para deli-

152 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos funda-

mentais na perspectiva constitucional, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 46–47.

153 WISE, 2000, p. 78.

154 CÂNDIDO DE FIGUEIREDO. Novo diccionário da língua portuguesa, Lisboa: T. Cardos & irmão, 1899, p. 155.

mitar a forma em que se dá a dinâmica de poder entre determinados entes em um Estado. Este conceito é especialmente caro para o Direito na medida em que explica a relação entre os Es- tados e suas subdivisões, no caso das Federações. Trata-se da capacidade dos entes federados estabelecerem uma constituição, exercer a competência dos poderes do Estado e exercer aque- les poderes que decorrem da natureza do sistema federativo, em conformidade e limitado pela Constituição155. Diz-se, portanto, que os entes federados possuem autonomia em relação à

União. Se contrasta a noção da ciência de política de autonomia com a soberania e a subordi- nação ou dependência.

Importa-se, aqui, não com os conceitos afetos a qualquer outro ramo do saber, exceto a ética. Vê-se que o ramo onde se dedicou de sobremaneira à discussão da autonomia foi a bio- ética, no contexto da relação entre o médico e o paciente. Por sua vez, na deontologia clássica se encontra o pensamento de Immanuel Kant como relevante à discussão sobre o conceito de autonomia, especialmente quanto à autonomia da vontade.

Para o filósofo prusso, a autonomia da vontade corresponde ao único princípio do qual todas as leis morais emanam e dos deveres que estas correspondem156. Trata-se, no caso, de

uma característica e inerente e exclusiva dos seres racionais157. A partir disso esse filósofo vai

concluir que os seres humanos, por serem racionais, devem ser considerados seres santos, no sentido de que devem ser considerados os únicos que são fins em si mesmos158, enquanto que

as demais coisas no mundo seriam meios para satisfazer as necessidades e interesses dos seres humanos.

Desta forma, dentro do contexto kantiano a noção de autonomia se liga a ideia de digni- dade – denominado nominalmente por Kant de santidade – através da racionalidade, sempre se centrando no ser humano. Por conta disso, é possível afirmar que a noção de autonomia, como pressuposto da dignidade e do apontamento do ser humano como destinatário de todas as normas éticas e jurídicas, é fundamento da noção tanto de dignidade quanto da personalida- de humana159, sintetizada na dignidade da pessoa humana.

Regan noticia a noção de autonomia de preferências, que consistiria na qualidade dos

155 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 232. 156 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, p. 52. 157 Ibid., p. 82.

158 Ibid., p. 120. 159 Ibid.

seres em identificarem suas preferências e agir sobre elas160. Este conceito reganiano se con-

funde, em verdade, com a noção de sujeito-de-uma-vida, sendo descrito em verdade como um adjetivo. Ou seja: os animais que são sujeitos-de-uma-vida – os mamíferos maduros – seriam animais autônomos161.

Entrementes, na bioética, tem-se Faden e Bouchamp, autores de grande relevância na discussão sobre a autonomia. Estes trazem uma profunda análise sobre o consentimento infor- mado, vinculando-o a noção de autonomia. Eles ensinam que as teorias da autonomia normal- mente são vinculados à noção de personalidade, consistindo, em verdade, em teorias da pes- soa autônoma162.

A autonomia não é vista como tudo-ou-nada, isto é, uma posição binária em que há, por- tanto, somente duas posições: ser autônomo ou não ser autônomo. Esta distinção cria uma di- ferença considerável entre o conceito de autonomia e todos os demais que foram visitados neste trabalho. Em verdade, existem graus de autonomia, em que, no contexto de Faden, Be- auchamp e King, são demarcados por aproximação a três conceitos preconcebidos: a da auto- nomia integral, substancial e totalmente sem autonomia163.

No contexto em que a discussão que estes autores situam, a relevância desta graduação está ligada a possibilidade de dada pessoa ser capaz de manifestar seu consentimento, com a compreensão total e sem estar sujeita a controle. Esta noção será revisitada por Steven Wise, ao elaborar uma gradação de quatro faixas para determinar quais são os animais capazes de serem considerados autônomos e qual seria esta autonomia.

Para que um dado ser tenha a autonomia, este deve ser capaz de desejar, intencional- mente tentar alcançar seus desejos, e ter uma noção de si suficiente para distinguir o si do am- biente e identificar-se como aquele que deseja164 – isto é, uma noção de autoconsciência165.

Observa-se, portanto, que autonomia não é um critério fechado e absoluto, em que alguém possui ou não autonomia, podendo haver níveis de autonomia.

160 REGAN, 2004, p. 84–85. 161 Ibid., p. 86.

162 FADEN, Ruth R.; BEAUCHAMP, Tom L.; KING, Nancy M. P. A history and theory of informed con-

sent, New York: Oxford University Press, 1986, p. 236.

163 Ibid., p. 239. 164 WISE, 2002, p. 32.

165 TONETTO, Milene Consenso. Do Valor da Vida Senciente e Autoconsciente, ethic@, v. 3, n. 3, p. 207– 222, 2004, p. 212.