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PARTE V RECONSTRUÇÃO DOS USOS DA NOÇÃO DE REANIMAÇÃO PSÍQUICA NO CONTEXTO DO PENSAMENTO CLÍNICO DE

III DRA LEDA MARIZA FISCHER BERNARDINO

2 Caso Manoah: Reanimação Psíquica e Estimulação Precoce

Manoah é um bebê nascido de parto normal na 34a semana de gestação. Ainda na sala de parto, teve de ser reanimado e entubado, na presença dos pais, pela ocorrência de uma parada cardiorrespiratória, seguida de anoxia grave. Exames de neuroimagem constataram uma encefalopatia ocasionada pela morte de agrupamentos de neurônios em diversas áreas do cérebro. Também apresentou crises convulsivas durante sua permanência na unidade de terapia intensiva.

O bebê e seus pais foram acompanhados por uma psicanalista ao longo da internação, a qual lhes apresentou seu trabalho de estimulação precoce. Essa profissional, presente durante a consulta com a neurologista, pôde testemunhar o prognóstico do bebê em questão. “Manoah poderia não falar, não andar, ter a compreensão afetada, entre outras dificuldades.” (BERNARDINO; MELO, 2010).

A questão da plasticidade neuronal foi posta pela neurologista que destacou a importância da estimulação do bebê, sem, no entanto, fazer menção à intervenção psicanalítica. Durante a internação, a psicanalista responsável pelo caso pôde oferecer uma escuta acolhedora da angústia dos pais, os quais mostravam-se inseguros nos cuidados daquele bebê que nem de longe correspondia às expectativas imaginárias do casal.

Os adultos que dele [o bebê] cuidam estão marcados por este impasse, não sabem exatamente como vão enlaçar sua relação com o filho, diante disto que pode lhes parecer como uma limitação muito grande ao exercício de sua parentalidade, ou seja, suas funções materna e paterna. (BERNARDINO; MELO, 2010, p. 36).

Aos quarenta e cinco dias de vida, esse bebê foi recebido para um trabalho de estimulação precoce de orientação psicanalítica. A direção do tratamento teve como um de seus pilares a fundamentação teórica da pesquisa IRDI, cujo instrumento de avaliação

destina-se a verificar a qualidade do exercício das funções materna e paterna presentes no laço mãe-bebê, a partir de quatro eixos fundamentais: suposição de sujeito; estabelecimento de demanda; alternância presença e ausência e função paterna propriamente dita.

Segundo estes eixos, é essencial que os cuidadores possam pressupor no bebê alguém faltante, com desejo e existência próprios; é necessário ainda que no atendimento das necessidades do bebê se introduza um campo erógeno de significações e de palavras, que transformem qualquer pedido em linguagem e o afastem do corpo puramente biológico da necessidade; é preciso também que o cuidador do bebê crie momentos de presença significativos, para que em seus momentos de ausência possa ser lembrado, dando origem a representações, pela vivência da falta; finalmente, é fundamental que a relação com o bebê seja referida a uma Lei e uma alteridade, que o protegerão de ser mantido num mesmo lugar alienante e o conduzirão à vida em sociedade. (BERNARDINO; MELO, 2010, p. 37).

Para que os pais possam exercer com destreza tais funções organizadoras do psiquismo de um bebê é essencial que eles estejam amparados em suas próprias funções. Trata-se de em primeiro lugar, o analista supor um sujeito mãe e um sujeito pai capazes de operar. Intervenções desse gênero, ilustradas em vários recortes deste caso clínico, permitem à mãe apoderar-se de seu saber sobre a maternidade, muitas vezes abalado pela interferência do saber das especialidades. Por outro lado, estimulam o pai a antecipar no bebê Manoah um sujeito marcado pela Lei, capaz de funcionar no social.

Pai e mãe implicados nos cuidados e sintonizados aos apelos do seu bebê, aos poucos, tendo no horizonte um futuro saudável para o seu bebê, conseguem amamentá-lo, construir hipóteses sobre as causas do seu choro, acalmá-lo com palavras, aconchegá-lo até que adormeça consolado. Isso é possível através de um trabalho intenso de simbolização do luto desses pais e de interpretação dos impasses vividos por esse casal, fruto da emergência de fantasmas transgeracionais, por exemplo. Incluir o bebê no que é falado é um manejo primordial que o acomoda no fantasma familiar.

Quando este já pode ir brincar no chão com a psicanalista, aos 4 meses e 21 dias, inicia-se um trabalho de antecipação das funções motoras, sensoriais e relacionais do bebê, através do brincar. “A função da antecipação é a consequência de sermos habitantes da linguagem e transitarmos pelo Simbólico, o que nos permite jogar com as noções de passado, presente e futuro, a qualquer momento, no campo da representação.” (BERNARDINO, 2000).

motricidade fina para pegar as orelhas da centopeia com os dois dedos, desenvolve sua simetria corporal através da melhor distribuição do peso do corpo ao ficar de bruços, entre outras peripécias permitidas pela proteção do setting analítico e que servem de espelho para a relação mãe-bebê, replicada em casa. Vale destacar que algumas sessões filmadas receberam a avalição de uma terapeuta ocupacional e de uma fisioterapeuta, membros da equipe multidisciplinar do Espaço Escuta12, instituição na qual este bebê foi recebido para tratamento.

Próximo de completar seis meses, o sepultado do encefalograma foi normal; Manoah já não apresentava mais crises convulsivas. Segundo os relatos da mãe, nessa época, ele passa a mamar em frequência mais espaçada, passa a sentar com apoio, morde, aperta e sacode os brinquedos e percebe os barulhos do ambiente. Seguindo a recomendação da analista, os pais cuidavam para que todas as ações de Manoah fossem acompanhadas de seus respectivos significados. “A mãe chega dizendo que tirou fotos dele comendo papinha e todo lambuzado, também o filmou comendo, dá pra vê-lo saboreando as palavras dela e tudo que acontece entre uma colherada e outra.” (BERNARDINO; MELO, 2010).

Aos nove meses, a mãe comemora os ótimos resultados da última tomografia que mostrava a significativa redução da lesão cerebral. A neurologia expressou sua incredulidade sobre o que ocorrera; porém, incentiva a mãe a continuar com o tratamento que fora empreendido até o momento. A tomografia mostrava que nas áreas em que havia espaços vazios, representando os neurônios mortos, houve migração de novos neurônios e estavam, portanto, preenchidos.

Durante seu segundo ano de vida, Manoah entrou na educação infantil, deu seus primeiros passos e enriqueceu seu vocabulário. Em seu terceiro ano de vida já descia a escada sem apoio e apresentava uma boa construção da imagem corporal. Apesar de não apresentar a mesma agilidade motora que seus colegas de turma, a avaliação dos professores não poderia ser mais gratificante: “Na escola os professores dizem que acompanha tranquilamente as crianças, percebem que é muito inteligente, se concentra mais que as crianças de sua idade, tem bom relacionamento social, e quem escuta o que aconteceu com ele não acredita.” (BERNARDINO; MELO, 2010).

12 O Espaço Escuta é um centro interdisciplinar de diagnóstico e tratamento precoce dos distúrbios globais do

desenvolvimento, localizado na cidade de Londrina, no Paraná, presidido por Maribél de Salles de Melo, coautora do caso Manoah.

Percebe-se nesse caso que a urgência do Real traumático da lesão cerebral no bebê, através do trabalho de estimulação precoce, do brincar orientado à emergência da subjetividade e à construção de uma representação simbólica sobre as necessidades biológicas e ações motoras de Manoah, vai pouco a pouco reanimando seu desejo pela vida e conduzindo seu organismo a um desenvolvimento saudável do ponto de vista da função do órgão. O brincar desempenhou um papel preponderante nesse trabalho de reanimação psíquica, como mostra a citação a seguir:

É no brincar que a criança alcança sua expressão máxima, usando os significantes que a cultura coloca a sua disposição para falar de seus impasses, desafios, tristezas, temores. É no brincar que o desejo pode encontrar vias de expressão e até mesmo de construção. Trata-se de um importante recurso, descrito desde os primeiros meses de vida, para a construção do corpo, da identidade e da relação com o meio. (BERNARDINO; MELO, 2010, p. 46).

Outro manejo analítico fundamental no sucesso desse caso foi o de atribuir aos pais o papel de “estimuladores essenciais”. Devolvido o saber e reanimado o desejo parental, os significantes que passaram a circular nesse laço familiar, a partir dessa intervenção, tiveram um efeito reconstrutor do tecido neuronal. “Neste sentido, a função simbólica apareceu em sua primazia, sendo a aparelhagem biológica sensível aos significantes, ao ponto de modificar uma estrutura lesionada.” (BERNARDINO; MELO, 2010).