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PARTE V RECONSTRUÇÃO DOS USOS DA NOÇÃO DE REANIMAÇÃO PSÍQUICA NO CONTEXTO DO PENSAMENTO CLÍNICO DE

III DRA LEDA MARIZA FISCHER BERNARDINO

4 Horizontes de uma ética

4.1 Reanimação Psíquica, reabilitação e educação especial

Na ocasião da entrevista, indaguei a autora sobre uma possível aproximação entre a noção de reanimação psíquica e o que é empregado atualmente enquanto tratamento psicanalítico no contexto das deficiências na infância. Sua opinião é clara quanto à especificidade da ética psicanalítica frente às práticas de reabilitação e reeducação geralmente recomendadas em casos de crianças deficientes mentais, auditivas, visuais, entre outras.

É comum vermos a figura do psicanalista inserido em equipes interdisciplinares que empregam tratamentos ortopédicos no sentido estrito do termo, importantes para a

restauração da função do órgão. Essa autora lança um alerta sobre os diagnósticos das deficiências na infância: “Um diagnóstico preciso – que deveria ser um primeiro passo para um bom projeto de reabilitação – pode tomar outra direção quando o saber do especialista passa a representar uma verdade absoluta que pode até mesmo predizer um destino”. (BERNARDINO, 2007, p. 55).

Se pensarmos que nosso lugar nessa equipe é de atentarmos para os aspectos Simbólicos da relação à qual o paciente deficiente está submetido, buscando alocá-lo numa posição de sujeito frente ao discurso da família e ao discurso das especialidades, podemos sim conceber a noção de reanimação psíquica a serviço das práticas de reabilitação.

Ao fazermos isto, ele é retirado desta posição de objeto, objeto da medicina, objeto de cuidados, objeto de um treinamento, e este movimento de antecipação do sujeito, propondo-lhe este lugar, é um movimento que busca a instauração de um psiquismo. Neste sentido podemos pensar em reanimação psíquica. (ANEXO C, p. 8).

Sua aproximação ao trabalho teórico-clínico de Maud Mannoni, ocorrido através do estágio que realizou na escola especial de Bonneil, na França, deu início ao seu interesse sobre a intersecção entre desenvolvimento e estrutura. Ao ser questionada sobre o conceito de “pseudodeficiência”, mencionado por Mannoni (1923), e que acompanha o conceito de “psicoses pseudodeficitárias”, discutido por Roger Misés (1977), Bernardino esclarece uma hipótese que fazemos sobre a reanimação psíquica enquanto consequência do tratamento de crianças deficientes nos casos em que, uma vez diluídas as pseudociências, estas crianças apresentam significativa melhora em seu desempenho cognitivo e funcional, de maneira geral.

Em determinado aspecto, sim. Pois se é uma criança que está indo no sentido de uma psicotização, de uma psicose secundária a um comprometimento orgânico, o trabalho da Mannoni, de visar os aspectos Simbólicos da relação, faz com que não haja este encaminhamento. Ela põe em movimento o que está se cristalizando, se põe à escuta da criança na fantasmática dos pais. Se é um trabalho bem sucedido, podemos falar em reanimação psíquica. (ANEXO C, p. 8).

Bernardino (2007) aprofunda a discussão sobre a importância da ética psicanalítica voltada à educação especial de crianças com problemas no desenvolvimento, sejam nascidas com alguma deficiência ou que tenham sofrido sequelas neurológicas devido a acidentes na infância. Explica que a partir do surgimento da psicanálise, com Freud, a noção de homem deixou de estar restrita à lógica biológica, pois desde que nasce ele é inserido no mundo da cultura e da linguagem. “Portanto, sob esta ótica, um problema do desenvolvimento infantil –

decorrente de uma lesão, de uma incapacidade genética ou constitucional – deve ser compreendido também no âmbito Simbólico”. (BERNARDINO, 2007, p. 50).

Nessa lógica simbólica, a lesão, a deficiência ou a síndrome sempre estarão representadas como um significante construído na rede de inter-relações na qual está situado seu portador, afirma Bernardino (2007). Ao dar-se ênfase aos déficits da criança, essa ficção que foi construída pelo meio em que cresceu, a qual aponta sua incapacidade, sua diferença, sua exclusão, pode objetalizar o pequeno sujeito. Deste risco surge a demanda de uma intervenção que ponha o sujeito em outra posição, que reconstrua, por assim dizer, a ficção na qual possa estar aprisionado. “A ênfase nos déficits, no ‘quadro clínico’, na ‘síndrome’, pelo contrário, exerce um papel desubjetivante, pois impede que todo o movimento de antecipação subjetiva e de inscrição no campo Simbólico seja acionado.” (BERNARDINO, 2007, p. 51).

A vinheta do caso clínico descrito por Bernardino (2007) ilustra os efeitos da escuta analítica sobre as desilusões das mães de crianças nascidas com deficiência, manejo que nos recorda uma reanimação psíquica através da circulação da palavra verdadeira, proposto por Mathelin (1999). O encontro entre mãe Real e filho Real provoca, com no caso Jaime, progresso na emergência subjetiva da criança.

Jaime, 10 anos, na primeira entrevista que teve juntamente com sua mãe, ouviu-a pela primeira vez falar de seus projetos quando o estava esperando e da desilusão ao vê-lo nascer com lábio leporino. Desilusão que ela sempre tentou mascarar de mil formas. Vemos essa criança sair de sua estereotipia de gestos e palavras sem sentido para dizer “está doendo, está doendo muito”... Essas verbalizações puderam então conectar-se a um saber: fez-se um sentido para a experiência difícil que mãe e filho tinham compartilhado. A mãe falou, o filho ouviu, compreendeu e respondeu – um diálogo se estabeleceu. Foi difícil, mas verdadeiro; era possível identificar ali uma relação mãe/filho. (BERNARDINO, 2007, p. 55).

Novamente observamos o reposicionamento provocado pela intervenção do analista, o qual, ocupando o lugar de alteridade, permite à mãe ser faltante, reconhecer suas decepções, possibilitando ao filho participar da trama simbólica da própria família, da qual está excluído quando é tomado como incapaz de decifrar o sofrimento da mãe. Privado dos significantes que o inscrevam no campo Simbólico, a criança passa a atuar, a fazer gestos sem sentidos, movimentos estereotipados, considerados sem sentido, justamente por funcionarem fora do registro Simbólico. Com explica Bernardino (2007), a psicotização da criança deficiente pode ser uma consequência constitutiva do psíquico, quando o problema da criança é vivido como defeito da mãe, por exemplo, deixando de fora a função paterna, bem

como o campo da Lei.

Pode configurar-se aí a situação da dependência absoluta do deficiente: dificuldade de romper essa relação dual com a mãe e direcionar-se à cultura. A história da criança pode ficar atrelada à história da mãe por toda sua vida, situada no lugar de eterna criança, que não pode ter acesso a um desejo e a uma história própria. Situação que, no extremo, ao não sofrer intervenções, acaba acrescentando à deficiência uma estruturação psicótica. (BERNARDINO, 2007, p. 57).

A noção de reanimação psíquica situa-se na obra dessa autora no trabalho de prevenção de uma estruturação psicótica secundária à deficiência orgânica, garantindo à criança submetida aos saberes das especialidades, às técnicas de reabilitação e à educação especial uma interlocução que antecipe a sua inserção na linguagem e na cultura. A presença do psicanalista em equipes interdisciplinares ou em instituições que trabalhem com patologias graves deve visar, segundo Bernardino (2007), amparada na teoria de Esteban Levin (2001), um “trabalho de luto”, o qual situe a função deste estabelecimento enquanto lugar de trânsito. Esta reconstrução da função institucional promove a descristalização do lugar da deficiência e reanima o seu discurso. Podemos também considerar que a noção de reanimação psíquica se adequa (adequa-se?) à direção do tratamento psicanalítico junto à criança deficiente, uma vez que o trabalho de reanimar seu psiquismo é análogo ao trabalho de prevenção da psicopatologia.

4.2 Hipóteses sobre a aplicação da noção de Reanimação Psíquica em adolescentes e adultos

Essa autora também admite a utilização da noção em apresso tratando-se da clínica de adolescentes e adultos nos casos em que o paciente é confrontado com situações potencialmente traumáticas, como acidentes graves, diagnósticos de doenças, situações de luto complicado, entre outras. Esta possibilidade de aplicação da noção de reanimação psíquica aponta para os efeitos da operação da ética psicanalítica sobre os sintomas apresentados por sujeitos depreciados em suas funções Simbólicas e Imaginárias de modo geral, onde a escassez de palavras sobre o Real causam verdadeiros bloqueios no corpo e na alma.

Devo esclarecer que esta hipótese foi construída após acompanhar um caso grave de melancolia em um hospital geral, na oportunidade de estágio do curso de Pós-graduação em

Psicologia Hospitalar13 que realizei no Instituto de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Tratou- se de uma mulher psicótica de 39 anos, recém-diagnosticada soropositiva. Deu entrada no pronto-socorro do hospital apresentando infecção pulmonar. O tratamento de sua broncopneumonia evoluía a contento até que descobriu o resultado positivo do exame de HIV. Esta notícia, somada a outras situações desagradáveis da hospitalização, conduziram esta paciente a um profundo estado de inércia psicomotora.

Como consequência do seu estado melancólico, infecções secundárias foram se instalando, provocando a piora gradativa do seu estado orgânico. Após sua entrada em atendimento analítico, pôde contar com um discurso desejante que desde o início legitimou seus entraves Imaginários sobre a doença e o Real da morte, e ofereceu palavras que a aproximassem ao campo Simbólico. Suas infecções foram cedendo pouco a pouco, em alguns dias aceitou passear pelo corredor do hospital, retomou sua higiene pessoal, interessou-se pelo tratamento da Aids que deveria continuar fora do hospital e, por fim, recebeu alta retornando ao convívio familiar.

Se fizermos um paralelo, por exemplo, um paciente que sofre um enfarto, um AVE (acidente vascular encefálico), que vai para UTI, algumas situações que aparecem como psicotizantes, ou de confronto com algum real traumático, podem produzir, em termos psíquicos, algo análogo, como uma depressão grave, uma melancolia, uma catatonia. Neste sentido, caberia fazer a importação deste termo, reanimação psíquica, no caso de atendimento a adolescentes e adultos. (ANEXO C, p. 6).

Sob essa ótica, a noção de reanimação psíquica sofre uma significativa expansão que aponta para a dimensão mecânica da ética psicanalítica, sobre a qual discorremos em capítulos anteriores. Uma vez aplicada ao sujeito em situação de indeterminação, de vacilação, de desmoronamento dos seus pontos de apoio Imaginários e Simbólicos, essa ética pode produzir efeitos, ressuscitando a subjetividade e reanimando o psiquismo. Abre-se, com esta hipótese, um campo de pesquisa mais amplo sobre as possibilidades de aplicação da noção de reanimação psíquica, que pode vir a abarcar muito além do contexto clínico dos problemas do desenvolvimento infantil. Por ora, contentamo-nos em fazer um esboço dos alcances dessa noção na clínica da infância, avaliando inclusive suas chances de ser elevada ao estatuto de conceito psicanalítico.

13 Trabalho de Conclusão de Curso: Um estudo sobre o manejo da psicose no hospital geral a partir do conceito

PARTE VI CONCLUSÕES: UMA CARTOGRAFIA DOS USOS DA NOÇÃO DE