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PARTE V RECONSTRUÇÃO DOS USOS DA NOÇÃO DE REANIMAÇÃO PSÍQUICA NO CONTEXTO DO PENSAMENTO CLÍNICO DE

I DRA CATHERINE MATHELIN–VANIER

1 Percurso teórico-clínico

Catherine Mathelin–Vanier é uma psicanalista francesa, atuante na área hospitalar e clínica. Em torno do ano de 1974 trabalhava no setor de psiquiatria infantil do Hospital Delafontaine, em Saint-Denis, bairro parisiense, e estava interessada pela questão do mutismo, tema de sua tese de doutorado. Passou a ser convocada pela área da maternidade do mesmo hospital para intervir em situações de “enlouquecimento materno”, termo utilizado pelos profissionais de saúde daquele setor, inquietos frente aos casos de rejeição do bebê por parte de suas mães, no momento da alta. A falta de psiquiatras no setor de neonatologia levou esta psicanalista a ser convocada para acalmar os ânimos das mães, por um lado, mas também da equipe em fúria, inconformada em ver aqueles bebês, foco de um desgastante investimento físico, psíquico e financeiro, serem rejeitados por suas mães biológicas.

Comovida por esse novo desafio, Catherine Mathelin-Vanier . passou a considerar que a intervenção do psicanalista em tempos mais precoces, em que sem o avanço da medicina a vida não seria viável, pudesse agir reanimando o desejo dos cuidadores, elemento essencial para a emergência da vida psíquica do bebê. Através desse trabalho, passou a se dar conta que a rejeição do bebê às vésperas da alta, após três ou quatro meses de cuidados intensivos necessários em casos de partos prematuros, era o estopim de um conflito psíquico, o qual a mãe não foi capaz de elaborar sozinha, mas que através de uma escuta atenta especializada poderia ser detectado mesmo antes do parto.

A partir dos avanços da medicina e das técnicas de reprodução humana, hoje é possível observarmos in vivo o desenvolvimento de bebês com 500 gramas ou 22 semanas.

Este é o limite para a viabilidade de um nascimento preconizado pela Organização Mundial de Saúde. Sabemos, entretanto, que as conquistas na área da fertilização e neonatologia vêm trazendo consigo consequências factuais do ponto de vista ético. Estatísticas afirmam que metade dos bebês nascidos no limite estabelecido pela OMS não sobrevivem. Quanto à outra metade sobrevivente, 50% destes prematuríssimos desenvolverão algum tipo de distúrbio neurológico. Ou seja, somente um quarto de uma população de bebês nascidos sob condições de extrema prematuridade se desenvolverá normalmente, segundo os padrões pediátricos.

Catherine Mathelin-Vanier . relata em uma entrevista fornecida especialmente para a coleta de informações teórico-clínicas sobre a aplicação da noção de reanimação psíquica, numerosas vezes citada em sua obra, resultados alarmantes referentes às estatísticas de crianças autistas, nascidas sobre condições de extrema prematuridade: “Considerando uma população de bebês nascidos a termo, encontramos 2,5% de bebês que desenvolveram autismo. Já nesta última população de prematuríssimos, sem problemas neurológicos, teremos 28,5% de autismo”. (ANEXO A, p. 1).

Estes são dados recentes que alertam para um aumento considerável do risco de evolução autística em bebês prematuríssimos. Na época em que essa psicanalista iniciou no setor de neonatologia, cerca de 20 anos atrás, a ciência ainda não era habilitada a reanimar bebês tão pequenos. Todavia, já suspeitava de algo que guiaria todo seu percurso de pesquisa no campo da intervenção precoce. Sua hipótese era que, observando a constituição psíquica desses bebês nascidos sob condições extremas, talvez pudesse entender a causa do mutismo das crianças maiores que costumava acompanhar no setor de psiquiatria infantil e em seu consultório.

Anos atrás, em 1974, minha tese foi sobre mutismo. Trabalhei com crianças sem linguagem. Ao tentar escutar o que acontecia com estes bebês pequenos, me ocorreu a ideia de que eles seriam meus professores. Eles seriam aqueles com os quais eu descobriria o porquê daquelas crianças com 4, 5 ou 6 anos de idade, diagnosticadas autistas, não podiam falar. (ANEXO A, p. 5).

No passado, o trabalho do analista no hospital era solicitado para apaziguar situações de conflito entre equipe e paciente a fim de que pudesse ser reestabelecido o clima harmonioso e pacífico para o bem de todos e para o conveniente exercício da medicina. O que Catherine Mathelin-Vanier . relata, entretanto, é que nosso papel no hospital, especificamente numa unidade de reanimação neonatal, é de sustentar e manejar, segundo a ética psicanalista, todas as ambivalências inerentes à situação de um parto prematuro, em que

os afetos apresentam-se invariavelmente intensificados pelo abalo narcísico parental, mas também pela irrupção do Real inesperado e angustiante inerente a concepção do bebê imperfeito em risco de morte iminente.

Dentro de um serviço de reanimação, as mães que vêm dar à luz a um bebê doente ou um bebê prematuro são, mais que todas as outras, confrontadas a imagem de mãe má, que fazem delas mesmas. Uma mãe que não pode carregar seu bebê, que lhe deu uma vida muito frágil, pode ter desejado a sua morte. Esta ambivalência está presente ao longo de toda a gestação, o nascimento sem problemas renarcisa a mãe ao lhe ofertar um belo bebê em boa saúde o qual a tranquiliza e gratifica. Quando o nascimento precipitado se passa no pânico e na urgência, quando os médicos não podem tranquilizar a mãe, quando o bebê está realmente em perigo, a realidade junta-se ao fantasma e o trauma surge. (VANIER, 2013, p. 70 / tradução livre).

O que entendemos, portanto, enquanto ética psicanalítica no trabalho específico com o nascimento complicado e com a prematuridade? A obra dessa autora é repleta de lições teóricas e casos clínicos que ilustram de forma justa a especificidade dessa clínica recém- criada a partir de uma demanda médica. Algo inominável e, portanto, irremediável precisava com urgência ser tratado, estudado, ouvido, nomeado por algum profissionais, cuja formação abarcasse o mal-estar enlouquecedor e mortífero que povoa, ainda que silenciosamente, um serviço de neonatologia.

A primeira e mais importante lição dessa autora é, em nossa opinião, algo que Freud anunciou no texto O mal-estar nas civilizações e que pode ser aplicável a toda prática psicanalítica. O mal-estar é do sujeito, o qual é confrontado a todo tempo pela imperfeição da sua própria forma, dos seus feitos, inclusive dos seus rebentos. Notamos, através dos meios de comunicação e das novas formações da cultura, o esforço empreendido pela sociedade em abafar, camuflar o mal-estar natural do sujeito. A explosão de novas categorias diagnósticas acompanha a lógica da normatização da vida.

O ambiente hospitalar não é imune aos efeitos do culto exacerbado à saúde ao bem- estar. O que se observa nesses ambientes é que não há lugar para o mal-estar. A psicanálise ensina que ao rechaçarmos o sofrimento humano, inventando novas fórmulas anestésicas para calá-lo, estamos agindo segundo uma ética perversa que desconsidera a lei fundamental que rege todo o funcionamento psíquico: a lei das pulsões.

Catherine Mathelin-Vanier . conhece em profundidade os efeitos nocivos da pulsão, quando esta não encontra vazão pela palavra ou quando não encontra no Outro, no caso de um psiquismo e constituição, um elo satisfatório que transforme a pulsão em subjetividade.

O bebê necessita ser considerado como um sujeito. A partir dos ensinamentos de Lacan e de Winnicott, nós consideramos que um bebê não é um sujeito, ele não existe a priori, ele não é nada sem o Outro: a criança se nutre dos cuidados e dos significantes do Outro. Se não há um Outro a criança não possui outra saída a não ser deixar-se morrer, tanto psiquicamente como fisicamente. (Mathelin-Vanier, 2009/2, p. 23-24 / tradução livre).

Antes de adentrarmos na análise de algumas vinhetas clínicas ricas do ponto de vista teórico, assim como esclarecedoras quanto à proposta de reanimação psíquica considerada por essa autora, devemos abrir uma ressalva para discriminar a utilização dessa noção iminentemente psicanalítica de outras práticas vinculadas às correntes cognitivistas e psiquiátricas. Vanier (2006) nos alerta sobre a especificidade da abordagem psicanalítica frente ao trabalho multidisciplinar empreendido na clínica da prematuridade.

Sabemos que todos os pais sonham em conceber um bebê perfeito; os biologistas, por sua vez, sonham em confeccionar belos e regulares embriões que se multipliquem de forma adequada. Os reanimadores desejam manter um bom nível de saturação, evitar má formação das membranas hialinas e curar a enterocolite. Ocorrem também, do lado das ciências psicológicas, promessas de boa adaptação entre mãe e bebê, de manutenção a qualquer custo do laço entre a dupla. Nesta perspectiva, esses tratamentos curativos são passíveis de avaliações, mensurações, e registros cientificamente validados. (VANIER, 2006).

Essa autora põe em questionamento a promessa de cura feita por um analista que se aventura nos terrenos desses novos nascimentos e afirma que seu trabalho é, antes de mais nada, desprender-se de todos os preconceitos: “Talvez isto consista em pensar que a psicanálise não devesse falar de cura”. (VANIER, 2006). Argumenta que mesmo sem instrumentos de medida, de registro ou de estatísticas, cabe ao psicanalista experimentar compreender o que ocorre no serviço, com os bebês, pais e médicos. Sustentar apenas o discurso dos “sábios”, representados pelos médicos e outros membros da equipe multidisciplinar, os quais propõem a cura do corpo e da alma a todo custo, revela o risco de apagar nos pais sua preciosa sabedoria sobre a gravidez e a parentalidade.

Esses pais com o tempo vão deixando de se perguntar “como será o meu bebê?”. Outra pergunta fria e angustiante instala-se nos casos dos bebês “mecanicados” e “objetalizados” pelo discurso médico: “meu bebê sobreviverá?”. Ao substituir a primeira pergunta pela segunda, observamos nos pais um gradativo empobrecimento da sua

capacidade imaginativa, o que pode ocasionar desagradáveis consequências para a constituição psíquica do bebê. “O sonho dos sábios fragiliza a capacidade de sonhar dos pais [...]. Tudo ocorre como se a possibilidade de rêverie e a preocupação materna primária fossem suspensas a uma só questão: ele será viável?” (VANIER, 2006 / tradução livre).

Sob essa ótica, observamos os efeitos que as modernas técnicas de procriação vêm causando na capacidade de parentalização desses pais, os quais entregam nas mãos das ciências biológicas, desde os primeiros momentos da concepção, o saber sobre a vida, a saúde e o destino dos seus bebês. Catherine Mathelin-Vanier . lembra-nos que o número de casos de partos prematuros é altíssimo dentre a população de mulheres submetidas a técnicas de fertilização. É com essa mesma população de mulheres, muitas vezes destituída de algum discurso desejante, com que se depara o psicanalista no serviço de reanimação.

Cabe a esse personagem a abordagem do mal-estar próprio desse ambiente de trabalho, manifestado em diversas montagens de sofrimento psíquico. Ele irá, além de empreender a reanimação psíquica do bebê, reanimar o discurso que o circunda, sob o qual o bebê estará exposto e vulnerável, ao longo de todo o período de hospitalização. Trata-se, portanto, de “reanimar a criança e o discurso que a anima”. (MATHELIN, 1999).