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2.3 Grupos de mulheres, feminismos e software livre

3.1.1 A categoria analítica gênero 4

O gênero, enquanto categoria social, pode ser considerado como uma das maiores contribuições dos feminismos contemporâneos; começou a ser utilizado a partir dos anos 1970, alcançando maior impacto a partir de 1980-1990 (SARDENBERG, 2002). Embora seja

51 Texto original: resultó insuficiente para comprender los processos que operan dentro de la estructura social

y cultural de las sociedades, condicionando la posición e inserción femenina en realidades históricas concretas.

motivado pelas tentativas de entender a situação das mulheres, gênero não se refere apenas a elas (PISCITELLI, 2002).

As problematizações das relações de gênero conseguiram romper com a ideia de caráter natural. O feminino ou o masculino não se referem ao sexo dos indivíduos, mas sim às condutas consideradas femininas ou masculinas. Neste contexto, a categoria de gênero pode ser entendida com uma explicação acerca das formas que adquirem as relações entre os gêneros, que alguns consideram uma alternativa superadora de outras matrizes explicativas, como a teoria de patriarcado (GAMBA, 2009a, p. 121, tradução nossa)52.

A definição de gênero que assumimos neste trabalho é a de Joan Wallach Scott (1990), que afirma que o gênero é a construção social das diferenças percebidas e que dá significado às relações de poder sexuadas (SCOTT, 1990).

O núcleo essencial da definição [de gênero] repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significações às relações de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações do poder, mas a direção da mudança não segue necessariamente um único sentido (SCOTT, 1990, p. 14).

Dessa forma, Scott (1990) rompe com o determinismo biológico e dá um sentido relacional ao gênero. Gênero não se refere ao feminino ou masculino, não é uma categoria de dimensão binária, mas permite entender as diferenças sociais dos sexos a partir de múltiplas possibilidades (NICHOLSON, 2000; SARDENBERG, 2007; SCOTT, 1990), embora “estudos de gênero” seja utilizado muitas vezes em substituição a “estudos de mulheres”.

Scott (2001) considera o conceito de gênero importante no sentido de ter destacado elementos culturais em detrimento das características biológicas. Este foi exatamente o ponto para usar a categoria gênero ao invés de sexo nas discussões sobre os papéis e comportamentos de homens e mulheres, por este não ser natural, mas sim atribuído. Dessa forma, nas ciências sociais, o conceito de gênero apontou para estudos das diferenças sexuais socialmente percebidas. Mas cabe o questionamento à validade da categoria mulher e Linda Nicholson (2000) convida a pensá-la

como capaz de ilustrar o mapa de semelhanças e diferenças que se cruzam. Nesse

52 Texto original: La problematización de las relaciones de género logró romper com la idea de carácter

natural. Lo femenino o lo masculino no se refieren al sexo de los indivíduos sino a las conductas consideradas femeninas o masculinas. En este contexto, la categoría de género puede entenderse como una explicación acerca de las formas que adquieren las relaciones entre los géneros, que algunos consideran una alternativa superadora de outras matrizes explicativas, como la teoría de PATRIARADO (v.).

mapa o corpo não desaparece; ele se torna uma variável historicamente específica cujo sentido e importância são reconhecidos como potencialmente diferentes em contextos históricos variáveis (NICHOLSON, 2000, p. 36).

Sendo assim, Nicholson (2000) propõe a adoção de “mulher” para os estudos feministas, uma vez que tal palavra tem um caráter emotivo, político e por isso estratégico para o estudo da vida social. Segundo esta autora, o sentido da palavra mulher deve ser interpretado como provisório e capaz de englobar o que se espera do ser mulher e como estas se sentem. Esta é então uma escolha estratégica dentro desta pesquisa que se utiliza do feminismo teórica e metodologicamente; afinal este ao estudar gênero nominamos nosso objeto de estudo (as mulheres do SL), mas sem tomá-lo como um conjunto homogêneo e inerte, mas que apresenta historicidade e nuances culturais.

O sentido da re-criação da categoria mulher é, sobretudo, político. Segundo Nicholson, a categoria mulher nos termos por ela propostos ofereceria uma dupla vantagem. Possibilitaria o reconhecimento de diferenças entre mulheres, mas, uma vez que também permite mapear semelhanças, não inviabilizaria a prática política – que, de acordo com a autora, não exige um sentido definido para o termo mulher. É claro que se trata de políticas de coalizão – de políticas compostas por listas de reivindicações relativas às diferentes necessidades dos grupos que constituem, temporariamente, a coalizão (PISCITELLI, 2002, p. 21).

O feminismo trouxe avanços para a ciência e a teoria social ao desconstruir a noção do sujeito universal, tanto do modelo do homem padrão, como também a da mulher padrão (PORTOLÉS, 1999). Por isso, Donna J. Haraway (2009, p. 57) afirma que “[n]ão há nenhum espaço estrutural para a raça (ou para muita coisa mais) em teorias que pretendem apresentar a construção da categoria ‘mulher’ e do grupo social ‘mulheres’ como um todo unificado ou totalizável”.

Longe de considerar que as categorias de análises feministas já estão resolvidas ou que possam ser tomadas como estáveis, unificadas e totalizadoras (HARAWAY, 2009; HARDING, 1993; NICHOLSON, 2000; PISCITELLI, 2002), entendemos que a categoria “mulheres” está contida na categoria gênero. Afinal, […] “gênero” é uma categoria analítica, “mulheres” é uma categoria empírica. […] “mulheres” é uma categoria de gênero, daí a relevância teórica do uso de ambas as categorias (SARDENBERG, 2007, p. 55, tradução nossa)53.

53 Texto original: Suely Kofes (1993) argues that where “gender” is an analytical category, “women” is an

empirical one. She further stresses, as noted earlier, that “women” is a category of gender, thus the theoretical relevance of using both of these categories.

Dessa forma, este estudo aborda a categoria empírica “mulheres” como uma categoria complexa de gênero. Utilizamos “mulheres” no plural por que assumimos a enorme diversidade ao interior deste grupo. Há mulheres brancas, negras, pobres e ricas, há mulheres que têm sido registradas como homens (hoje denominadas de “transsexuais”), mulheres hétero, bi, homo e polissexuais. Neste trabalho, na medida em que cada uma delas se identifica como “mulher” passou a ser parte de nosso estudo.

3.2 CRÍTICAS FEMINISTAS À TEORIA SOCIAL E À CIÊNCIA

A crítica feminista aponta para a não neutralidade e para a construção histórica e social da ciência e da teoria social, principalmente em relação a gênero, questionando a sua objetividade (COLLINS, 1990; GARCÍA, 1999; HARAWAY, 1993, 1995, 2004; HARDING, 1993; KELLER, 1991; MAFFÍA, 2007, 2008; OLIVEIRA, 2008; PORTOLÉS, 1999; SARDENBERG, 2002; SCAVONE, 2008; SCOTT, 1990, 2001; WAJCMAN, 2006, 2009).

Assumindo-se neutra e objetiva, a ciência sistematicamente afastou as mulheres deste campo, tanto impedindo a participação de mulheres nos espaços de construção do conhecimento científico, quanto relacionando as características consideradas femininas como inadequadas e inapropriadas ao método científico, como afirma Diana Maffía (2007). Também é importante mencionar que as correntes hegemônicas da ciência ocidental também excluem outras subjetividades e subalternidades, como o que ocorre com as masculinidades que fogem do padrão de homem, branco, adulto, forte, heterossexual, casado, proprietário (GIDDENS, 2005; HARAWAY, 1993; MAFFÍA, 2007, 2008). Como nos lembra Evelyn Fox Keller (1991), não apenas as mulheres foram feitas como são, os homens e a ciência também são construções sociais.

O gênero também aparece implicado na ciência nas seguintes formas: na separação entre ciências duras (masculino) e ciências brandas (feminino); na busca por objetividade (masculino) como sinônimo de boa ciência e na desvalorização da subjetividade (considerada feminina); na linguagem científica e na sua promessa de ser literal ao relatar a realidade. Contudo, esta linguagem, mesmo se assumindo como não literária, assume metáforas sexuais que desvalorizam o que é relativo às mulheres (MAFFÍA, 2007, 2008).

Os estudos de gênero e ciência surgiram a partir de duas principais fontes. A primeira provêm das experiências das mulheres atuantes na ciência, cujo trabalho e capacidade intelectual eram inferiorizados em relação aos dos homens, além de perceberem as dificuldades ao acesso e permanência delas neste campo. A segunda fonte dos estudos de gênero e ciência foi a da atuação das militantes feministas que, inicialmente, buscaram tratar da exclusão da mulher nas ciências (GARCÍA, 1999; MAFFÍA, 2007).

Os estudos feministas precisaram passar por uma mudança na sua abordagem sobre o tema para chegar a sua atual crítica ao androcentrismo na ciência. Afinal, era necessário compreender o sexismo embutido nos fazeres científicos e nas teorias sociais para então

criticar e transformar os processos científicos (e tecnológicos). Esta mudança de abordagem ficou conhecida devido a Sandra Harding (1993) como a passagem da “questão da mulher na ciência” para a “questão da ciência no feminismo”. Ou seja, ao invés de buscar inserir as mulheres na lógica androcêntrica das ciências, o movimento e a teoria feministas passaram a examinar as práticas científicas cuja lógica é sexista e excludente. Apesar das divergências de posições nos estudos feministas da ciência, estes têm como foco comum a crítica ao androcentrismo e ao sexismo transmitidos, refletidos e recriados nas práticas e nos produtos científicos (COSTA, 1998; GARCÍA, 1999; KELLER, 1991; MAFFÍA, 2007, 2008; SARDENBERG, 2002).

Quando vinculamos gênero e ciência, nos interessa discutir, especialmente, as estratégias metodológicas que permitem uma reconstrução feminista da ciência, não apenas do papel das mulheres como sujeitos de produção de conhecimento, sem os preconceitos que o gênero imprime ao produto, à teoria científica. Revelar - seria a tarefa - desvendar o sexo (masculino) escondido da ciência (MAFFÍA, 2007, p. 11, tradução nossa)54.

Consideramos que sexismo é um mecanismo pelo qual um sexo recebe mais privilégios em relação a outro. Embora seja utilizado como sinônimo de preconceito contra a mulher, o sexismo pode ocorrer na forma de misoginia, androfobia ou homofobia. Já o androcentrismo é a concepção que dá mais privilégios aos homens (CONTRERAS, 2009), pois tem nele e em suas experiências o sujeito padrão para representar a humanidade (COSTA, 1998). Exemplo disto pode ser facilmente encontrado em nossa língua que se utiliza do gênero masculino para representar o ser humano (“o homem nasce, cresce e morre”) e também para formar o plural (“todos nós nascemos, crescemos e morreremos um dia”).

O termo androcentrismo esteve ligado à noção de patriarcado (COSTA, 1998; FONTENIA, 2009) e apesar das críticas a esta categoria, o androcentrismo pode ser entendido como parte do pensamento hegemônico que sistematicamente subordina as mulheres. Além de entender o androcentrismo como característico do pensamento científico, também podemos apontar a sua associação ao etnocentrismo (GIDDENS, 2005), gerando a visão de um indivíduo universal em uma cultura universal.

Haraway (2004) alerta que os feminismos devem apontar para a não assunção de dicotomias que possam tratar como antagônicas as categorias homem e mulher, ciência e

54 Texto original: Cuando vinculamos género y ciencia, nos interesa discutir em especial las estrategias

metodológicas que permitan una reconstrucción feminista de la ciencia, no sólo del papel de las mujeres como sujetos de produción de conocimientos, sino de los sesgos que el género imprime al producto, a la teoría científica. Desocultar - sería la tarea -, quitar el velo que esconde el sexo (masculino) de la ciencia.

política, ciência e sociedade, ciência e cultura. A autora lembra que: a) qualquer descrição do mundo não está livre de narrativas; b) a ciência está relacionada com relatos, desejos, razões e materialidades; c) a ciência é uma prática cultural e cultura em prática, as suas fronteiras estão sempre à prova; e d) as categorias se colapsam umas dentro das outras, de forma que a dimensão técnica não está livre das demais dimensões (políticas, econômicas, textuais, etc.). Ou seja, Haraway não acredita na “pureza” destas categorias, de forma que ciência, política, sociedade e cultura podem se influenciar mutuamente. Para tanto não se deve pensar em termos de essência, mas em contingência, considerando-se o contexto e todos os agentes (humanos e não humanos) envolvidos.

Os feminismos hoje entendem a heterogeneidade das mulheres e por isso, a necessidade de estudos interseccionais que incluam a raça, classe e gênero, além de outras como nacionalidade, idade e etnia. Neste sentido, Patricia Hill Collins (1990) apresenta o feminismo negro como uma crítica à teoria feminista hegemônica, protagonizada e desenvolvida por mulheres brancas. Os esforços para o desenvolvimento e a introdução do pensamento negro na teoria feminista e na teoria social em geral precisaram descobrir, interpretar, analisar e preservar o trabalho individual de pensadoras negras, e as organizações alternativas de mulheres negras que não eram percebidas enquanto intelectuais. Também foi necessário repensar as epistemologias e metodologias de estudo, além de desconstruir a dicotomia entre a academia e o ativismo negro (COLLINS, 1990).

Dessa forma, da reunião de diferentes abordagens sobre a ciência a partir de uma perspectiva feminista, emerge o que Cecilia Maria Bacellar Sardenberg (2002) defende ser uma ciência feminista. Sendo assim, os estudos feministas em sua crítica à teoria social e à ciência - ou à ciência feminista - alertam para a não neutralidade dos processos sociais e científicos, desvelando a propagação de ideologias e interesses, disputas de poder, homogenizações e institucionalizações, inclusive internas à própria teoria feminista. Neste trabalho, estas noções são importantes para as análises feministas da tecnologia, especialmente, da brecha digital de gênero, como veremos mais adiante.