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3.3 Críticas feministas à tecnologia

3.3.2 Feminismo cyborg 5

Conhece-se (ou denomina-se) como feminismo cyborg61 (WAJCMAN, 2006;

HARAWAY, 2009; SANDOVAL 2004) aquele derivado das considerações da cientista Donna Haraway, quem se dedicou à história e à filosofia da ciência, criticando, principalmente, a objetividade da tecnociência, defendendo a validade dos saberes localizados e situados e a parcialidade como parte de um enfoque feminista.

Para Haraway é imprescindível ao feminismo não apenas criticar a ciência a partir da perspectiva de gênero, mas também pensar nas multiplicidades e diferenças que existem entre indivíduos e entre culturas. Acredita que o feminismo deve não apenas analisar, mas também alterar o quê e como pensamos (HARAWAY, 2004; SELGAS, 1995). Haraway está sempre questionando estabilizações, fronteiras e limites, de forma que não se prende a disciplinas.

O contexto no qual se enquadram alguns dos trabalhos de Haraway é o pós-humanismo e sua crítica ao pensamento humanista sobre a natureza humana e sobre a dominação da natureza e da técnica pelo sujeito humano pensante. Já as desconstruções defendidas pelo pós- humanismo questionam a corporificação do pensamento. A sociedade e a tecnociência do pós- guerra e da expansão industrial são as que estão no foco da autora.

61 Seis anos após a publicação do Manifesto Cyborg, Donna Haraway publicou a sua atualização em um texto

Influenciada pelo pós-modernismo, a autora questiona a ideia de sujeito singular, autônomo e racional, totalmente separado do outro e da natureza, que considera ser uma construção do “humano” tipicamente moderna. Neste contexto, também é importante destacar a “virada linguística” e seu impacto nas ciências naturais e humanas, pois a linguagem passou a ser vista como a morada do ser, criadora de realidades e estruturadora, inclusive, do inconsciente, além do fato de que os meios de comunicação passaram a ser entendidos como simuladores da realidade. Sendo assim, a autora avalia a tecnociência como uma construção retórica que fabrica o que é conhecimento que é mediador e conformador do ser, do estar e do entender o mundo (HARAWAY, 1995; SELGAS, 1995).

A tecnociência excede de maneira extravagante a distinção entre ciência e tecnologia, natureza e sociedade, sujeitos e objetos, natural e artificial, que estruturam o tempo imaginário chamado modernidade. Utilizo a palavra tecnociência para significar uma mutação na narrativa histórica, similar às mutações que indicam a diferença entre o sentido do tempo nas crônicas europeias medievais das histórias seculares acumulativas de salvação da modernidade (HARAWAY, 2004, p. 20, tradução nossa)62.

Em suas análises, Haraway faz uso da ficção científica, de metáforas e de textos literários para desconstruir alguns fundamentos da ciência convencional e para propor uma nova epistemologia feminista. Para a autora, a ciência é descrita com base em metáforas e teriam, algumas delas, desfavorecido as mulheres. Figuração, para Haraway, é o contraponto à representação (HARAWAY, 2004). A metáfora e a figuração são instrumentos para promover a mobilização política e a desconstrução da ciência e tecnologia (ARDITI, 1995; HARAWAY, 1995, 2004; SELGAS, 1995).

As figurações são imagens performáticas que podem ser habitadas. As figurações, verbais ou visuais, podem ser mapas condensados de mundos discutíveis. Toda linguagem é figurativa, incluindo a matemática; isto é, feito de alegorias, que consistem em golpes que nos distanciam de determinações literais. Enfatizo a figuração para tornar explícita e inevitável a qualidade de todos os processos semiótico-materiais, especialmente na tecnociência (HARAWAY, 2004, p. 28, tradução nossa)63.

62 Texto original: La tecnociencia excede de manera extravagante la distinción entre ciencia y tecnologia,

naturaleza y sociedad, sujetos y objetos, natural y artificial, que estructuran el tiempo imaginario llamado modernidad. Utilizo la palabra tecnociencia com el fin de significar una mutación em la narrativa histórica, similar a las mutaciones que señalan la diferencia entre el sentido de tiempo en las crónicas europeas medievales y las historias seculares acumulativas de salvación de la modernidad.

63 Texto original: Las figuraciones son imágenes perfomativas que pueden ser habitadas. Las figuraciones,

verbales o visuales, pueden ser mapas condensados de mundos discutibles. Todo linguaje es figurativo, incluindo el de las matemáticas; es decir, hecho de tropos, constituido por golpes que nos alejan de determinaciones literales. Enfatizo la figuración para hacer explícito e ineludible la cualidad trópica de todos los procesos semiótico-materiales, especialmente en la tecnociencia.

Para Haraway não é possível se alcançar uma verdade estável que seja útil e se adéque a todas e todos a partir de um único um ponto de vista ou de uma única voz. Daí, a reivindicação dos conhecimentos situados. Ela defende uma objetividade encarnada e plural, que é a objetividade feminista, aquela que tem consciência da sua parcialidade. Contudo, além de condenar o antiessencialismo e as totalizações, esta cientista também condena o relativismo, pois a este falta posicionamento e criticismo ao assumir vários e todos os pontos de vista. Outro aspecto importante para este pensamento de Haraway é o de considerar tanto a materialidade quanto a agência dos objetos nas relações sociais e no fazer científico (HARAWAY, 1995, 2004), afinal “os códigos do mundo não jazem inertes, apenas à espera de serem lidos. O mundo não é matéria-prima para a humanização” (HARAWAY, 1995, p. 37).

Parece claro que as versões feministas de objetividade e corporificação - isto é, de um mundo - do tipo das que foram aqui esboçadas requerem uma manobra enganosamente simples no interior das tradições analíticas ocidentais, uma manobra que começou com a dialética, mas que parou antes das revisões necessárias. Saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo do senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em sua autoridade de conhecimento "objetivo". A observação é paradigmaticamente clara nas abordagens críticas das ciências sociais e humanas, nas quais a própria agência das pessoas estudadas transforma todo o projeto de produção de teoria social. De fato, levar em conta a agência dos "objetos" estudados é a única maneira de evitar erros grosseiros e conhecimentos equivocados de vários tipos nessas ciências. Mas a mesma observação deve valer para os outros projetos de conhecimento chamados de ciências (HARAWAY, 1995, p. 36-37).

O/a cyborg é a figuração mais emblemática de Donna Haraway. Com esta figura híbrida e transgressora de fronteiras, a autora questiona as dicotomias humano–máquina; mente– corpo; natureza–cultura; dentre outras.

[O] cyborg vive sem inocência no regime do tecnobiopoder, no qual a alfabetização é sobre a conexão entre informática, biologia e economia: sobre o parentesco entre chips, gene, semente, bomba, linhagem, ecossistemas e base de dados (HARAWAY, 2004, p. 18, tradução nossa)64.

O/a cyborg serve, sobretudo, como um símbolo de resistência para assim denunciar a construção da cultura e do conhecimento hegemônicos construídos em meio a ideologias e interesses políticos, sob o ponto de vista do homem branco ocidental, sem levar em conta

64 Texto original: Nili, Riva, Malkah y el cyborg viven sin inocencia en el régimen del tecnobiopoder, en el que

la alfabetización trata sobre la unión entre informática, biología y economía: sobre el parentesco entre chip, gen, semilla, bomba, linaje, ecosistema y base de datos.

questões de raça, nacionalidade, etnia, idade, experiência e saberes situados (HARAWAY, 2004, 2004b). É uma crítica à representação, que sempre coloca em oposição a coisa representada e quem a representa.

Um das premissas do feminismo cyborg é que não há dualismos entre construções simbólicas e artefatos físicos. Outra premissa é a luta por outras formas de poder e prazer que não sejam baseadas em dominação (HARAWAY, 2009).

O/a cyborg não tem compromisso com o conhecimento teológico, nem com a ciência hegemônica, objetividade e determinismo de nenhum tipo. Esta figuração quebra três tipos de fronteiras: a humano–animal, que também pode ser dita como cultura–natureza; a organismo- máquina e em decorrência, a natural–artificial, mente–corpo, autocriação–criatura; e por fim, as fronteiras entre o físico–não físico, levando em conta as propriedades de ubiquidade, mobilidade, fluidez, invisibilidade e dimensões diminutas das tecnologias (HARAWAY, 2009).

Para o/a cyborg não há essência, há situações e afinidades dentre as diferenças. Ou seja, o/a cyborg é uma unidade poético-política que não envolve dominação, incorporação e identidade e que busca não ser totalitária e excludente (HARAWAY, 2009).

Explorando o feminismo cyborg e estas considerações sobre a multiplicidade do sujeito, os discursos alternativos da feminilidade que repudiam os impulsos de dominação, a coalizão de afinidades e a importância do conhecimento situado das classes subalternas, Chela Sandoval (2004) clama por uma metodologia das oprimidas. Ela o faz, principalmente, no que se refere ao feminismo que se desenvolve a partir da perspectiva das resistências mestiças e indígenas, do feminismo do terceiro mundo estadunidense, do pós-modernismo e da teoria

queer.

Isto pode ocorrer quando o ser e a ação, o conhecimento e a ciência, tornam-se auto- conscientes codificados pelo o que Haraway chama conhecimentos "subjugados" e "situados" e que eu chamo a metodologia das oprimidas, uma metodologia que surge de situações variáveis e se manifesta em uma infinidade de maneiras ao longo do Primeiro Mundo e de modo indômito desde as mentes, corpos e espíritos das feministas do Terceiro Mundo dos Estados Unidos, que têm exigido o reconhecimento da "mestiçagem", a resistência indígena e a identificação com os colonizados (SANDOVAL, 2004, p. 105, tradução nossa)65.

65 Texto original: Esto puede ocurrir cuando el ser y la acción, el conocimiento y la ciencia, lleguen a ser

autoconscientemente codificados a través de lo que Haraway llama conocimientos «subyugados» y «situados», y que yo llamo la metodología de las oprimidas, una metodología que surge de situaciones variables y se manifiesta en una multiplicidad de formas a lo largo del Primer Mundo y de modo indómito desde las mentes, cuerpos y espíritus de las feministas del Tercer Mundo de los Estados Unidos que han exigido el reconocimiento del «mestizaje», la resistencia indígena y la identificación con los colonizados.

Embora Wajcman (2006) considere relevante o diálogo entre o feminismo socialista e o pós-modernismo da solução cyborg de Haraway, ela tece algumas críticas:

Sua análise penetrante das interconexões entre capitalismo, patriarcado e tecnociência não é consistente com a sua fé em um discurso radical da descontinuidade do potencial emancipatório das tecnologias avançadas. Às vezes, a solução cyborg está perigosamente próxima a assumir o apoio do ciberfeminismo a todas as inovações tecnológicas em si. Assim como a marcante desconstrução textual de Haraway e igualmente o seu otimismo são atraentes, este foco no gênero- como-poderia-ser a faz perder de vista a estrutura de gênero penetrante e relativamente inexorável das relações sociotécnicas. No final, Haraway e aqueles que têm seguido esta autora dão mais importância à semiótica que aos aspectos materialistas da tecnociência (WAJCMAN, 2006, p. 162-163, tradução nossa)66.

As considerações de Donna Haraway e o chamado feminismo cyborg são especialmente marcantes para algumas outras expressões dos feminismos da tecnologia, como veremos nos casos do ciberfeminismo e, mais adiante, do tecnofeminismo.

3.3.3 Ciberfeminismos, ativismo e teoria feminista na era digital

Com o início dos estudos de Internet e a Cibercultura, principalmente a partir de 1990, o gênero também passou a ser uma variável a ser estudada, mesmo que, em alguns casos, sem o caráter estrategicamente feminista de outrora. Nancy Baym (2010) apresenta um levantamento das primeiras pesquisas neste campo e diz que na fase da perspectiva otimista em relação ao ciberespaço, pesquisadoras/es o olharam no sentido de liberação do corpo material e de criação de identidades mais fluidas e múltiplas. Neste mesmo sentido, Sherry Turkle (1997) apresentou as interações sociais através do computador e da internet como marcadas pelo ambiente textual das suas primeiras mídias o que favorecia uma atuação performática e criativa do eu. A possibilidade da experimentação de identidades flexíveis e múltiplas resultou, por exemplo, na exploração de outras manifestações de gênero no online o que ajudou a refletir sobre a sua conformação na vida offline.

Ainda segundo Baym (2010), algumas pesquisas sobre o uso da comunicação mediada

66 Texto original: Su penetrante análisis de las interconexiones entre capitalismo, patriarcado y tecnociencia

no es coherente con su fe en un discurso radical de la discontinuidad y del potencial de emancipación de las

tecnologías avanzadas. A veces, la solución cyborg está peligrosamente próxima a suscribir el apoyo del ciberfeminismo a todas las innovaciones tecnológicas per se. Si bien la vívida deconstrucción textual de Haraway al igual que su optimismo, resultan atractivos, el hecho de centrarse en el género-como-podría-ser le hace perder de vista la estructura de género penetrante y relativamente inexorable de las relaciones sociotécnicas. Al final, Haraway y quienes han seguido a esta autora dan mayor importância a la semiótica que a los aspectos materialistas de la tecnociencia.

por computadores compararam as mensagens enviadas por homens e por mulheres para perceberem a influência do gênero em relação ao conteúdo; o sexismo também foi percebido nas pesquisas iniciais sobre a cibercultura, nas quais constatou-se que mulheres são atacadas em ambientes digitais justamente por serem mulheres, além de serem objetificadas, enquanto os homens são mais atacados por suas ideias e argumentos expostos na internet.

Sobretudo, foi no campo das artes que uma nova corrente surgiu, repensando o movimento feminista e o potencial ativista das TICs. Dessa forma, a junção do “ciber” com o “feminismo” não designa apenas uma transição das manifestações políticas dos feminismos tradicionais para o ciberespaço. Outras questões foram englobadas no que se tem denominado ciberfeminismo.

O termo ciberfeminismo surgiu da publicação do “Manifesto Ciberfeminista para o Século 21” escrito pelo grupo de artistas VNS Matrix, na Austrália, em 1991. O grupo formado por quatro artistas o denominou “manifesto” como forma de homenagear a feminista Donna Haraway (do “O Manifesto Ciborgue” de 1985). As ciberfeministas, cujos trabalhos experimentais exploravam o sujeito feminino, a arte e o virtual, defendiam que o ciberespaço possui uma essência e linguagem feminina, o que o tornaria adequado ao ativismo e à apropriação das mulheres e das suas organizações (MIGUEL & BOIX, 2013; WELLS, 2005).

O ciberfeminismo trouxe consigo três tipos de contribuições que lidam com: 1) conectividade, o que possibilita a ativismo através da associação de mulheres, que se encontram em diferentes contextos, em torno de questões locais e/ou globais; 2) crítica à cibercultura e seus aspectos positivos e negativos, como o que se refere à virtualização dos corpos, memória e interações sociais; e 3) criatividade, com a produção e desenvolvimento de arte e multimídia, que refletem as mudanças advindas com as novas tecnologias (HAWTHORNE & KLEIN, 1999).

Dentro do ciberfeminismo, também podemos encontrar divisões e diferentes abordagens dadas à tecnologia. Uma abordagem que podemos destacar é a otimista ou mesmo utópica com relação com às possibilidades advindas com as comunidades da internet (WAJCMAN, 2006; BROPHY, 2010). Nesse sentido, adquirem destaque o trabalho de Sadie Plant. Plant (1999) conta a história de Ada Lovelace67 e sua experiência com a “máquina diferencial de

Charles Babbage”68. Ela é considerada a primeira pessoa a criar um programa de computador,

67 Ada Augusta Byron, posteriormente, Ada Augusta Byron King, Condessa de Lovelace ou Ada Lovelace

(1815-1852).

68 Curiosamente e sintomaticamente, na Wikipedia em inglês, Ada Lovelance só é citada no artigo da Máquina

quase 100 anos antes do primeiro computador ter sido realmente criado. Baseando-se neste exemplo de mulher atuando em uma área de domínio masculino e nos comentários da própria Ada Lovelace sobre sua condição e ansiedades e, ainda, sobre as possibilidades daquela máquina para a sociedade, Plant (1999) denuncia a falta de espaço para as mulheres na linearidade e no binarismo do mundo corpóreo, que seriam superados no ciberespaço.

Os zeros e uns da linguagem de máquina candidatam-se aparentemente como símbolos perfeitos das ordens da realidade ocidental, dos antigos códigos lógicos que estabeleciam a diferença entre ligado e desligado, direita e esquerda, luz e trevas, forma e matéria, mente e corpo, […] E formam um belo casal quando o assunto é sexo. Homem e mulher, macho e f mea, masculino e feminino: 1 e 0ẽ considerados ansolutamente perfeitos, feitos um para o outro. […] São precisos dois para formar um binário, mas todos esses pares são da mesma qualidade, e a qualidade é sempre do mesmo tipo: 1 e 0 formam outro 1. Homem e mulher somam homem. Não há equivalente feminino. Nenhuma mulher universal ao lado dele (PLANT, 1999, p. 38-39).

Ada estava em busca de alguma coisa que fizesse algo mais do que representar um mundo existente. Algo que funcionasse: algo novo, alguma outra coisa. Até os médicos concordavam que ela precisava de “excitações peculiares e artificiais, como questão de segurança, até mesmo para sua vida e felicidade”. Esses estímulos simplesmente não existiam. Ela tinha que criá-los para satisfazer-se (PLANT, 1999, p. 36).

No que se refere às “novas tecnologias”, a autora identifica as possibilidades de criação de redes, a conectividade, a navegabilidade hipertextual, criação de conteúdos e uso de textos, imagens e etc., a multiplicidade de perspectivas, dentre outras características feministas do ciberespaço. Além de apontar a influência do trabalho de mulheres sobre tecnologias em diversas áreas, inclusive as relacionadas à cibercultura, as características desta mídia foram lidas pela autora como potencialmente femininas e transformadoras da condição social das mulheres.

Ada estava estranhamente sintonizada com as complexidades, velocidades e conectividades inerentes aos tecidos tamanho masculino de seu mundo. Sua “fração pequenina de outro sentido” levou-a mesmo a pensar em algum “prolongamento ulterior” da realidade, semelhante “a Geometria de Três Dimensões & ela, talvez, semelhante a um prolongamento ulterior em alguma região desconhecida & assim

ad infinium, possivelmente”. Ela sabia que seu trabalho poderia exercer alguma

influência inconcebível sobre seu próprio tempo: “Talvez nenhuma de nós possa lhe estimar a magnitude”, escreveu ela. “Quem pode calcular aonde ele poderá levar, se observarmos, especialmente, as condições reinantes no presente?” E quando refletia, em suas notas de rodapé, ficava “atônita com o poder da palavra escrita. Com certeza, é muito improvável um estilo feminino”, continuou, “mas tampouco posso Lovelance apenas é citada na seção “Veja Também” do artigo sobre Charles Babbage da Wikipédia em português. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Difference_engine >. Acesso em: 28 nov. 2014.

compará-lo exatamente ao de um homem”. O estilo era, talvez, um código para os números que viriam (PLANT, 1999, p. 231-232).

Sadie Plant69 é considerada a “principal expoente britânica do ciberfeminismo”

(WAJCMAN, 2006, p. 99), apesar de não se autodenominar “ciberfeminista”, mas sim “escritora” (TRENEMAN, 1997). Contudo, as suas ideias ciberfeministas ajudam a demarcar uma relação entre feminismo e tecnologias diferente de outrora, encontrando nas TICs um novo espaço para a experimentação social, ativista, identitária e sexual das mulheres. Esta ciberfeminista acreditava que com as tecnologias digitais o androcentrismo, a relação identitária dos indivíduos a um corpo sexuado e a tecnofobia das feministas poderiam ser superados, reconfigurados (MIGUEL & BOIX, 2013; WAJCMAN, 2006, 2009).

Para Plant, as inovações tecnológicas foram essenciais na fundamental transferência de poder dos homens para as mulheres que se produziu nas culturas ocidentais na década de 1990, transferência qualificada de “tremor de gênero”. Ao acessar as mulheres as oportunidades econômicas, as habilidades técnicas e os poderes culturais sem precedentes, foram postas em questão as expectativas, os estereótipos, o sentido de identidade e os postulados de épocas anteriores. A automação reduziu a importância da força física e das energias humanas e substituiu estas por requisitos de velocidade, inteligência e habilidades de versatilidade, relações interpessoais e comunicação. Isto foi acompanhado pela feminilização da mão de obra, que neste momento favorece a independência, a flexibilidade e a adaptabilidade. Enquanto que os homens estão mal preparados para um futuro pós-moderno, as mulheres se adaptam perfeitamente à nova tecnocultura (WAJCMAN, 2006, p. 100-101, tradução nossa)70.

Nesta corrente, as tecnologias digitais são consideradas mais difusas e mais abertas a novas possibilidades e usos. Tais tecnologias são ditas mais femininas por terem maior fluidez e não linearidade, características supostamente femininas. Outros aspectos marcantes destas tecnologias tem relação com a reconfiguração espacial possibilitada pelo ciberespaço e suas experiências online. Dessa forma, imaginava-se a sublimação do corpo e a criação mais dinâmica de outras identidades alternativas, que anulariam diferenças sexuais, colocando as

69 Consideramos válido citar o site desta autora <http://www.sadieplant.com/>, mediante suas análises sobre o

ciberespaço.

70 Texto original: Para Plant, las innovaciones tecnológicas han sido esenciales en la transferencia

fundamental de poder de los hombres a las mujeres que se produjo en las culturas occidentales en la década de 1990, transferencia cualificada de “temblor de género”. Al acceder las mujeres a oportunidades económicas, cualificaciones técnicas y poderes culturales sin precedentes, se han puesto en tela de juicio las expextativas, los esteriotipos, el sentido de identidad y los postulados de épocas anteriores. La automatización ha reducido la importancia de la fuerza física y de las energías hormonales y ha sustituido éstas por requisitos de velocidad, inteligencia y habilidades de versatilidad, relaciones interpersonales y comunicación. Esto ha ido acompañado de la feminización de la mano de obra, que en este momento