• Nenhum resultado encontrado

Correntes feministas de segunda onda e sua relação com a tecnologia

3.3 Críticas feministas à tecnologia

3.3.1 Correntes feministas de segunda onda e sua relação com a tecnologia

Para entender como os feminismos se relacionaram com a expansão tecnológica e como compreenderam o impacto e a relação das tecnologias com as vidas e relações sociais das mulheres, as considerações de Wajcman (2006) tornaram-se imprescindíveis. Lucila Scavone (2008) delimita três grandes fases dos feminismos: a fase humanista ou igualitária, a fase diferencialista ou essencialista e a terceira, baseada no pós-modernismo e a desconstrução.

As temáticas dos estudos feministas e de gênero estão associadas tanto às grandes fases do feminismo como aos contextos e problemas que lhes suscitaram. O feminismo tem sido delimitado por suas etapas históricas, três grandes fases são comumente referidas: a fase universalista, humanista ou das lutas igualitárias pela aquisição de direitos civis, políticos e sociais; a fase diferencialista e/ou essencialista, das lutas pela afirmação das diferenças e da identidade; e uma terceira fase, denominada de pós-moderna, derivada do desconstrucionismo, que deu apoio às teorias dos sujeitos múltiplos e/ou nômades (SCAVONE, 2008, p. 177).

As correntes feministas da segunda onda (entre as décadas de 1960 e 1980)55, a saber, o

feminismo liberal, radical e socialista, em suas fases iniciais, e o da terceira onda (a partir da década de 1990) se relacionaram com a tecnologia de formas diferentes, como relata Wajcman (2006, p. 25, tradução nossa)56: “o interesse por gênero, ciência e tecnologia surgiu [desde o

início da década de 1970] do movimento de mulheres contemporâneo e de uma preocupação geral pela posição das mulheres nas distintas profissões”. Parte do histórico dos feminismos junto à tecnologia está marcada ora pela repulsa aos artefatos tecnológicos e aos processos industriais, ora pelo olhar mais positivo e mesmo utópico sobre o impacto da tecnologia no

55 No contexto dos Estados Unidos da América. Entendemos que, por exemplo, a corrente liberal antecede este

período, mas nos focaremos nesta época ao abordar as citadas correntes.

56 Texto original: El interés por el género, la ciencia y la tecnología surgió del movimiento de mujeres

sentido de que podem contribuir a superar as diferenças de gênero.

A corrente feminista denominada de liberal considera que a subordinação das mulheres é decorrente da discriminação e das práticas sociais sexistas, que tratam distintamente mulheres e homens, diminuindo as oportunidades daquelas. Assim, esta corrente feminista espera, dentro do capitalismo, resolver essas diferenças (SARDENBERG, 2002; WAJCMAN, 2006; VIEIRA, 2009). Ou seja, considera que “o inimigo principal seria a falta de educação e o próprio temor das mulheres ao êxito” (GAMBA, 2010b, p. 148, tradução nossa)57. Para esta

corrente do feminismo, o problema das mulheres se resume ao seu acesso restrito à tecnologia (WAJCMAN, 2006) e, por tanto, se resolve com medidas compensatórias para que estas se incorporem ao campo científico.

As lutas dessa corrente liberal buscam pela igualdade através da socialização e educação adequadas das mulheres. Logo, a solução para o aumento delas nos ambientes tecnológicos reside em ampliar as possibilidades de acesso feminino a eles. É importante ressaltar que o problema e a solução, para esta corrente, residem nas próprias mulheres, sem criticar a divisão sexual do trabalho. Contudo, outras correntes feministas da segunda onda se ocuparam da tarefa de contestar a tecnologia, iniciando assim as análises sobre como o gênero está presente nos processos de constituição da própria tecnologia58.

Ao recusar o conhecimento científico enquanto conhecimento patriarcal houve quem reivindicasse o desenvolvimento de uma nova ciência baseada nos valores das mulheres. Ao mesmo tempo, as análises feministas da tecnologia estavam indo além da abordagem “as mulheres e a tecnologia” para analisar os próprios processos através dos quais se desenvolvem e se utiliza as tecnologias, assim como aqueles através dos quais se constituem o gênero. Em outras palavras, as feministas estavam explorando o caráter de gênero da própria tecnologia. Esta abordagem se orienta basicamente em duas direções: uma marcada pelo feminismo radical e outra identificada com o feminismo socialista (WAJCMAN, 2006, p. 32-33, tradução nossa)59.

Ao invés de buscar a igualdade dos sexos, o feminismo radical focou no que havia de diferente nas mulheres, como sua capacidade reprodutiva, sexualidade e prazer, habilidades

57 Texto original: El enemigo principal sería la falta de educación y el próprio temor de las mujeres al éxito. 58 Discutiremos mais sobre esta abordagem adiante.

59 Texto original: Al rechazar el conocimento científico en cuanto conocimento patriarcal, hubo quienes

reinvindicaron el desarrollo de una nueva ciencia basada em los valores de las mujeres.

Al mismo tiempo, las análisis feministas de la tecnología estaban yendo más allá del planteamiento de “las mujeres y la tecnología” para analisar los próprios procesos a través de los cuales se desarrola y se utiliza la tecnología, así como aquellos a través de los cuales se constituye el género. En outras palabras, las feministas estaban explorando el carácter genérico de la propria tecnología. Este planteamiento se há orientado básicamente em dos direcciones: una marcada por el feminismo radical y outra identificada con el feminismo socialista.

manuais, qualidades consideradas tipicamente femininas, como o cuidado, o pacifismo, a humanidade, a espiritualidade, etc. (GAMBA, 2010b; SARDENBERG, 2002; WAJCMAN, 2006). As teóricas e as ativistas desta corrente consideram que, de uma forma geral, a causa da opressão feminina estava ligada a esta capacidade reprodutiva, que o patriarcado tenta controlar (WAJCMAN, 2006).

O feminismo radical tem como objetivos centrais retomar o controle sexual e reprodutivo das mulheres e aumentar seu poder econômico, social e cultural; destruir as hierarquias e a supremacia da ciência; criar organizações não hierárquicas, solidárias e horizontais. Outra característica principal é a independência total dos partidos políticos e os sindicatos. A maioria das feministas radicais se pronunciam também pelo feminismo da diferença, que surge em começos dos anos 1970 nos Estados Unidos e França com o slogan “ser mulher é lindo (GAMBA, 2010c, p. 147, tradução nossa)60.

As tecnologias visadas eram, principalmente, as médicas, que atuavam nos processos de gestação, parto, sexualidade, amamentação. Inicialmente, tais tecnologias foram repudiadas por serem consideradas como parte do projeto do patriarcado de dominação do corpo das mulheres e da sua capacidade de reprodução. Para além da questão das mulheres, a tecnologia era vista como um meio de controle da sociedade. O feminismo radical foi responsável pelo aprimoramento do debate acerca de gênero e tecnologia, evidenciando a necessidade de discutir a adequação da tecnologia aos interesses das mulheres (WAJCMAN, 2006). Além disso, a crítica radical à ciência foi muito mais contundente que a crítica liberal, uma vez que as radicais consideravam a ciência como sendo moldada de forma que também sofre a influência da cultura e da sociedade (SARDENBERG, 2002).

O feminismo socialista foi influenciado pelo marxismo e, com base neste, discute questões de gênero em relação ao sistema que combina patriarcado, racismo e capitalismo, ou seja, considera as causas da subordinação das mulheres como estruturais e advindas do esquema de acumulação e dominação do capitalismo e demais estruturas sociais. O trabalho passou a ser a categoria central de análise. Muitos empregos, a partir da década de 70 principalmente os relativos à administração e ao secretariado eram desenvolvidos por mulheres e foram muito impactados pelo advento da informática. Por isso, o interesse sobre o

60 Texto original: El feminismo radical tiene como objetivos centrales retomar el control sexual y reproductivo

de las mujeres y aumentar su poder económico, social y cultural; destruir las jerarquías y la supremacía de la ciencia; crear organizaciones no jerárquicas, solidarias y horizontales. Otro rasgo principal es la independência total de los partidos políticos y los sindicados. La mayoría de las feministas radicales se pronunciam también por el feminismo de la diferencia, que surge a comienzos de los 70 em Estados Unidos y Francia con el slogan “ser mujer es hermoso”.

impacto dessa tecnologia sobre estas profissões passou a ser foco das análises destas feministas. Assim, foram inseridas às preocupações do feminismo socialista as questões relativas ao trabalho feminino (remunerado e não remunerado) as experiências, oportunidades e competências das mulheres no mercado de trabalho frente à informática (WAJCMAN, 2006).

Os mais otimistas perceberam nas então novas tecnologias uma forma de aumentar a qualidade de trabalho, reduzindo atividades monótonas e insalubres. Já as feministas socialistas, frequentemente lançaram um olhar pessimista sobre estas tecnologias, o que também marcou uma época de tecnofobia feminista. Nesta corrente, os avanços tecnológicos foram considerados como parte do processo de acumulação de capital, barateando os processos de produção e também a mão de obra, principalmente a feminina, ou seja, mais desequilíbrios nas relações de poder entre homens e mulheres. A associação entre trabalho qualificado, tecnologia informática e masculinidade ficou firmada (WAJCMAN, 2006).