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CATEGORIAS QUE SE DESTACAM NOS EDITORIAIS DA RBGO: DA VISÃO DA MULHER AO PAPEL DO MÉDICO

1 UMA ANÁLISE FEMINISTA DAS CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE CORPO E SUA RELAÇÃO COM O

2. O QUE AS REVISTAS CIENTÍFICAS DAS ENTIDADES MÉDICAS FEBRASGO E ABEM EXPRESSAM EM SEUS

2.4 CATEGORIAS QUE SE DESTACAM NOS EDITORIAIS DA RBGO: DA VISÃO DA MULHER AO PAPEL DO MÉDICO

A leitura destes editoriais foi revelando o pensamento de um grupo social importante, que ocupava a direção da maior entidade médica da especialidade. Os editoriais eram justamente o espaço para expressar as preocupações do momento e reforçavam uma postura de fortalecimento da Medicina como profissão hegemônica na área de saúde e da Febrasgo como expressão da autoridade em Ginecologia e Obstetrícia. Conforme escreve Pierre Bourdieu162, a constituição do campo científico constitui um espaço de luta pelo poder por parte de quem detém o monopólio da autoridade científica – compreendida como capacidade técnica, poder social e capacidade de falar e agir – “de maneira autorizada e com autoridade”.

Neste sentido, listei quatro categorias organizadas a partir dos temas que apareceram nos textos analisados. Os textos e declarações citados são, por pressuposto, de autoria da associação e da federação. 1. Visão da Medicina como profissão: preconiza-se que a

determinação de condutas é função da Associação Médica Brasileira (AMB) e sociedades especialistas, e que cabe à Febrasgo “recomendar a melhor maneira de atender a mulher brasileira” (n. 5/2001). O médico é “confidente” da mulher, pois “é frequente a demanda de apoio, de orientação para as intempéries do espírito”. Os tocoginecologistas são “verdadeiros Médicos da Mulher”. Tem função “pontifical”, isto é, de fazer a ponte entre a mulher e demais áreas da Medicina (n. 9/2002). Faz uma apologia à igualdade das “classes laborativas do país” para, logo em seguida, defender que não é possível pagar salários iguais para profissões distintas. Defende que o exercício profissional da Medicina é mais relevante que “qualquer outro em qualquer ponto do Universo”, por conta da dedicação, atualização e pelo fato de lidar com a vida (n. 1/2003). “A profissão perdeu a progressivamente a aura de sacralidade e respeito com que sempre foi ornada” por conta da multiplicação de escolas, profissionais despreparados, salários baixos e falta de investimento no aperfeiçoamento para o exercício da “arte

161 Utilizo o substantivo masculino, repetindo a forma gramatical utilizada nas publicações analisadas, para mostrar a forma de escrita dominante.

médica” (n. 9/2003). A concepção reiteradamente expressa é de que a profissão médica é “misto de carreira técnica, arte e atividade científica”. Medicina, “mescla de ciência e arte” (n. 10/2004). “É profissão aliando técnica e humanismo”. Destaca que surgem profissões e, com isto, atividades que “sempre e de direito” foram atribuições dos médicos passam a ser realizadas por outros profissionais. Defende ações “exclusivas” dos médicos, porque “só eles são aptos, tecnicamente capacitados e legalmente habilitados” para atuar (n. 3/2004). Questiona os desníveis salariais de médicos e professores-médicos com outras carreiras de Estado, que não exigem tanta complexidade, aperfeiçoamento e cobrança constantes. Mesmo dentro das universidades, questiona o fato de o pagamento mensal ser “exatamente semelhante ao que recebe um Professor de Letras, de Teatro e outros mais que não prestam este tipo de serviço (sem qualquer demérito para estes últimos), e que nada trazem de recursos para a Universidade.” Defende a diferenciação da carreira de médico e de professor-médico, por justiça (n. 6/2004). 2. Papel da Febrasgo e relação político-profissional: a entidade

congrega a “elite” da GO (n. 6/1998) e tem o papel de representação político-profissional e assistencial no Brasil e no âmbito internacional. Evidencia disputas nos Sistema de Saúde e questiona a organização de consensos de colocar “cabresto” no ato médico, considerando-o arbitrário “cerceamento” da prática profissional (nº 5/2001). Defende o teste para Ginecologia e Obstetrícia, que confere o título de especialista em ginecologia e obstetrícia (Tego), como valor científico “incontestável” e também valor social (n. 2/2003). Afirma que existe outra posição que defende que os títulos de especialista possam ser conferidos pelos conselhos de medicina para quem fez a residência médica. Para a Febrasgo, a supressão da prova “aviltaria” a Tocoginecologia. Além do valor científico e social, prevê “valor comercial” para o título, garantindo melhor remuneração. Ratifica “seus ideais em prol da saúde da mulher” (n. 9/2004).

3. Formação médica: preocupação com a qualidade da formação na graduação e residência médica no âmbito do Mercosul (n. 3/1999). Apoia a pesquisa e qualificação dos especialistas, através dos cursos de pós-graduação, para fortalecer o “verdadeiro” conhecimento médico (n. 1/2001). Quanto à residência médica, refere que o termo remonta a um tempo em que médicos recém- formados residiam nos hospitais. “Mudou o mundo”. Como

mudaram o direito e o respeito ao paciente, não cabe mais “aprender errando”. Apresenta três aspectos a serem considerados na formação: acesso universal à informação (pacientes querem conhecer opções terapêuticas); direitos dos pacientes (antes o médico “era dono do paciente”) e os médicos são “mais vigiados” (n. 8/2001).

4. Saúde da Mulher, direitos e política assistencial: a entidade assume o indicador de mortalidade como responsabilidade da política assistencial, admitindo que “os elevados índices de mortalidade materna” ainda “entristecem nossa sociedade e maculam nossa atuação” (n. 2/2000). Divulga a realização de congresso mundial para estudo da hipertensão na gravidez, a maior causa de morte materna, em 2004, no Brasil. Estimula este período para a realização de estudos e pesquisas. Assume tal fato como “vergonha nacional” (nº7/2000). Cita a Bíblia para se referir ao parto com dor (que não combina “com os atributos de bondade e condescendência do Altíssimo”) (n. 7/2002). Cita as rotinas estabelecidas para o parto humanizado. Associa a criação de casas de parto, “com estrutura e [...] comando duvidoso” e reclama do “médico, ator relevante no cenário”, por haver sido substituído com prejuízo à figura principal: a gestante (n. 7/2002). Ressalta que o século passado foi marcado por um processo de valorização da mulher, em todos os aspectos da vida: “cultural, social, artístico, político e até religioso” (não se refere ao econômico). Percebe “o despertar de nova sociedade com igualdade e direitos e deveres para todos” (n. 8/2003). Ressalta que o mês de maio é o mês das mães, das flores e, “por que não, o mês da mulher”. Logo em seguida, refere-se ao ano de 2004 como Ano da Mulher e da comemoração de 8 de março, citando o massacre ocorrido em 1857, e à data instituída em 1910. A mulher já foi “subalterna e acólita163” do homem. Quanto às conquistas, foram “lentas e frequentemente dolorosas”. Exemplifica que “os mais antigos de nossa geração” vivenciaram como normais fatos de a mulher tratar o homem como senhor e servi-lo. Refere-se à violência contra a mulher, em especial a

163Conforme Houaiss, o termo em seu uso pejorativo significa “o que acompanha ou auxilia alguém; ajudante, assistente”.

doméstica, como situação a ser debelada. Convida a celebrar a luta pelos “direitos semelhantes164 para todos” (n. 4/2004). 2.5 “MEDICINA DA MULHER” EXPRESSA NOS EDITORIAIS DA RBGO – ANÁLISE DAS CATEGORIAS

Os temas que aparecem nos editoriais do período entre 2005 e 2012 se coadunam com o que evidencia o painel de indicadores de saúde do SUS165 para o período. Num país em que 97% dos partos são hospitalares, as taxas de mortalidade materna mantêm-se muito altas e apresentam também variações regionais, além de por raça e cor. Entre as mulheres brancas, as principais causas de morte materna são eclâmpsia166, pré-eclâmpsia167; as complicações de aborto estão em quinto lugar. Já entre as mulheres pretas e pardas, mantém-se a eclâmpsia em primeiro lugar, com taxas mais altas do que com mulheres brancas; em segundo lugar aparece o aborto, seguido de pré- eclâmpsia168.

Já destaquei, anteriormente, o fato de que, em alguns editoriais, a diretoria chama a responsabilidade da categoria médica para esta questão, pois as mortes podem ser preveníveis com a qualificação da assistência pré-natal, no parto e pós-parto. Entre as neoplasias, em primeiro lugar está o câncer de mama; em segundo, o câncer de colo de útero. A realização dos exames de prevenção do câncer de colo de útero cresceu 50% em quatro anos (de 2000 a 2003), mas dados do IBGE ainda indicam que 20% de mulheres com 25 anos ou mais nunca realizaram o exame169. Já em relação à realização do exame de mamografia, importante para o diagnóstico precoce de câncer, dados do IBGE indicam que 49,7% das mulheres na faixa etária de 50 anos nunca

164Semelhante não é igual. Conforme Houaiss, semelhante é “que é muito parecido; idêntico, análogo”. Igual é: “que, numa comparação, não apresenta diferença quantitativa; que, numa comparação, não apresenta diferença qualitativa; cujos direitos e deveres não diferem”.

165

BRASIL, 2006.

166Afecção grave que ocorre geralmente no final da gravidez, caracterizada por convulsões associadas à hipertensão arterial

167Afecção que ocorre geralmente após a vigésima semana de gestação, caracterizada por hipertensão arterial, podendo evoluir para a eclampsia

168 BRASIL, 2006, p. 21. 169 Op. Cit., p. 22

fizeram o exame, chegando a 74% em Tocantins, Maranhão e Paraíba170.

Portanto, estes editoriais respondem à necessidade da Ginecologia e Obstetrícia brasileira de se comprometerem com o Ministério da Saúde em oferecer respostas para melhorar o quadro de saúde das mulheres brasileiras, preocupação expressa em editoriais anteriores (1998 a 2004). Os temas discutidos pela revista estão entre os que se destacam comos problemas de saúde das mulheres brasileiras.

Entretanto, apesar de se ter referido a políticas globais, como a da iniciativa da Maternidade Segura, da Organização Mundial de Saúde (OMS), ou de prêmios nacionais como Galba de Araújo (entregue a maternidades que se destacam pela atenção humanizada), em nenhum momento se faz menção a políticas de saúde de atenção integral à saúde da mulher (Paism - 1985 ou Pnaism - 2004). Se a diretoria da entidade assume como tarefa política comprometer-se com o Ministério da Saúde para buscar a melhoria da qualidade de saúde das mulheres brasileiras, não se explica a ausência de referências a estas duas políticas, que constituíram iniciativas importantes na proposição de um modelo assistencial ampliado.

O “Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Paism): bases de ação programática” critica a atenção à mulher por se reduzir quase que exclusivamente ao período de gravidez e de puerpério, com consequências danosas para a vida das mulheres171. Autoras como Ana Maria Costa e Estela Aquino172 identificam a criação do Paism como um marco na história das políticas públicas para as mulheres e destacam que a luta por sua implementação foi assumida por movimentos de mulheres, tanto em âmbito sindical como no do feminismo. Em 2004, o programa transformou-se em Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, elaborado em parceria com diversos setores da sociedade, incorporando o enfoque de gênero, integralidade e promoção da saúde como aspectos importantes. Apesar de a Febrasgo fazer parte desta parceria173, tal política não é citada nos editoriais.

Percebe-se uma prevalência dos temas obstétricos em relação aos ginecológicos. Por mais que esteja escrito que as políticas de saúde propõem um modelo de atenção integral à saúde das mulheres, que devem abranger todo o ciclo de vida, o foco ainda é forte na atenção às

170Op. Cit., p. 23. 171Cf. BRASIL, 1985. 172Cf. Costa et al., 2000. 173 Cf. BRASIL, 2004, p. 79

mulheres grávidas. Algumas autoras têm escrito a este respeito. É o caso de Ana Paula Vosne Martins174, já citada, que, em seus estudos sobre a história da Medicina, escreveu que o desenvolvimento da ciência obstétrica legitimou não só o papel do médico na atenção à gravidez e ao parto, mas referendou e difundiu o modelo biológico das diferenças sexuais que justifica, a partir da natureza, as distinções dos papéis sociais das mulheres. Nesse caso, a maternidade continua sendo vista como “função natural” das mulheres. Além disso, observa-se em muitas frases dos editoriais essa prerrogativa assumida por médicos ginecologistas e obstetras, de serem os “verdadeiros médicos da mulher”, “confidentes” para apoio e orientação, além de “recomendar a melhor maneira de atender a mulher brasileira”. Ou seja, pressupõe-se que caiba a “eles” (os médicos) dizer o que deve ser feito pelo Estado, no âmbito das políticas públicas, e pelas mulheres no âmbito da vida privada.

Maria Martha Freire175 também apontou o papel histórico dos médicos na consolidação do modelo de maternidade moderna a ser difundido junto às mulheres, ou seja, era papel dos médicos preparar as mulheres para o exercício da maternidade com base na racionalidade científica. Parece-me que este papel continua e vem sendo atualizado e complexificado com o desenvolvimento das ciências médicas, aprimorado com tantos métodos diagnósticos e terapêuticos.

Posso identificar também, a partir dos títulos dos editoriais, que o que mais se destaca são patologias, doenças, intervenções e medidas – obesidade, candidíase, estreptococos, ovários policísticos, macrossomia fetal, hipóxia fetal, toxoplasmose, câncer de mama, câncer de colo uterino, câncer de ovário, ooforectomia, reposição hormonal, anemia, sífilis em gestantes, contraceptivos, diabetes gestacional, sulfato de magnésio, altura uterina, dentre outras. Poucos títulos referem-se à qualidade de vida, à saúde sexual. Apenas um editorial sugere a possibilidade de ofertar determinada ação às mulheres – e assim manter sua prerrogativa de decisão (Preservação da fertilidade: a importância de oferecer esta possibilidade às pacientes com doenças neoplásicas – 2011). Georges Canguilhem (2011) escreveu acerca do “normal” e do “patológico” e indagou o que significam sintoma e complicação sem contexto ou separados do que um e outra alteram. Em sua opinião, ao se analisar um sintoma ou uma função alterada de forma isolada, se estará esquecendo justamente o que pode torná-los patológicos, que é sua

174 Cf. MARTINS, 2004, 2005. 175 Cf. FREIRE, 2008, p. 160

inserção na totalidade da individualidade. Assim, “a clínica coloca o médico em contato com indivíduos completos e concretos, e não com seus órgãos e funções”176. Por mais que se possa considerar a “patologia

objetiva” metódica e com meios experimentais, a “intenção do patologista não faz com que seu objeto seja uma matéria desprovida de subjetividade”177.

Outro aspecto observado diz respeito à autoria destes editoriais, assinados em sua amplíssima maioria por professores médica(o)s de Ginecologia e Obstetrícia, principalmente de universidades paulistas: Unicamp, USP – São Paulo e Ribeirão Preto, Unifesp, Unesp, seguido de universidades cariocas e, esporadicamente, de outros estrados, como Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Goiás. Segundo Pierre Bourdieu178, no campo da luta científica, são considerados dominantes os que conseguem impor uma definição de ciência, na qual “a realização mais perfeita consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles têm, são e fazem”.

Após conhecer o pensamento da especialidade, através dos textos de autoridade outorgada pela Febrasgo e publicados em seu principal veículo científico, o próximo passo é adentrar no campo da educação