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EDITORIAIS COMO EXPRESSÃO DOS DISCURSOS MÉDICOS De acordo com Houaiss (2009), editorial significa “artigo em que

1 UMA ANÁLISE FEMINISTA DAS CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE CORPO E SUA RELAÇÃO COM O

2. O QUE AS REVISTAS CIENTÍFICAS DAS ENTIDADES MÉDICAS FEBRASGO E ABEM EXPRESSAM EM SEUS

2.2 EDITORIAIS COMO EXPRESSÃO DOS DISCURSOS MÉDICOS De acordo com Houaiss (2009), editorial significa “artigo em que

se discute uma questão, apresentando o ponto de vista do jornal, da empresa jornalística ou do redator-chefe; artigo de fundo”153. Luiz Rosalvo Costa154 também utilizou a análise dos editoriais da revista

Ciência Hoje, publicação da Sociedade Para o Progresso da Ciência

(SBPC), para estabelecer as relações entre o discurso da entidade e a realidade histórica e social do País, pois, para o autor, é justamente nos editoriais que se manifesta o “intuito discursivo da SBPC”.

Para Vânia Duarte155, o editorial representa um gênero textual que expressa a opinião de um jornal ou revista; tem, por isso, uma

151 Na análise dos editoriais, aparece a orientação que a entidade dá às duas revistas – RBGO e Femina - para divulgação diferenciada de artigos científicos inéditos e artigos de revisão clínica, com o intuito de qualificar a classificação da RBGO junto aos mecanismos de indexação.

152Consultar página eletrônica do Ministério da Saúde - http://portal.saude.gov.br/portal/saude/default.cfm.

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Em suma, de acordo com sua etimologia, é um artigo que apresenta as opiniões dos editores. Dicionário. HOUAISS, v. eletrônica. Versão monousuário 3.0. Editora Objetiva. 2009.

154 Cf. COSTA, 2010, p. 821.

155 Disponível em: http://www.portugues.com.br/redacao/o-editorial-uma- modalidade-que-circunda-no-cotidiano-jornalistico-.html Acesso em: 23 ago. 2012.

finalidade “persuasiva”. Aborda temas polêmicos relacionados à atualidade. Como se trata de uma opinião coletiva, não é assinado156.

Justifico a opção metodológica de utilizar os editoriais publicados nas duas revistas selecionadas como fontes documentais: a decisão por sua utilização está diretamente relacionada às características do editorial apresentadas acima, ou seja, que são de conhecer as trajetórias dos discursos presentes nestes importantes veículos de comunicação da categoria médica, compreendendo-os como espaço de poder. Portanto, assumo que meu objetivo é conhecer o “intuito discursivo” da Febrasgo e da Abem.

A seleção destas fontes decorre de sua disponibilização on-line, pela maior facilidade de acesso.

Foram publicados 160 editoriais na RBGO, no período de janeiro de 1998 a junho de 2012. Na RBEM, de 2000 a 2012, foram publicados 45 editoriais. Num momento inicial da RBGO, de 1998 a 2004, estes editoriais não foram assinados, mas expressavam a posição das diretorias da época. A partir de 2005, os editoriais passam a ser assinados (contrariamente ao que Vânia Duarte sugere). Já na RBEM, desde seu primeiro número eletronicamente disponível e, em 2000, os editoriais são assinados. Em relação à escolha dos autores dos editoriais da RBEM, a Abem explicita sua política: “o editorial é de responsabilidade do Editor da Revista, podendo ser redigido a convite”157.

2.3 EDITORIAIS DA RBGO de 1998 a 2012

Durante alguns anos, os editoriais contemplaram temas relacionados a questões político-profissionais. Com o decorrer do tempo, houve necessidade expressa de adequar o perfil da revista às normas exigidas para reconhecimento científico, em função das quais a característica de conteúdo destes editoriais vai mudando paulatinamente. A responsabilidade pela definição das linhas editoriais de suas revistas, incluindo a RBGO, é da diretoria científica da Febrasgo, conforme inciso II do artigo 23 do seu estatuto social158 e dos incisos I, II e III do artigo 79 do seu regimento interno159. Outra responsabilidade é a

156 Observei esta característica inicialmente, até 2004, quando os editoriais da RBGO não eram assinados, ou eram assinados pela diretoria da Febrasgo. 157http://www.scielo.br/revistas/rbem/pinstruc.htm - Acesso em: 22 out. 2013. 158 Disponível em: http://www.febrasgo.org.br/site/?page_id=30.

indicação do conselho editorial de cada publicação, para avaliação e nomeação do presidente, com o referendo da assembléia geral das associações federadas, conforme o inciso IV do mesmo artigo. A diretoria é escolhida por eleição direta, na qual votam todos os filiados, para um mandato de quatro anos. Portanto, há uma definição política que vincula as linhas editoriais à direção da entidade.

Com a indexação da revista, a partir do final de 2001, inicia-se um processo de mudança no caráter dos editoriais, com a introdução de temas de relevância em saúde no quadro epidemiológico e por sua relação com a situação de morbi-mortalidade das mulheres no Brasil. Ainda se mesclam editoriais sobre temas de saúde com opiniões acerca da profissão; este processo de transição, porém, se encerra em 2004, quando os editoriais assumem um formato semelhante a artigos e passam a ser assinados, majoritariamente, por professores de distintas universidades do País. Para análise dos dados, por conta desta característica, dividimos o espaço temporal de publicação dos editoriais em dois períodos: de 1998 a 2004; de 2005 a 2012 (nos apêndices A, B é possível visualizar os títulos dos editoriais, respectivamente. Nos apêndices C e D apresento, de forma resumida, os temas abordados).

De 1998 a 2004, a assinatura dos editoriais é feita pela diretoria da Febrasgo. A partir de 2005, quando passam a ser assinados nominalmente, 123 autores são homens (57,48%) e 91 são mulheres (42,52%).

Em 1998, o tema forte dos editoriais foi a qualidade científica da RBGO e a necessidade de indexá-la, assim como o papel da Febrasgo e a importância do título de especialista na área. Destacavam-se dois papéis para a Febrasgo: atualizar e universalizar os conhecimentos, lutar por honorários justos. Abre-se como órgão consultivo para assessorar qualquer programa de assistência à saúde da mulher brasileira. Aborda a criação das comissões nacionais especializadas no estudo de temas para o Brasil e o Mercosul, a relação com entidades internacionais como

International Federation of Gynecology and Obstetrics (Figo160) e a

divulgação através da Femina, RBGO, e Jornal da Febrasgo, deles participar e sobre eles opinar.

Em 1999, o tema preponderante foi a representação da Febrasgo. Alguns assuntos se repetem: a importância de parcerias institucionais - Ministério da Saúde e MEC -, para assumir o protagonismo no que se refere a políticas de saúde, formação profissional e, em especial, residências médicas. Evidencia-se a preocupação com a qualidade

técnica da profissão e o fortalecimento político da Febrasgo como entidade representativa de ginecologistas e obstetras para ser referência de condutas técnicas, através de fichas, clínicas, protocolos, manuais de conduta.

No ano de 2000, entram em pauta aspectos da realidade sanitária, como gravidez na adolescência, atenção humanizada ao parto e mortalidade materna. Destaco a importância de a entidade chamar para si a responsabilidade sobre as taxas de mortalidade materna, por conta da política assistencial adotada. A defesa profissional também se repete através da luta por honorários médicos, em articulação com demais entidades da Medicina.

Em 2001 prevalecem temas relacionados à preocupação com a educação médica e o fortalecimento da entidade, embora questões de formação médica se destinassem a qualificar o trabalho médico, caso em que a Febrasgo assumia um papel importante. Havia preocupação com a qualidade do especialista em formação; a proposta era de que a entidade atuasse em distintas frentes.

Em 2002, a grande vitória representou o fato de a RBGO ter sido incluída na base de dados da SciELO. No momento, é a única da área da Ginecologia e Obstetrícia na América Latina. Nos anos de 2003 e 2004, reaparecem os temas relacionados à defesa profissional, à formação médica e à assistência.

No período entre 2005 a 2012, os temas que mais apareceram relacionam-se ao processo de gestação e à assistência obstétrica, incluindo a discussão acerca do aborto. Incluem-se enfermidades predominantes como pré-eclâmpsia, diabetes gestacional, prematuridade, obesidade, uso de álcool, trauma, sífilis e gravidez na adolescência. Dentre os temas de Ginecologia, destacam-se o câncer de mama, seguido do câncer de colo de útero, incluindo a infecção pelo HPV (Papiloma Vírus Humano), câncer de ovário e temas como climatério e saúde sexual.

Vários editoriais valorizam a importância da fixação de parâmetros de “normalidade”, apresentando testes, questionários, critérios mensuráveis com base em medidas-padrão (seria ainda herança da medicina cartesiana, na qual tudo é mensurável?).

Outros editoriais também informam da existência de poucos estudos sobre vários temas sobre a importância da realização de “estudos clínicos randomizados” para determinar condutas médicas com base em “evidências científicas”. Ao mesmo tempo, mostra paradoxos, questionando como possam ser medidos em ensaios clínicos randomizados temas que envolvem questões filosóficas e de valor?

Para compreender melhor o contexto do valor numa “medicina baseada em evidências” (MBE), parece oportuno mencionar algumas controvérsias.

Autores como Luis Davi Castiel e Eduardo Póvoa (CASTIEL, L.D. & PÓVOA, E. C., 2001) polemizam a questão, citando um dos cientistas criadores do movimento de MBE, o canadense David L. Sackett, e sua relutância em assinar artigos ou dar aulas, recusando-se a ser considerado expert. Segundo esses autores, a posse do adjetivo MBE confere um grande poder de persuasão a esses experts, muito além da pertinência científica. Este movimento também serviu como propaganda para alavancar as vendas de livros e publicações biomédicas. A MBE surge com a perspectiva de investigar, avaliar e definir critérios com base nessas investigações, para subsidiar as práticas e decisões clínicas. Para esses autores, o termo “baseada”, adjetivando a Medicina, tem efeito retórico fundamental para conferir o status de “verdades” ao que sai publicado. O termo “evidência”, de seu lado, tem origem na criminologia para justificar a responsabilização jurídica por delitos. Esta tendência tem sido alvo de muitos debates acadêmicos, dentre os quais destaco o de aplicar resultados de estudos sobre populações específicas a indivíduos, sem levar em conta especificidades e particularidades. Enfim, só gostaria de pontuar que a MBE pode representar um novo “paradigma assistencial e pedagógico”, conforme desejam seus defensores, mas não sem polêmicas e controvérsias.

Corrobora essa análise a crítica que Boaventura de Sousa Santos (2009) faz aos pressupostos da ciência moderna em geral, aplicáveis também à ciência médica. Para Santos, a primeira questão a destacar é o rigor científico associado ao rigor das medições – é necessário quantificar, negligenciadas as qualidades do “objeto”, segundo a diretriz de que “o que não é quantificável é cientificamente irrelevante” (SANTOS, 2009, p. 28). A crise paradigmática da ciência moderna tem como um dos seus aspectos justamente esta característica: “O rigor científico, porque fundado no rigor matemático, um rigor que quantifica e que, ao quantificar, desqualifica” (p.54). Outra característica é que este método científico tem suas bases na redução da complexidade e na sobreposição do conhecimento científico ao senso comum. Para se contrapor a esta crise, Santos aponta algumas características do que ele denomina de “paradigma emergente”: “1. todo conhecimento científico- natural é científico-social [...]; 2. todo conhecimento é local e total [...]; 3. todo conhecimento é autoconhecimento [...]; 4. todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum”.

Estamos, nesta trajetória epistemológica e metodológica de transição, atados à rigidez da ciência moderna, buscando caminhos para construir o pretendido paradigma emergente. Os estudos feministas podem contribuir com a Medicina para avançar neste salto.

Vale destacar que a MBE pode representar uma grande contribuição, do ponto de vista ético, no sentido de buscar qualificar as práticas clínicas, configurando uma tomada de decisão da melhor forma possível. Carlos Guimarães (2009) observa que a “rápida disseminação” e o interesse pela MBE se devem a alguns fatores, como: necessidade de informação diária; inadequação dos livros-texto para utilização prática, como fontes tradicionais, em virtude de sua desatualização; disparidade entre a habilidade para diagnóstico e tratamento associado a um “declínio” da “performance clínica”; “incapacidade” (geral) para dedicar parcela de tempo ao estudo. Estas questões levaram à necessidade de criar mecanismos para melhorar a “performance clínica”. Para isso, foram criados sistemas de informações para facilitar o acesso às “melhores evidências”. O autor constata que a estratégia proposta pela MBE também sofre de limitações, como a necessidade de desenvolver habilidades para a pesquisa bibliográfica associada a uma análise crítica das fontes, assim como acesso rápido nem sempre disponível nas instituições. A definição de MBE para este autor significa:

o emprego consencioso explícito e judicioso da melhor evidência disponível na tomada de decisões sobre os cuidados de saúde de um paciente [...] requer a integração da melhor evidência com a competência clínica e os valores e as circunstâncias do paciente (GUIMARÃES, 2009, p. 369).

Conforme apontei anteriormente, essa estratégia é fonte de análise crítica. Castiel e Póvoa chamam a atenção no sentido de que a MBE não se transforme numa “macrocategoria multifária”. Afinal, destacam a necessidade de diferenciar “saúde” e “vida”. Podemos afirmar que, para viver, necessitamos de saúde. Mas viver “inclui o prazer, a dor, a invenção, a criatividade, os arrebatamentos. E isto, infelizmente, não ocorre sem riscos, especialmente para a saúde” (CASTIEL & PÓVOA, 2001, p. 209).

2.4 CATEGORIAS QUE SE DESTACAM NOS EDITORIAIS DA