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CONTEXTO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO MÉDICA E DA RESIDÊNCIA MÉDICA NO BRASIL

1 UMA ANÁLISE FEMINISTA DAS CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE CORPO E SUA RELAÇÃO COM O

3. PROGRAMAS, PLANOS DE AULA E MANUAIS DE ROTINA DA RESIDÊNCIA MÉDICA EM GINECOLOGIA E

3.1 CONTEXTO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO MÉDICA E DA RESIDÊNCIA MÉDICA NO BRASIL

A residência médica, como modelo de pós-graduação em Medicina, surgiu nos Estados Unidos em 1848, para fins de aprimoramento clínico, em espaço hospitalar, ou no que se costuma chamar de “treinamento em serviço” (MICHEL, Jeanne et al., 2011, p. 7). O termo “residência” é oriundo do fato que se exigia que o/a profissional médico/a morasse na instituição, pois um dos requisitos era a disponibilidade integral para a formação especializada. Nos dias de hoje, a carga horária estipulada para a residência médica é de 60 (sessenta) horas semanais.

Segundo Célia Pierantoni (1994), no Brasil foi iniciada na década de 1940, inicialmente no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (1944) e no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (1948). Neste momento inicial, seguia as diretrizes do que se denominou modelo flexneriano227 para a educação médica. Comentarei a respeito mais adiante.

Segundo Jeanne Michel et al. (2011), até meados dos anos 60, os programas de RM concentravam-se nos hospitais universitários públicos. Pela característica de “treinamento em serviço”, a formação se guiava pelas demandas do mercado de trabalho médico. Para esses autores, “a RM é consagrada como a melhor forma de inserção de profissionais médicos na vida profissional, sob supervisão, e de capacitação em uma especialidade” (p. 8).

Para Pierantoni (1994, p. 7), a implantação - um período inicial que vai até 1955 - e a consolidação podem ser caracterizadas pela “definição dos objetivos, implantação e consolidação dos problemas iniciais”. Uma das características desse período é que a RM era procurada por uma parcela pequena de egressos das faculdades de Medicina. O segundo período, que vai até 1971, já se distinguia da primeira fase por uma maior procura. Houve até um incremento significativo das ofertas de programas, ainda vinculados majoritariamente a instituições públicas e criados de acordo com os interesses do corpo clínico dos hospitais.

227 Esse modelo tem por base o Relatório Flexner, publicado em 1910 nos Estados Unidos. Seu impacto sobre a formação médica mundial é analisado por Pagliosa e Da Ros (2008), referenciada também por Kipper; Loch (2002), Ballester et al. (2010).

Já nesse período, a Abem assume um protagonismo importante, solicitando a implantação de uma comissão que analise a proposta das residências. Também em 1967 é criada a Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR).

Um terceiro período se inicia a partir de 1972, quando então se amplia o número de RM, algumas de qualidade duvidosa, funcionando como “aproveitamento de mão de obra médica de baixo custo” (PIERANTONI, 1994, p. 8). Neste contexto, em 1976 é criada a Comissão Nacional de Residência Médica, reconhecida legalmente através do Decreto n. 80.821, de 1977. Esta comissão é composta por distintas instituições de educação, saúde e representações de entidades da categoria médica. Surge com o objetivo de normatizar, credenciar e estabelecer critérios para seleção, remuneração e certificação. Desde esse momento, a RM em Ginecologia e Obstetrícia é estabelecida como uma das especialidades preferenciais.

Outra análise realizada por José Carlos de Souza Lima, citada por Michel et al. (2011, p. 7), subdivide o processo de implantação e consolidação da RM no Brasil em duas fases. O primeiro momento se situa entre 1947-48 e 1977-78; caracteriza-se pela criação dos primeiros programas e pela luta pela sua regulamentação. O segundo período, que vai de 1977-78 a 2007-2008, compreende a institucionalização da RM.

Esta tese não pretende analisar os estilos de pensamento, nem os projetos pedagógico-educacionais, muito menos os métodos de avaliação dos cursos de graduação em Medicina e das residências médicas implantadas no Brasil. Mesmo assim, para compreender o contexto atual, considero importante historiar as bases do modelo implantado no Brasil. Sempre que me deparo com leituras desse tipo, surpreendo-me com questões tão arraigadas em nosso cotidiano, em nossas práticas, que nem nos damos conta de onde vêm. Parece que sempre estiveram ali e sempre vão estar! Uma dessas questões que me instigam, me sensibilizam, me provocam a pensar criticamente é o papel do/s hospital/is na formação de profissionais de saúde228, e, no caso

228

Além da minha graduação como enfermeira, fiz minha especialização em saúde pública, em meados da década de 1980. Acrescento a isso minha atuação no âmbito político profissional junto à Associação Brasileira de Enfermagem, no âmbito político-sindical, junto à Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-Administrativo em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra), sempre orientada por uma reflexão crítica acerca do processo de formação de profissionais de saúde. Compartilho da defesa da ampliação dos

específico desta tese, na Medicina. A leitura sobre o modelo flexneriano ajudou-me a compreender melhor o processo.

No que tange a esse modelo de educação médica, referido por Célia Pierantoni, cito as reflexões de Luiz Fernando Pagliesi e Marcos Da Ros (2008). Para estes autores, um dos principais pontos do modelo, que é alvo de muitas críticas, é uma divisão básica no currículo entre as disciplinas básicas e os estudos clínicos. Este modelo, que se tornou hegemônico mundialmente, recebeu muitas críticas por compartimentar a formação médica e não atender às necessidades de saúde das populações nos locais em que foi implantado. No contexto histórico de sua produção, no início do século XX, proliferavam escolas médicas nos Estados Unidos, criadas com critérios muito diferenciados, por haver sido abolida a concessão estatal no final do século XIX. Iniciava-se, além disso, uma forte aliança entre a indústria farmacêutica e a corporação médica pela compra de propaganda em suas publicações. Nesse contexto, havia escolas organizadas em bases “não- convencionais”, com o ensino voltado ao que seriam os campos precursores da fitoterapia e da homeopatia.

Ao mesmo tempo em que o modelo flexneriano servia para coibir escolas médicas sem condições de funcionar, também serviu para diminuir significativamente o número das que ensinavam homeopatia229,

por exemplo. Dentre as recomendações de Flexner, considero importante a divisão proposta por ele entre o “ciclo básico”, a ser realizado em laboratório, e o “ciclo clínico”, a ser realizado no hospital. Dessa forma, a dicotomia promoveu o foco da formação centrado na doença, a ser tratada de forma individual, sem considerar o coletivo e o espaço social. O método científico positivista se instalava nas escolas médicas.

Vale destacar o que os autores enfatizam o pensamento discriminatório de Flexner, que “via a educação médica como destinada a pessoas da elite, com o aproveitamento dos mais capazes, inteligentes, aplicados e dignos” (PAGLIOSA; DA ROS, 2008, p. 496). Foi por isso acusado de preconceito em relação a pobres, negros e mulheres. Este tipo de preconceito não era prerrogativa da formação médica. Segundo Luiz Antonio Santos e Lina Farias (2009, p. 87), os parâmetros para a profissionalização da enfermagem moderna implantada no Brasil, no espaços de aprendizagem para o âmbito do SUS, e de uma reflexão crítica acerca do papel dos hospitais universitários.

229 Segundo esses autores, o número de escolas médicas homeopáticas, entre 1910 e 1920, passou de 20 para 4 (PAGLIOSA; DA ROS, 2008, p. 495).

início do século XX, tinha por base a constituição da profissão com pessoas da “elite”. Vale destacar o registro da preocupação dos dirigentes brasileiros, em especial Carlos Chagas, em buscar “mulheres de berço” e de famílias tradicionais. Chegaram a lançar uma manifesto “à moça brasileira”. Carlos Chagas utilizava três argumentos para defender este projeto profissional: interesse da pátria, sentimentos de amor e piedade cristã.

Para Laura Feuerwerker (1998), a entrada de “novos cenários de ensino” trouxe à tona um debate importante acerca do perfil do profissional que se queria formar. Dou ênfase ao que escrevi no capítulo anterior. Tais mudanças alcançariam sucesso, desde que acompanhadas de “mudanças nas práticas de saúde”, em especial no que tange à concepção de um conceito ampliado de saúde230.

Para esta autora, a introdução de disciplinas como Sociologia na formação médica não conseguiu mudar o eixo epistemológico da Medicina pela forma como foi introduzida, pois não se buscou identificar os conteúdos que seriam essenciais. A tese de Luiz Roberto Cutolo (2001) corrobora o pensamento da autora citada, pois, ao analisar a estrutura do currículo do curso de Graduação em Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina, a partir de amostra intencional, identificou três concepções: higienista, médico-social e biologicista, constatando que esta última continua absolutamente hegemônica.

Quanto ao papel da RM, Laura Feuerwerker reforça sua duplicidade – complementar a formação da graduação e possibilitar melhor inserção no mercado de trabalho. Este último aspecto deve ser mais bem discutido, segundo a autora. Pensando no contexto histórico deste artigo, final dos anos 1990, sua análise estava correta. Estudos que apontavam uma concentração de médica/os especialistas em determinadas regiões do País231, em especial Sudeste e Sul, e

deficiências nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, contribuíram para que o governo federal lançasse o Programa Pró-Residência em

230 No Brasil, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, foi um marco que rompeu com a visão idealista da OMS (a saúde não é considerada apenas a ausência de doença, mas é o “estado de completo bem-estar físico, mental e social”), complexificando o conceito de saúde, relacionando-o às condições concretas de existência dos seres humanos, ou seja, saúde como resultante das condições de vida. Ver: MINISTÉRIO DA SAÚDE. Relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Brasília, 1987.

231 Não vou entrar aqui na análise do Programa Mais Médicos, lançado recentemente pelo Ministério da Saúde, alvo de críticas pelo conjunto das entidades médicas.

2009. Este “Programa Nacional de Apoio à Formação de Médicos Especialistas em Áreas Estratégicas” foi instituído através da Portaria Interministerial n. 1001, de 22 de outubro de 2009. É um programa gerenciado conjuntamente pela Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação - SESu/MEC e pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde - SGTES/MS, em consonância com a Comissão Nacional de Residência Médica - CNRM/MEC. Na área da RMGO, foi proposta a criação de um programa no estado do Tocantins.

Outro ponto debatido pela autora, e que retomo, diz respeito à natureza da residência médica. Trata-se do questionamento: “processo educacional ou processo de trabalho?” (p. 64). É uma dualidade que penso não ter resposta até os dias de hoje. Ou melhor, talvez a resposta conste justamente das duas coisas, que devem se realizar concomitante e harmoniosamente, de forma complementar. Mas esse processo que busca conjugar ensino e assistência não é vivenciado sem “ambiguidades, dúvidas e inseguranças”, conforme escreve Ana Cristina Gilbert et al. (2006, p. 942).

Para Laura Feuerwerker e Luz Carlos Cecílio (2007, p. 966), a discussão acerca do cenário do hospital como espaço de formação na área da saúde, seja de graduação ou pós-graduação, deve ser analisada numa ótica de maior complexidade, por tudo que envolve. Ao mesmo tempo em que esta área sofre impacto das tecnologias em saúde, predominantemente das tecnologias duras e leve-duras232, fez com que “o trabalho médico e o trabalho em saúde em geral fosse orientado aos procedimentos e não às necessidades das pessoas, levando ao empobrecimento de sua dimensão cuidadora”. Para estes autores, o cuidado hospitalar é resultado de uma intrincada teia de ações múltiplas - “pequenos cuidados parciais” -, envolvendo distintos profissionais e múltiplos saberes. Muitas vezes, em situações críticas, há necessidade de intervenções rápidas, com predomínio das tecnologias duras e leve- duras, com pouca ou restrita autonomia da/os usuária/os. Em outras situações, esses mesmos usuária/os estão plenos de sua autonomia; portanto, o diálogo, a compreensão dos contextos culturais e o reconhecimento dessa autonomia fazem-se absolutamente necessários. Atualmente, os hospitais universitários estão se tornando espaços de

232Para esses autores, tecnologias duras representam os equipamentos e medicamentos; as tecnologia leve-duras, o saber científico; e as tecnologias leves dizem respeito aos relacionamentos importantes para a produção do cuidado: “escuta, vínculo, responsabilização, singularização”.

atenção terciária e quaternária. Logo, num momento inicial de formação especializada, como é o caso da RM, esses hospitais não oferecem, por conta dessa característica, um cenário adequado. Para Feuerwerker e Cecílio (2007, p. 969), entretanto, as dimensões do “trabalho em equipe”, da “integralidade” e da “recuperação da dimensão cuidadora das práticas de saúde” não representam um cenário “pacífico”. Estão em disputa relações de poder – entre distintos profissionais de saúde, entre profissionais e usuária/os. Portanto, “provocam resistência e disputa”, como espaços em que o que está em jogo é a lógica hegemônica de reprodução de poder das corporações.

Nesse contexto, as diretrizes curriculares representaram propostas de mudanças na educação médica, mas não podem se restringir à graduação. Feuerwerker e Cecílio informam que as escolas médicas já se deram conta da importância de também aplicar as mudanças à residência médica, como espaço importante de conformação do perfil profissional. É neste sentido que me aproprio das reflexões desses autores.

3.2 ENTRADA EM CENA DAS DIRETRIZES CURRICULARES