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Categorização das emoções-propriamente-ditas

E FILOSOFIA DA ACÇÃO

EMOÇÕES E SENTIMENTOS 11 O resgatar das emoções

13. Categorização das emoções-propriamente-ditas

Feita a apresentação geral das emoções e dos sentimentos, vejamos de que modo as emoções podem ser classificadas, antes de analisarmos o respec- tivo mecanismo.

À margem do risco de inadequação, de incompletude e de artificialidade das categorizações, a classificação damasiana das emoções-propriamente-ditas em três categorias básicas revela-se útil na compreensão e na descrição dos fenómenos em causa. Seguimos, pois, a proposta do neurocientista de divisão das emoções-propriamente-ditas em emoções de fundo, emoções pri- márias e emoções sociais, antes de avançarmos para o estudo do papel e do valor que as emoções têm na acção.

Duas observações prévias à apresentação de cada uma das categorias refe- ridas: a primeira diz respeito à porosidade fronteiriça desta classificação, à qual se aplica o princípio de encaixamento característico da árvore ho- meostática no seu todo. Tal significa que as emoções sociais, por exemplo, incorporam respostas que fazem parte das emoções primárias e das emo- ções de fundo. A segunda observação refere-se à discrepância no grau de clareza de cada uma das categorias. Se a classificação das emoções em pri- márias e sociais é, cartesianamente falando, clara e distinta, o mesmo não acontece com a ideia de emoção de fundo. Vejamos porquê.

Emoções de fundo

A primeira vez que Damásio se refere a uma variedade de fundo distinta de e precedente a outras “variedades de sensações” fá-lo relativamente aos sentimentos. A apresentação surge nos seguintes termos: «Chamo-lhe sen- timentos de fundo (background) porque têm origem em estados corporais de “fundo” e não em estados emocionais.»31 Parece estar em causa algo de

semelhante ao humor, embora Damásio pretenda que não se confundem, explicando que, provavelmente, a inalterabilidade de um determinado sen- timento de fundo durante um certo período de tempo contribuirá para o estado de humor, bom, mau ou indiferente. Um sentimento de fundo repre- senta o estado geral do corpo e, embora tal representação seja contínua, torna-se consciente esporadicamente, por exemplo, quando somos confron- tados com a pergunta sobre como nos sentimos.

Impondo-se uma referência à introdução damasiana do conceito, aqui- lo que nos interessa é a separação entre sentimentos de fundo e emoções, reforçada na afirmação de que «um sentimento de fundo corresponde aos estados do corpo que ocorrem entre emoções.»32 É, pois, com estranheza

que verificamos nos textos posteriores que a noção de sentimento de fundo

31. Damásio, 1994: 164. 32. Idem.

desaparece, dando lugar à de emoção de fundo.33 Desta feita, a designação

parece resultar da não-proeminência do estado que representa e da subtile- za com que se manifesta.

As emoções de fundo são apresentadas como manifestações compósitas de reacções regulatórias simples, resultantes do desencadear simultâneo de diversos processos de regulação. O resultado destas intercepções é impre- visível, sendo o bem-estar ou o mal-estar uma consequência das interacções regulatórias.

Também em relação às emoções de fundo Damásio estabelece uma dife- renciação relativamente ao humor através da dimensão temporal mais prolongada deste último.34 A par do perfil temporal mais circunscrito, a

identificação mais apurada do estímulo determina a diferença relativamen- te aos estados de humor.35

Quer as circunstâncias exteriores ao sujeito quer os estados internos (como a doença ou a fadiga) podem originar as emoções de fundo, as quais têm a particularidade de poder ser, mais do que no caso das outras emoções, de- sencadeadas por um estímulo-emocionalmente-competente que permanece encoberto, o que significa que o sujeito não se apercebe da sua existência. Emoções primárias

O conhecimento acerca da neurobiologia das emoções proveio essencial e primeiramente das emoções ditas primárias, básicas ou universais. A desig- nação resulta da universalidade como característica definidora de certas emoções, comuns a todos os humanos (existindo também em animais não-humanos36). Como dissemos antes, integram este grupo o medo, a sur-

presa, a zanga, o nojo, a tristeza e a felicidade.

33. Mantém-se, contudo, a expressão sentimentos de emoção, que pressupõe a existência de “sentimentos de não-emoção”, ou seja, de sentimentos de fundo.

34. «As emoções de fundo distinguem-se do humor (mood), que se refere a emoções mantidas durante longos períodos, medidos em horas ou dias […]. A palavra humor também pode ser aplicada à activação repetida da mesma emoção […].» Damásio, 2003: 61.

35. Cf. Damásio, 2010: 161.

36. Darwin já havia tratado do tema das emoções nos animais em The expression of the emotion in man

Da característica da universalidade resulta a facilidade com que estas emo- ções são identificadas. Simultaneamente, as circunstâncias a que estão associadas, bem como os comportamentos que as definem, são similares em diversas culturas (e espécies), revelando a respectiva dimensão biológi- ca, nomeadamente na sua natureza inata e automatizada, característica que Damásio dissocia do determinismo genético, ao qual contrapõe a individua- lização conseguida pela experiência pessoal e a modulação social. Refira-se também a possibilidade de regulação voluntária da expressão de emoções, ainda que esse controlo esteja circunscrito às manifestações externas. Emoções sociais

«As emoções sociais incluem a simpatia, a compaixão, o embaraço, a ver- gonha, a culpa, o orgulho, o ciúme, a inveja, a gratidão, a admiração e o espanto, a indignação e o desprezo.»37 É através da extensão do conceito

que Damásio no-lo apresenta. Nos primeiros textos a designação não é ex- plicada, mas a partir da lista fixada compreendemos tratar-se de emoções radicadas na situação de sermos uns com os outros e que têm nestes uma presencialidade que, podendo ser real ou projectada, constitui um referen- cial da emoção. Damásio confirma esta interpretação no livro mais recente, O Livro da Consciência, referindo-se ao enquadramento social destas emo- ções, desencadeadas em situações sociais e com um papel relevante nos grupos sociais.38

Dissemos acima que as emoções sociais incorporam elementos das emo- ções primárias e das emoções de fundo, de acordo com o princípio de encaixamento, o que faz com que a dimensão regulatória e o automatismo do processo se mantenham. Há, contudo, relativamente a estas duas refe- rências, especificidades que devem ser consideradas. Em primeiro lugar, a regulação biológica ao serviço da qual as emoções evoluíram tem como correlato a regulação social, em cujos mecanismos culturais as emoções so-

37. Damásio, 2003: 62. 38. Cf. Damásio, 2010: 161.

ciais parecem ter um papel determinante. Desenvolveremos esta questão mais adiante, quando tratarmos especificamente do papel das emoções na acção.

Por ora, temos a referir a não-exclusividade humana das emoções sociais, a propósito da qual reencontramos o problema do automatismo. Os exem- plos não se confinam aos primatas. Segundo Damásio, chimpanzés, mas também leões, lobos, cães, gatos, golfinhos, entre outros, exibem comporta- mentos que classificamos nos humanos como emoções sociais, como sejam o orgulho, a vergonha ou a compaixão. Tal circunstância conduz à hipótese de que «a disposição que permite uma emoção social está profundamen- te gravada no cérebro destes organismos, pronta para ser utilizada quando chega a altura própria.»39 Trata-se, portanto, uma vez mais, de um dispositi-

vo inato de regulação automática.

No caso dos humanos, aos mecanismos automáticos das emoções sociais junta-se, como já foi dito a propósito das emoções primárias, a aprendiza- gem enquanto causa originária da associação de determinados estímulos a determinadas respostas emocionais. Tanto num caso como no outro, fala- mos de respostas não-conscientes e não-deliberadas. Neste contexto, como lembra Damásio, as heranças de Darwin e de Freud constituem um impor- tante contributo para a compreensão das influências subterrâneas no que é inato e no que é adquirido.40

Sendo certo que a maioria das emoções sociais é evolutivamente recente, admite-se a possibilidade de que algumas delas sejam exclusivamente hu- manas, tais como a admiração e a compaixão relativa ao sofrimento mental. A possibilidade desta exclusividade é neurologicamente sustentada, através de uma diferença processual no caso das duas emoções referidas.41

39. Damásio, 2003: 64. 40. Cf. Damásio, 2003: 66.

41. Num estudo realizado por António Damásio, Hanna Damásio e Mary Helen Immordino-Yang, foi possível verificar que a parte dos córtices póstero-mediais (PMC) mais activa em situações de admiração por uma aptidão corporal e de compaixão por uma dor física era muito diferente da parte dos PMC mais activa em situações de admiração por actos virtuosos e de compaixão pela dor mental, verificando-se, igualmente, um processamento mais rápido no primeiro caso, quer no que concernia ao

Uma última nota acerca das emoções sociais, antecipadora do tópico relati- vo ao papel das emoções. No caso específico destas emoções, diz Damásio que «incorporam uma série de princípios morais e formam uma base natu- ral para os sistemas éticos.»42 Compreender-se-á melhor os pressupostos e

as implicações desta asserção depois de analisado o mecanismo das emo- ções e a função que lhes é reservada.

14. O mecanismo das emoções