• Nenhum resultado encontrado

E FILOSOFIA DA ACÇÃO

NATURALISMO FILOSÓFICO

3. O género neo-naturalismo e as diferentes espécies

3.1. Naturalismo ontológico e naturalismo metodológico

3.1.1. Naturalismo prudencial

Daniel Andler, integrando-se a si mesmo neste tipo de naturalismo, ainda que com a designação de naturalismo mínimo (minimal naturalism) e não prudencial como lhe chamámos29, discrimina aquilo que nos surge como

“estados de alma” dos filósofos que assumem este tipo de naturalismo: ou i) desconforto relativamente a grande parte da doutrina ontológica da filosofia da mente; ou ii) apreensão quanto aos fundamentos da filosofia da ciência subjacente; ou iii) enervamento face à “guerra metodológica” nas ciências humanas; ou iv) simultaneidade de todos os estados anteriores30. Na ver-

dade, é no imbricamento das três referências que a atitude prudencial se

29. Designação que resulta, em parte, da necessidade de distinguir a perspectiva agora em causa daquela outra a que anteriormente aplicámos a designação de minimal, mas também, e de modo mais fundamental, daquela que nos parece ser uma adjectivação sinteticamente elucidativa da atitude e dos pressupostos em causa.

30. Cf. Andler, 2009: 8. «[…] MENA [methodological naturalism in my sense] in one or another form is constantly re-discovered by philosophers who are either uncomfortable about the majority ontological doctrine in philosophy of mind, or uneasy about the underlying philosophy of science, or unnerved by the unending “war of methods” in the sciences of man, or (like myself) about all three.» Embora nesta passagem em concreto esteja em causa uma primeira aproximação à posição definitiva do autor, e ainda não o naturalismo mínimo, aquilo que conduz da primeira à última não tem implicações na abordagem agora em questão.

fundamenta. Importa, pois, mais do que anotar estados de alma, averiguar os pressupostos que a eles conduzem. Limitar-nos-emos ao essencial desses pressupostos, alvo de uma abordagem mais desenvolvida em outras partes deste texto.

i. Prudencialismo na filosofia da mente

A aplicação à filosofia da mente do desiderato epistemológico quineano pressupõe uma naturalização com implicações ontológicas. O recurso às ciências cognitivas na tentativa de compreensão dos fenómenos mentais tra- duz uma rejeição da perspectiva que distingue e separa mente e cérebro, e implica validar a combinatória das estratégias descendente (top-down) e as- cendente (bottom-up) utilizada pelas referidas ciências. A primeira consiste em partir dos níveis de explicação mais elevados no intuito de dar conta dos níveis inferiores, através da identificação de um conjunto de funções e das respectivas interacções; é o tipo de abordagem efectuado pela psicologia cognitiva e pelo funcionalismo, por exemplo. A segunda, típica das neuro- ciências, consiste no percurso explicativo inverso, através da identificação das estruturas materiais ou dos sistemas correspondentes às funções refe- ridas e das respectivas conexões causais.

É a observância das condições necessárias para a defesa do naturalismo ontológico no âmbito da mente que o naturalismo prudencial questiona, de- signadamente o triplo sucesso requerido: êxito da estratégia descendente; êxito da estratégia ascendente; êxito da articulação entre ambas. A justifi- cação plena do naturalismo ontológico pressuporia a completude de cada uma das condições quando, na verdade, para esta perspectiva parece não se verificar nenhuma delas. Por um lado, considera-se que certas faculdades, como a consciência e a intencionalidade, tendem a resistir à naturalização das ciências cognitivas, não se deixando compreender pelas estratégias uti- lizadas. 31 Por outro lado, a articulação entre as estratégias descendente e

31. Veremos, mais adiante, que tal perspectiva não é consensual. Tanto a consciência como a intencionalidade são objecto de estudos naturalistas que pretendem dar conta da respectiva compreensão. A apontar alguma insuficiência compreensiva à naturalização das referidas faculdades, seria, pois, neste caso, relativa à consciência fenomenal e às propriedades qualitativas da experiência (qualia).

ascendente é alvo de um cepticismo crítico na sua efectivação. Assim sendo, resta concluir, na perspectiva prudencial, que os actuais conhecimentos re- lativos à mente não permitem advogar o naturalismo ontológico no que lhe diz respeito.32

ii. Prudencialismo na filosofia das ciências

Estando em causa a abordagem das questões de ordem epistemológica e ontológica suscitadas pelas ciências cognitivas, o naturalismo prudencial reconhece a existência de constrangimentos naturais dos processos cog- nitivos, pelo que admite que revisões teóricas decorram dos trabalhos de investigação empírica e do concomitante acréscimo de acuidade conceptual. Porém, tais reconhecimento e admissão são conciliados com a manutenção de uma dimensão não-natural respeitante ao processo de pensar, inclusiva de elementos como a cultura ou a espontaneidade, da qual se diz extrapolar a abordagem científica. As explicações científicas relativas à cognição são, pois, legitimadas na justa medida em que permanecem cientificamente con- textualizadas, fora de cuja circunscrição são alvo do cepticismo prudencial. A consequência mais relevante deste contextualismo diz respeito ao facto de o interesse epistemológico pelo naturalismo não se estender à vertente onto- lógica nem tão-pouco às abordagens éticas que dele foram sendo derivadas. iii. Prudencialismo na metodologia

Reconhecidas as mais-valias epistemológicas do naturalismo, este é encara- do como inultrapassável no âmbito das ciências humanas, numa perspectiva que mantém, contudo, o registo prudencial, designadamente no que concer- ne a três vertentes. A primeira põe em causa a fusão entre as abordagens formal e causal, incluídas no naturalismo, a qual pode ser compreendida de dois modos: o primeiro diz respeito à reunião de dois considerandos, a saber, i) que uma investigação teórica deve seguir, formalmente e em qualquer domínio, aquilo que está estabelecido para as ciências naturais,

32. Cf. Andler, 2009: 11. («The moral to draw, it would seem, is that the knowledge we have acquired about the mind, considerable as it is, has not reached the level where we can confidently predict the vindication of ontological naturalism about the mind.»)

sendo a similitude extensível aos conhecimentos produzidos, e ii) que uma investigação teórica deve reportar-se à estrutura causal do fenómeno, par- ticularmente na explicação do processo relativo à respectiva existência; o segundo remete para a conciliação entre as abordagens formal/quantitati- va e causal/emergente, reportando-se a primeira, neste caso, à investigação sobre certas estruturas formais e relações quantitativas constitutivas de de- terminados mecanismos.

A segunda vertente visada pelo prudencialismo naturalista diz respeito à dimensão formal acima referida, nomeadamente a consideração de que as ciências sociais e humanas devem adoptar a metodologia das ciências natu- rais, postulado que o naturalista prudencial não dá por garantido. Atender à definição do naturalismo prudencial revela-se agora fundamental, num momento em que somos confrontados com um tipo de naturalismo que, en- quanto naturalismo, mantém reservas quanto à natureza do continuísmo postulado. Andler sugere a seguinte definição:

Obrigar-se à investigação, qualquer que seja, que o naturalismo científico recomenda com o propósito de assegurar um resultado positivo, sem renunciar a um exame crítico da recomendação, e com a devida atenção à totalidade da evidência empírica, esteja dada através do senso comum, da fenomenologia, da ciência não naturalista ou pré-naturalista, ou, novamente, da experimentação científica no estilo da ciência natural. E abster-se de qualquer comprometimento, explícito ou implícito, a respeito do resultado da investigação.33

Temos, pois, que a aproximação ao naturalismo científico é acompanha- da de uma reavaliação permanente, fruto da circunscrição a que é votada, numa atitude de não-aceitação imediata desse mesmo naturalismo, com o qual, em simultâneo, se pretende trabalhar. A ideia de um naturalismo me-

33. Andler, 2009: 13: «Engage in whatever inquiry scientific naturalism recommends with the aim of

securing a positive result, without foregoing a critical examination of the recommendation, and with due

regard to the entire empirical evidence, whether available through commonsense, phenomenology, non-naturalistic or pre-naturalistic science, or again scientific experimentation in the style of natural science. And refrain from any commitment, explicit or implicit, regarding the outcome of the inquiry.»

todológico com “os olhos filosoficamente bem abertos”34 pretende expressar

de maneira clara e sintética a atitude que define o naturalismo prudencial. Trata-se de desenvolver um trabalho filosófico baseado numa interacção próxima com a investigação científica, tal como é exigido pelo naturalismo, mantendo, contudo, a possibilidade, não apenas de reorientar tal colabora- ção, como de a ela renunciar.

Por fim, em terceiro lugar, o naturalismo prudencial coloca igualmente sob a capa da suspeição o êxito da abordagem causal/emergente, numa atitude semelhante à do anti-naturalista que encara a perspectiva em questão como atentatória do poder criativo dos seres humanos.

Resta mencionar que o cepticismo patente no naturalismo prudencial não recai apenas sobre o estado actual do conhecimento; projecta-se, igualmen- te, no futuro, pelo que, e tendo em conta o conjunto de reservas apresentado, cabe questionar em que sentido, neste contexto particular, se avalia o na- turalismo como sendo filosoficamente inultrapassável, inclusivamente no âmbito das ciências humanas. A resposta passa pela afirmação da necessida- de de sustentar e perscrutar o trabalho realizado no âmbito do naturalismo científico, acrescida da possibilidade de prestar um contributo positivo às in- vestigações. A factualidade das mesmas parece exigir uma “orquestração” que o naturalista prudencial chama a si35, analisando o trabalho desenvolvi-

do, corrigindo erros e estabelecendo limites.

Expostos os princípios que definem e caracterizam este tipo de natura- lismo, não podemos deixar de nos confrontar com a questão de o mesmo configurar, na nossa perspectiva, um exemplo da integração de posições anti-naturalistas no domínio do próprio naturalismo, integração a que já havíamos aludido. Pese embora a inscrição, por um lado, na vertente epis- temológica e, por outro, no enquadramento de não-compromisso com uma tese ontológica, a rejeição da identidade entre real e natural a par da afir- mação explícita da existência de uma dimensão não-natural referida a

34. Cf. Idem

propósito do prudencialismo na filosofia das ciências consubstanciam a ne- gação do princípio ontológico do neo-naturalismo. Não se trata apenas de deixar em suspenso a possibilidade de que as condições necessárias, do pon- to de vista do naturalista prudencial, à verdade do naturalismo ontológico se verifiquem. Na verdade, nenhuma delas é considerada satisfatória, nem no passado, nem no presente, nem, vimo-lo, tão-pouco se afigura um êxito futuro expectável. Trata-se, sim, de conduzir o cepticismo latente na convic- ção de que há dimensões da realidade inacessíveis à investigação científica na direcção da convicção positiva da supra-naturalidade das mesmas. O ponto último constitui um desenlace possível do pressuposto prudencial de que se o filósofo responsável tem o dever de ser suficientemente naturalis- ta, o que significa concretizar o princípio continuísta, tem em simultâneo o dever de não ser demasiadamente naturalista, ou seja, de limitar a investi- gação e as conclusões ao âmbito sob averiguação, evitando a generalização preconizada pelo naturalista radical, implausível para a perspectiva pru- dencial.36 Da última referência decorre a atitude de permanente vigilância

da actividade científica e de limitação do respectivo âmbito de aplicabilida- de, cuja justificação é simultaneamente compatível com um posicionamento puramente prudencial de ausência de compromisso ontológico e com um prudencialismo ontologicamente anti-naturalista de afirmação de uma di- mensão supra-natural.