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Sistema de controlo adaptativo: antecipação e teleologia

E FILOSOFIA DA ACÇÃO

A FACULDADE DE QUERER

9. A acção vista do interior: o modelo interno da acção

9.3. O modelo interno da acção

9.3.1. Sistema de controlo adaptativo: antecipação e teleologia

A teoria do controlo, que não é exclusiva da acção, institui uma circulação da informação em dois sentidos: ocorre, em primeiro lugar, a selecção e o en- vio de um comando para o executor; depois, em sentido contrário, é enviado um feedback do executor para o centro de comando, indicador das transfor- mações produzidas. É feita uma comparação entre o feedback observado e o feedback previsto pelo sistema com base em intervenções anteriores no mesmo domínio. A circulação sanguínea, os reflexos neuro-endócrinos, mas também os termóstatos e outros dispositivos que funcionam com base neste sistema de feedback, são sistemas de controlo rígidos, nos quais as respostas possíveis são estrita e inflexivelmente determinadas estrutural- mente, não havendo lugar para a aprendizagem ou para a alteração de fins (figura 4).

No caso dos seres humanos, a aprendizagem envolvida nas suas vivências integra sistemas de controlo bastante mais complexos, que utilizam a infor- mação como mediação entre o sistema de decisão e o sistema de execução. A comparação, neste caso, tem por base representações a operar num siste-

ma capaz de ligar entradas e saídas de informação em situações variáveis e incertas. São sistemas de controlo adaptativo que revelam, ainda, a particu- laridade de modificar objectivos em função de motivações internas.

Figura 4: Sistema de comando simples.

O comando é enviado para o executor no tempo T1; o feedback previsto permite comparar a resposta observada com a resposta desejada e, eventualmente, enviar um novo comando em T2 (a partir de Joëlle Proust, 2005: 151).

Pelo exposto, compreende-se a exigência de uma capacidade de repre- sentação de dois tipos de informação, no sentido de garantir a adaptação pretendida: i) os objectivos a atingir, tendo em conta o contexto motivacional; e ii) os procedimentos disponíveis para cada tipo de objectivo. A representa- ção dinâmica destes dados constitui o que se designa por “modelo interno” e permite o controlo das acções.34 Assim, ainda que a representação de uma

acção não resulte necessariamente em execução, a execução tem na repre- sentação um elemento fundamental, na medida em que antecipa o objectivo da acção e possibilita, por essa via, e através de mecanismos de compara- ção, monitorizar o desenrolar da acção e a concretização do fim.

Uma parte importante dos sistemas de controlo adaptativo é constituída por feedbacks anteriores, o que permite antecipar as consequências de um mo- vimento que faz parte do reportório individual. Mas o modelo interno deve igualmente possibilitar encontrar um movimento novo adequado à conse- cução de determinado fim. Para tal, é necessário conjugar dois elementos: o “modelo inverso” e o “modelo antecipador”. O primeiro transforma uma consequência sensorial desejada em um comando motor susceptível de a produzir, numa situação nova. O segundo pressupõe a capacidade de me- morizar e encontrar combinações respeitantes a relações causais entre comandos motores e consequências sensoriais, possibilitando a compara- ção entre o que é desejado e o que é executado, e melhorando, por essa via, através de modelos directos (“forward” models), o modelo inverso.

Os esquemas seguintes (figuras 5 e 6) visam representar o modelo da acção em causa. No essencial, ambos contemplam os mesmos processos, varian- do, apenas, naquilo que se considera desencadear o mecanismo: a intenção ou a volição. Em comum, temos uma concepção de acção como «procedi- mento de controlo adaptativo requerido em ambientes internos e externos variáveis.»35 Retenha-se que esta definição é aplicável tanto à acção motora

quanto à acção mental: no primeiro caso, os efeitos recaem sobre o mundo; no segundo, são relativos ao agente.36 Em ambos os casos são selecionadas

e coordenadas informações para que a transformação desejada seja con- cretizada, e, para que a acção seja avaliada como bem-sucedida ou como fracassada, é fundamental existir um mecanismo de controlo e de com- paração, o qual está baseado em representações— são estes os elementos essenciais do modelo interno da acção.

35. Proust, 2005: 155. «[…] procédure de contrôle adaptatif requise dans des environnements internes et externes changeants.»

36. As acções mentais dizem respeito a operações mentais que têm por fim modificar o próprio estado mental do sujeito com vista a atingir o estado desejado, por exemplo, modificar as suas emoções, “endurecendo”. Para um desenvolvimento deste tema, v. capítulo V.

Figura 5: Representação esquemática da monitorização de uma acção.

A acção “desejada”, correspondente à intenção, é convertida em um modelo inverso, do qual parte um comando motor em formato compatível com o sistema executor. São realizadas as contracções musculares apropriadas, produzindo-se o movimento. Uma cópia do comando motor (cópia eferente) é feita antes da saída do comando para os músculos, servindo para construir um modelo antecipador ideal (forward model) da acção desejada. Aquando da exe- cução, os sinais sensoriais produzidos pelo movimento (feedback sensorial) são comparados com o feedback previsto de acordo com o modelo antecipador. A comparação serve para me- lhorar o modelo, ajustando-o aos constrangimentos surgidos no decurso da execução. É feita uma comparação entre o conteúdo do modelo antecipador e a intenção inicial, com vis- ta a aperfeiçoar o modelo inverso no sentido de assegurar a execução de um movimento tão próximo quanto possível do desejado (a partir de Jeannerod, 2009: 88).

Figura 6: Modelo da acção em feedforward. O comando motor é enviado simultaneamente para o sistema sensório-motor e para um previsor. É feita uma comparação entre o feedback observado e o feedback desejado, desencadeando-se uma revisão do comando caso se ante- cipem ou verifiquem divergências (a partir de Proust, 2005: 154).

O que varia nas apresentações esquemáticas é, então, apenas a inclusão da intenção como factor desencadeador do mecanismo, o que pressupõe im- plicar ou não a intenção no processo. Neste último caso, dá-se primazia à dimensão volitiva.

Da conjugação do princípio respeitante à volição, exposto acima (D1), e do modelo interno da acção resulta a seguinte definição:

(D2) Para querer X com as respectivas consequências procuradas P é preci- so que:

i. o agente disponha da representação dos meios de produção de P (conju- gando modelos directos e inversos), num dado contexto motivante (condição de controlo);

ii. um contexto motivante presente torne o objectivo P relevante (condição de relevância);

iii. a motivação presente seja causalmente suficiente para que o agen- te se coloque no estado de produzir P de maneira controlada (condição quantitativa).37

A primeira condição explica o modo como uma ocorrência passada permi- te ao organismo antecipar os efeitos de uma acção numa situação diferente. A segunda diz respeito às condições de relevância do fim. «O que se enten- de por relevância dos fins, explica Joëlle Proust, é que o ambiente exterior contém recursos de que o agente tem periodicamente necessidade.»38 Esses

recursos são representados teleologicamente como fins, em função das ne- cessidades do agente. A modificação daquilo que é relevante ao longo do tempo resulta numa modulação da orientação da vontade. A terceira condi- ção coloca o nível de motivação como elemento constitutivo do querer, isto é, supõe que à situação num contexto motivante é necessário acrescer a de- cisão “enérgica” de agir: o agente quererá agir na circunstância de se sentir capaz de alcançar o fim visado.

37. Cf. Proust, 2005: 156.

38. Proust, 2005: 156-157. «Ce qu’on entend par saillance des buts, c’est que l’environnement extérieur recèle des ressources dont l’agent a périodiquement besoin.»

Em síntese, ultrapassadas divergências pontuais, podemos reter que a teo- ria do modelo interno postula que a acção procede, precisamente, de um modelo interno, ou seja, de uma representação que antecipa e controla a realização da acção, apresentando-se como modelo explicativo quer da re- petição quer da novidade práxica.

Note-se que a plausibilidade deste modelo é reforçada por trabalhos no âm- bito das neurociências cognitivas, relativos à investigação sobre a origem da cópia eferente e sobre o seu efeito antecipador.39

A apresentação geral do modelo incide sobre a vertente automática do meca- nismo: o conteúdo motor da representação da acção. Vimos que a função da representação consiste, neste caso, em garantir a conformidade entre a ac- ção executada e o fim antecipado, função exercida através da monitorização da acção. Exposta esta abordagem, torna-se imperioso pensar a sua exten- são a acções mais complexas, na medida em que são essas que compõem grande parte da vida de cada um de nós. Como reconhece Jeannerod, fora dos laboratórios, as acções simples equacionadas até aqui são, na maioria das vezes, elementos de um conjunto bastante mais complexo, respeitan- te a um fim muitas vezes abstracto e distante, como, aliás, já foi referido. Acompanhamos, portanto, o neurofisiologista na explicação da abertura do modelo em causa aos mecanismos cognitivos, o que será feito através da análise das acções voluntárias, em particular da fase da planificação. 9.4. A planificação da acção

As acções constitutivas do nosso comportamento quotidiano são realizadas, pelo menos em parte, sob supervisão consciente, naquilo que Jeannerod designa por “modalidade declarativa”. Enunciados como “Quero terminar de escrever o artigo esta semana”, “Vou começar a fazer voluntariado” e “Tenho a intenção de fazer uma viagem pelas capitais europeias”, implicam uma antecipação das etapas que conduzirão à realização do fim na forma de um “plano de acção”. O modo mais ou menos explícito da enunciação

do querer é irrelevante no desenrolar do processo, o qual pode ser decom- posto em etapas sucessivas que constituem uma espécie de “micro-acções”, elas próprias podendo ser alvo de planificação e segmentadas em acções elementares. Neste contexto, como dissemos antes, Jeannerod recupera a distinção de Searle entre intenção prévia e intenção em acção, fazendo corresponder à primeira a planificação geral da acção e à segunda os movi- mentos elementares:

Na discussão presente, os dois conceitos tendem a confundir-se na medida em que intenções e planos diferem apenas pelo seu valor explicativo nos seus respectivos contextos, filosófico para as primeiras e neuropsicológico para os segundos, e não pelo seu conteúdo.40

Esta quase identidade conceptual será revisitada no final do capítulo, sob a proposta de uma síntese aglutinadora das semelhanças e das divergências aferidas.

De momento, interessa-nos abordar a neuroanatomia da planificação, não pelo interesse filosófico da mesma, mas para colocar em evidência um mo- delo de controlo cognitivo transponível para uma abordagem do agente, não apenas na sua dimensão natural, mas também enquanto pessoa.41