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E FILOSOFIA DA ACÇÃO

A FACULDADE DE QUERER

9. A acção vista do interior: o modelo interno da acção

9.1. Representação e intenção

A ideia de representação tal como é colocada pelo modelo interno da acção procede do trabalho desenvolvido por Hugo Liepmann, no dealbar do século XX, no âmbito da neurologia e da psiquiatria clínicas. A partir do estudo dos efeitos cognitivos e comportamentais das lesões cerebrais, é proposta uma abordagem da acção que coloca a representação, em diferentes níveis, como condição necessária à realização do acto, configurando a impossibilidade de criar ou utilizar representações das acções uma patologia clinicamente de- signada por apraxia.11

Para Liepmann, a acção pode ser descrita como um conjunto de movimen- tos básicos, passíveis de decomposição em movimentos ainda mais simples. Planificar uma acção supõe a existência de representações parciais dos actos simples, das quais depende a construção da representação principal respei- tante ao fim a atingir. Com este processo de edificação da representação

10. Jeannerod, 2009: 69. «[…] je chercherait à déterminer comment la représentation, en interaction avec les signaux qui entourent la préparation de l’action et naissent de son exécution, peut contrôler son déroulement jusqu’à l’atteinte du but.»

11. Embora o termo já tivesse sido utilizado anteriormente para caracterizar problemas de execução de tarefas em pacientes que não possuíam problemas motores, integrando as designadas “paralisias psíquicas”, foi Liepmann o responsável pela definição clínica detalhada, a qual ainda hoje se mantém. Cf. Jeannerod, 2009: 56.

completa a partir de representações elementares obtém-se uma “fórmula de movimento”, conceito que sugere uma antecipação motora estruturada e hierarquizada de cada acção singular, em vista da consecução do objectivo.12

Ainda que o conceito de acção em causa pareça demasiado restrito na articu- lação aparentemente exclusiva à dimensão motora, a ideia de representação que lhe está associada permaneceu. Aliás, a relevância desta ideia é mani- festa se tivermos em conta os estudos relativos a pacientes com dificuldades de executar acções simples, sem que sofram de problemas de ordem mo- tora ou de ordem sensitiva. Ao reunir dados clínicos relativos à localização das lesões, Liepmann concluiu que a zona responsável pelos problemas de apraxia era a zona por ele designada de sensório-motora (situada no hemis- fério esquerdo), de onde partiriam os comandos destinados ao córtex motor e a qual deveria ser considerada fundamental na representação da acção. O facto de se introduzirem na análise da acção áreas corticais associativas, não impondo uma limitação às áreas motoras, confere, na perspectiva de Jeannerod, uma abertura compreensiva ao conceito de representação, con- firmada na utilização hodierna do mesmo.13

Ainda de acordo com Jeannerod, o conteúdo das representações da acção traduz o carácter intencional da acção representada. Neste contexto, o neu- rofisiologista encontra conexões com a teoria desenvolvida por John Searle, na obra Intentionality, publicada em 1983. Na apresentação do conteúdo des- ta obra, Joëlle Proust reforça as conexões encontradas por Jeannerod, ao afirmar que nela Searle «analisa a estrutura representacional da acção ou, noutros termos, a sua estrutura Intencional.»14

12. Cf. Jeannerod: 2009: 54-55.

13. «Cette extension de l’espace cortical dans lequel s’expriment les différents états de l’action, de sa conception à son exécution, ouvre de nouvelles possibilités de la notion de représentation.» Jeannerod, 2009 : 57.

14. Proust, 2005: 82. «[…] Searle analyse la structure représentationnelle de l’action ou, en d’autres termes, sa structure Intentionnelle.» Searle propõe a utilização do termo Intencional (escrito com maiúscula) para designar a característica de direccionalidade (directedness) ou de ser-acerca-de (aboutness), distinguindo-o do termo intenção (escrito com minúscula), que nomeia o que tende para um fim, correspondendo a um tipo de Intencionalidade entre outros. Cf. Searle, 1983: 21-23.

Considera Searle que o núcleo fundamental da acção não são nem as crenças nem os desejos, mas as intenções, cuja irredutibilidade defende. Enquanto acontecimento mental, a intenção é dotada de conteúdo representacional: ter a intenção de pressupõe uma representação do que deve ser feito. Porém, Searle constata que nem todas as acções, ainda que intencionais, são pre- cedidas pela intenção de as realizar, pelo que propõe uma distinção entre “intenções prévias” e “intenções em acção”. As intenções prévias dizem res- peito a acções direccionadas para uma finalidade não imediata; as intenções em acção, por sua vez, estão implicadas numa finalidade presente, para a qual a planificação é dispensável. Nas palavras de Searle:

Dizemos, de uma intenção prévia, que o agente age com base na sua intenção, ou que executa a sua intenção, ou que a tenta executar; mas em geral, não podemos dizer tais coisas acerca das intenções em acção, uma vez que a intenção em acto é justamente o conteúdo Intencional da acção […].15

E continua:

Há pelo menos duas maneiras de tornar mais clara a distinção entre uma intenção em acto e uma intenção prévia. A primeira (…) é notar que muitas acções que se realizam, realizam-se espontaneamente, sem que se forme, consciente ou inconscientemente, qualquer intenção prévia de as fazer. (…) A segunda maneira de ver esta mesma distinção é notar que, mesmo em casos em que tenho uma intenção prévia de fazer alguma acção, normalmente haverá toda uma série de noções subsidiárias, que não são representadas na intenção prévia, mas que, apesar disso, são realizadas intencionalmente.16

As intenções em acção causam um movimento corporal particular. Neste caso, mais do que falar em representação, poderíamos dizer que as inten- ções em acção apresentam o movimento corporal, na medida em que nos

15. Searle, 1983: 118. 16. Searle, 1983: 118-119.

dão acesso directo ao mesmo. As intenções prévias causam as intenções em acção. Searle apresenta esta relação de causalidade, à qual voltaremos mais adiante, no seguinte esquema:

Figura 2: Representação das relações de causalidade na intenção, segundo Searle. Searle, 1983: 130.

Vejamos um exemplo elucidativo das diferenças em causa: imagine-se uma reunião parlamentar, na qual um dos partidos da Assembleia apresenta uma proposta para ser votada; antes ainda da reunião ou no decurso da mesma, conhecido o conteúdo da proposta, cada um dos deputados decide o seu sentido de voto, imposto ou não disciplinarmente (intenção prévia); no momento da votação, os deputados executam o movimento que lhes permite manifestar o seu voto, levantando-se da cadeira ou, via informática, clican- do no botão do computador (intenção em acção). Cumprem, assim, a sua intenção de votar favorável ou desfavoravelmente, ou de se abster, através do movimento realizado.17 A causa directa do movimento naquele instante

preciso é uma intenção em acção (expressão que Jeannerod traduz livre- mente por intention motrice), limitada àquele instante e àquele movimento. Donde a possibilidade de apresentar esta relação segundo a fórmula18:

(1) ia (esta ia causa mc) CAUSA MC

17. Exemplo baseado na explanação de Jeannerod. Cf. Jeannerod, 2009: 95. Searle exemplifica a diferença entre intenção prévia e intenção em acção do seguinte modo: «Por exemplo, suponhamos que tenho uma intenção prévia de ir de carro até ao escritório e que, ao executar uma intenção prévia, passo da segunda para a terceira mudança. Ora, não formei qualquer intenção prévia de mudar da segunda para a terceira. Quando formei a minha intenção de guiar até ao escritório, nunca tinha pensado nisso. No entanto, a minha acção de alterar as mudanças foi intencional. Nesse caso, tinha uma intenção em acto de alterar as mudanças, mas não tinha qualquer intenção prévia de o fazer.» Searle, 1983: 119.

18. A partir de Proust, 2005: 87. Entre parêntesis surge a expressão do conteúdo da intenção em acção [ia]. “CAUSA” surge em maiúsculas na segunda parte da fórmula referindo-se à causalidade fisicamente

realizada no movimento corporal ou na actividade cerebral. As fórmulas seguintes procedem da

A sequência aqui colocada pretende expressar a ideia de que o facto de a in- tenção em acção ter como condição de satisfação que a mesma cause um movimento corporal particular causa (em circunstâncias normais) a exe- cução desse movimento corporal. A formulação evidencia claramente que o que é causado pela intenção em acção não é rigorosamente uma acção, mas sim um movimento corporal. Esta é, aliás, uma diferença importante entre as intenções prévias e as intenções em acção: enquanto as primei- ras causam as acções que representam, as segundas são um constituinte da acção— “apresentam” o movimento corporal pertinente, causando, des- se modo, a execução.19 Assim, a fórmula correspondente à intenção prévia

será:

(2) ip (esta ip causa a acção) CAUSA A ACÇÃO

Por sua vez, a articulação entre os dois tipos de intenção necessários ao agir expressar-se-á na seguinte sequência:

(3) ip (esta ip causa [ia1 (esta ia1 causa mc1)] + [ia2 (esta ia2 causa mc2)] + [ian (esta ian causa mcn)] )

A fórmula expressa o facto de a intenção prévia conter, nas suas condi- ções de satisfação, uma ou mais intenções em acção que, por sua vez, causam movimentos corporais específicos. A intenção prévia de consul- tar um determinado livro supõe, na sua concretização, uma série de etapas intermediárias, por exemplo: procurar uma biblioteca onde o livro esteja disponível para consulta; deslocar-se ao local; procurar nos registos a cota do livro; e, por fim, dirigir-se à estante correspondente. Cada uma destas etapas implica uma intenção em acto, ou seja, uma intenção particular que causa um movimento ou uma sequência restrita de movimentos integrados no plano para alcançar a finalidade pretendida.

19. Searle di-lo do seguinte modo: «Pela transitividade da causalidade Intencional, podemos dizer que a intenção prévia causa a intenção em acto e o movimento, e, dado que esta última combinação é simplesmente a acção, podemos dizer que a intenção prévia causa a acção.» Searle, 1983: 130.

Refira-se que a distinção entre intenção prévia e intenção em acção não está tanto na maior complexidade da acção a realizar face aos movimentos impli- cados na concretização do acto, como este último exemplo poderia sugerir, mas antes no conteúdo conceptual característico de cada uma das inten- ções. Se retomarmos o exemplo da votação na Assembleia, constatamos que os dois tipos de intenção são concretizados no mesmo gesto (levantar-se ou accionar o comando informaticamente). E contudo, enquanto a intenção de votar sim, não, ou abster-se comporta um conteúdo representacional explíci- to e consciente, fruto de um processo deliberativo e expressa no movimento realizado, a intenção de se levantar ou de accionar o comando naquele mo- mento preciso corresponde a um movimento automático, destituído de conteúdo consciente.20 Donde que, pese embora a atribuição de um papel

causal a cada um dos tipos de intenção, seja estabelecida uma distinção no âmbito da representação da acção. Enquanto a intenção prévia implica um conteúdo conceptual, composto por conhecimentos acerca do meio em que o sujeito se situa, pela estimativa das consequências positivas ou negativas associadas à acção, e pela optimização das etapas necessárias à obtenção do fim, não comportando detalhes sobre o modo de executar tais etapas, a intenção em acção é, ao contrário, e de acordo com a análise fisiológica e neuropsicológica, pobre em conteúdo conceptual, mas rica em conteúdo motor; inclui propriedades dinâmicas, qualitativas e quantitativas, e pers- pectivistas.21 Nesse sentido, a primeira é associada à semântica e a segunda

à pragmática da acção.22

Em síntese, atendendo à subsunção da proposta de Searle no discurso neu- rofisiológico, podemos dizer que a intenção prévia representa de forma geral, abstracta ou conceptual, o resultado que causa, e que corresponde

20. Cf. Jeannerod, 2009: 96.

21. Por exemplo, se pretendermos encher um copo com água é necessário coordenar um conjunto de informações relativas (i) à distância a que se encontra o jarro, em função da qual será necessário esticar mais ou menos o braço, (ii) à força a fazer para levantar o jarro e para o segurar, e (iii) à inclinação adequada, variáveis de acordo com a quantidade de água nele existente, e por fim (iv) ao instante em que devemos parar de verter a água para que o copo fique cheio, como é nossa intenção, sem transbordar.

ao fim da acção; a intenção em acção apresenta as respectivas condições de satisfação de modo concreto e específico. Deste modo, a representação de uma acção revela uma estrutura heterogénea, composta por uma par- te conceptual, implicada na deliberação, e por uma outra parte motora e automatizada; na primeira é representado o fim último da acção, enquan- to na segunda são re/a-presentados23 os fins imediatos que correspondem,

no fundo, a meios de concreção do fim último. O automatismo que a ca- racteriza facilita a eficácia e a rapidez dos movimentos, e contrasta com o envolvimento da consciência nas intenções prévias. Os pressupostos desta discrepância serão desenvolvidos mais adiante.

Resta-nos, ao tentar compreender o funcionamento mental e neurofisiológi- co das intenções, abordar a questão acerca da duração ou da extensão das intenções prévias. Interessa indagar, em concreto, se estas se esgotarão na activação da intenção em acção ou se permanecerão até à obtenção do fim pretendido.

Não havendo instrumentos de medição das intenções prévias, há, ainda as- sim, maior plausibilidade de uma das alternativas, não apenas do ponto de vista teórico, mas também observacional. Tendo em conta que a represen- tação constitutiva da intenção prévia é a única dotada de uma dimensão judicativa, que permite avaliar a acção em curso e a concretização da mes- ma, e, em caso de fracasso, equacionar as alterações a implementar, ela deve manter-se até à concretização do objectivo (ou até à dissolução do mesmo). A intenção em acção, embora permita correcções pontuais, não permite, fruto das suas características, relacionar um movimento concreto, presente, com a finalidade abstracta e mais ou menos distante. Assim, além do papel de- sencadeador, a intenção prévia tem também uma função controladora, que

23. O discurso científico mantém o uso do termo representação, na medida em que se pretende de uma representação que tenha um papel na coordenação e adaptação do comportamento, sendo que, como referimos, os conteúdos não-conceptuais da acção permitem seleccionar o modo de alcançar o fim visado. A capacidade de discriminar movimentos depende de representações não-conceptuais, que possibilitam a identificação dos mesmos com base no que é percepcionado e no que se sente ao executá-los. Há, portanto, uma predominância da observação e da experiência adquirida, em detrimento da conceptualização. Filosoficamente, a opção por apresentação decorre, como fizemos notar, da imediatez de tais conteúdos.

só pode ser realizada se essa intenção se mantiver presente e acompanhar o desenrolar da acção. É também isso, aliás, que garante a sua condição de causa da acção efectivamente realizada.

Causalidade

A causalidade pressuposta na relação entre intenção e acção integra uma teoria da relação entre estados mentais e estados cerebrais, a qual tem em consideração a distinção entre o conteúdo intencional dos primeiros e as propriedades executoras dos segundos, que os realizam, de acordo com o exposto acima. Joëlle Proust explica sinteticamente essa relação, fazendo notar que «aquilo que faz com que uma intenção possa produzir CAUSALMENTE um movimento corporal é uma propriedade da estrutura cerebral que realiza essa intenção.»24 A eficácia causal dos estados mentais

depende, portanto, da respectiva realização por processos neuronais. O exemplo da experiência visual é avançado, neste contexto, como parale- lo à experiência de agir. As experiências visuais são causadas por estímulos visuais externos, através da reflexão de fotões na retina, desencadeando a actividade do nervo óptico e do córtex visual. Sendo causadas por estímulos externos, são realizadas através de estruturas cerebrais, nomeadamen- te através de projecções do córtex visual no lobo frontal, as quais podem, por sua vez, activar outras estruturas constitutivas de outras experiências, como recordações, desejos, etc. Similarmente, no caso da acção, o poder causal dos estados mentais pressupõe a execução por processos neuronais. Os processos implicados na causalidade Intencional não são executores por si mesmos nem são causais em virtude do que representam. Nessa medida, fala-se de causalidade auto-referencial, implicando-se na acção dois modos de relação causal [configurados na fórmula (2)], a saber, uma primeira auto- -reflexiva ou auto-referencial, presente na intenção de agir (esta ip causa a acção), e uma segunda física, dependente da realização física da experiên-

24. Proust, 2005: 95. «[…] ce qui fait qu’une intention peut produire CAUSALEMENT un mouvement corporel est une propriété de la structure cérébrale qui réalise cette intention.»

cia mental [ip (esta ip causa a acção) CAUSA A ACÇÃO]. A intenção prévia CAUSA a acção porque tem associada uma planificação que activa a inten- ção em acção adequada à consecução do fim visado.

A linearidade deste processo será questionada por uma perspectiva tempo- ral cíclica da acção que, diferenciando do mesmo modo tipos de causalidade nela envolvidos, recusa uma subordinação de tipo top-down, em que na génese da acção está uma determinação do nível automático pelo nível consciente.