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3. O JUDEU MORTO: RITOS FÚNEBRES JUDAICOS

3.6 A ALA JUDAICA NO CEMITÉRIO DO ALECRIM

3.6.1 O CEMITÉRIO DO ALECRIM

Diretamente decorrente desse “poder secular” – em termos pragmáticos, outorgado às Câmaras Municipais – ocorreu na província do Rio Grande do Norte, especificamente no futuro bairro do Alecrim em Natal, a construção do primeiro cemitério público desse embrionário estado.

Figura 7 – Entrada principal do Cemitério Público do Alecrim

Fonte: Arquivo pessoal do autor, 2022.

77Para um estudo mais detalhado e minucioso sobra a temática da secularização da morte e os cemitérios públicos, cf. TAVARES, Diego Fontes de Souza. Os Muros do Além: a construção do Cemitério do Alecrim e a (des)secularização da morte em Natal. João Pessoa: Editora do CCTA, 2020.

Figura 8 – Distância entre a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário e o Cemitério Público do Alecrim

Fonte: Trajeto entre a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário e o Cemitério Público do Alecrim, extraído através do Google Maps.

A distância de aproximadamente 2 quilômetros que separa a Cidade Alta do então Cemitério Público do Alecrim é consequência da crença pseudocientífica da época que apontava os corpos em putrefação como produtores exalantes de miasmas78, e que esses eram os vetores e responsáveis pela contaminação e disseminação das doenças e pestes. Com o sepultamento de cadáveres no interior dos átrios eclesiais (que se encontravam nos centros das cidades), e por terem sido as igrejas importantes centros sociais e de convivência no séc. XIX, o costume fúnebre estava perpetuando um ciclo vicioso de reprodução de doenças, sendo combatido com a construção das necrópoles distantes das cidades e povoamentos79.

78 Entende-se por miasmas as emanações pútridas de matéria orgânica em decomposição. Desde as

exalações de vapores de animais e pessoas doentes, aos pântanos e dejetos humanos e aos corpos em decomposição.

79 Esse discurso higienista se faz presente no Relatório dos Presidentes da Província em 1847, quando o Dr. José Sarmento, em 7 de setembro desse mesmo ano, apela ao alegar que “bem quizera propôr- vos a creação de um cemitério nesta Capital, pelo menos afim de que as igrejas, que são casas de oração, se tornassem dignas moradas do Senhor, deixando de ser, como infelizemente são na actualidade, pela inhumação de cadáveres, focos de pestes” (FALAS E RELATÓRIOS DOS PRESIDENTES DA PROVÍNCIA DO RN, v.8, 2000, p. 347).

Esse imaginário científico a respeito das doenças e contaminações perdurava desde a Idade Média e foi fortemente combatido com teorias e políticas públicas higienistas e sanitárias, nas quais foram expostas com as Câmaras Municipais. Essas medidas sanitárias aceleraram a separação dos enterros eclesiais e resultaram na construção dos cemitérios públicos, sobretudo quando a Cólera-morbo aportou nos portos brasileiros e aqui se propagou fortemente, ao passo que em poucos anos ela tinha se alastrado sobre todo o território brasileiro.

Embora tenha no Brasil aportado somente em 1855, a Cólera já se configurava como pandemia pois já varria o globo terrestre. Essa doença provavelmente surgiu na Índia, em 1817, e se disseminou em 1821 no extremo oriente e leste europeu, e em 1822 tendo seguido para China e Japão. Já no oeste europeu e no norte do continente americano ele aflorou em 1832. Com o desenvolvimento da navegação à vapor em 1850 a pandemia foi gravemente difundida com a intensificação do comércio marítimo e locomoções populacionais.

Conforme Luiz Santos (1994, p. 85-86) a primeira cidade brasileira afetada pela pandemia foi Belém/PA, tendo sido diagnosticado 2 casos nesta província por um recém-formado médico da Faculdade de Medicina da Bahia, em 26 de maio de 1855.

Já na província de Pernambuco, Gilberto Andrade (1986 apud GUNN, 1998, p. 3) defende que a doença alcançou essa província em 18 de setembro de 1855, quando da fundação do Real Hospital Português de Beneficência, sendo popularmente chamada de “tifo levantino”.

É possível que a doença tenha aportado no Rio Grande do Norte oriunda de Pernambuco80, aja vista que as relações entre essas duas províncias eram maiores e mais frequentes que com a do Pará. Outrossim, a disseminação do vírus foi bastante expressiva a ponto que todas as províncias costeiras do Nordeste terem sido acometidas em 1856, constando na Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.

80A hipótese se torna mais plausível com o fato de que em um discurso do então Presidente da Província do Rio Grande do Norte em 1850, João Carlos Wanderley, ao comentar sobre a disseminação de outra peste, a de bexiga, alega que “Fora importada de Pernambuco por um soldado, que della viera;

e, si tanto durou foi porque sahindo do Quartel Militar, onde fizera as primeiras victimas, deixou logo o bairro alto desta Cidade, depois de ter causado alguns estragos, para ir-se aninhar na campina da Ribeira, lugar pouco arejado, já por causa dos morros de areia, que a circundão, offerecendo barreira á livre circulação dos ventos, e já por causa do cocal cerrado e denso, que destruio completamente o doce e suave movimento da viração” (FALAS E RELATÓRIOS DOS PRESIDENTES DA PROVÍNCIA DO RN, v. 8, 2000, p. 461, grifo do autor).

A rápida expansão da doença foi produto de fatores que favoreceram a sua disseminação. A teoria pseudocientífica dos miasmas fomentou uma política pública sanitária com a construção de cemitérios públicos fora dos átrios eclesiais, como tentativa de remediar a doença da cólera afastando os vivos dos mortos. No entanto, fora mais tarde constatado que a cólera é uma doença causada por um vibrião colérico (Vibriocholerae), uma bactéria que se aloja no intestino humano e se multiplica rapidamente, produzindo uma potente toxina e causando uma forte e intensa diarreia, se mostrando ineficaz combatê-la com o isolamento das necrópoles, mas sim com saneamento básico das cidades, métodos higiênicos aplicados à população e não contaminação da água potável, fatores utopicamente impossíveis dada a época.

A famigerada teoria higienista está presente no relatório do Presidente da Província Bernardo Passos, em 1 de julho de 1856, que defendia a ideia da distância dos cemitérios e da construção do Cemitério Público do Alecrim:

Hoje a ninguém he desconhecido na província o seu máo estado de salubridade: muitos viram finarem-se entes a quem mais presavam do que a própria vida, e tomados ainda o coração sobressaltado pelo futuro, que fúnebre ameaça cidades, villas e outros lugares mais ou menos povoados. Logo que apareceu a noticia de reinar o cholera no Pará de modo a dar-se lhe credito, cuidei de tomar as providencias necessárias, afim de evitar a invasão do mal na província.

[...] A construção do cemitério d’esta capital foi posta em praça, e arrematada; vendo porem, quando a epidemia entrou na província, que não haveria tempo de o acabar, antes de chegar a esta cidade, principalmente tendo o hospital exhaurido os depósitos de materiaes de edificação; e não séndo admissível de fórma alguma que os cadáveres durante a epidemia fossem enterrados nas igrejas, mandei cercar de madeira, e preparar uma porção de terreno, no logar destinado para o cemitério, aonde se fizesse os enterramentos, no que se gastou a quantia de 200$000 reis, sendo este serviço arrematado em hasta publica (FALAS E RELATÓRIOS DOS PRESIDENTES DA PROVÍNCIA DO RN, v. 8, 2001, p. 636-638).

O temor e pretensão de Bernardo de Passos em remediar os danos da Cólera com a construção de um cemitério pode ser compreendida ao se analisar as cifras da devastação que ela causou à província. Pondera-se que a doença ceifou a vida de 200 mil brasileiros. Para se fazer um paralelo, e apoiando-se em Monteiro (2015, p.

105) a população total da província do Rio Grande do Norte era, em 1844, de 149.072 pessoas, sendo a cólera responsável por matar todos os habitantes da província e mais um quarto dela. Ainda, se levar em consideração a população natalense da época, que de acordo com Cascudo (2010, p. 107) era 6.454 em 1855 e de 4.600 habitantes, em 1859, pode-se avaliar a catástrofe que foi a peste.

Os altos índices de mortalidade revelam dois elementos do imaginário da época. O primeiro deles é o de que se fez necessário a execução célere de uma necrópole para afastar dos vivos as exalações miasmáticas dos corpos em putrefação;

e, em segundo, uma igual necessidade em acelerar tal construção para acomodar o alto número de vítimas da cólera, já que as igrejas locais não estavam mais suportando a alta demanda por espaços.

As referidas igrejas que comportavam os mortos na capital da província desde suas eventuais construções eram as de Nossa Senhora da Apresentação (a Igreja Matriz), Nossa Senhora do Rosário, Igreja de Santo Antônio dos Militares (ou Igreja do Galo, como é popularmente conhecida), sendo todas elas vinculadas à Igreja Matriz. Na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, situada no alto e no centro da Cidade Alta, era o local de enterro da classe nobre e de maioria branca.

Essa igreja foi construída em 1614 e é a primeira da cidade de Natal, abrigando os que “dormem, anônimos na terra sagrada, milhares de seres que fizeram a nossa cidade [...] [tendo] cada ponta de ladrilho cobre os corpos, sepulturas cujo epitáfio deve ser a gratidão daqueles que hoje vivem por eles que morreram...” (CASCUDO, 2010, p. 116, grifo meu). Já para os menos favorecidos da cidade, tinha-se a Igreja Nossa Senhora do Rosário, localizada um pouco mais afastada da zona nobre da cidade na época e construída em 1713, ribeirando o Rio Potengi. Seu espaço sepulcral era destinado aos negros e escravos, tendo no “alicerce dessa igreja [...] esqueletos de escravos que só se libertaram no céu” (CASCUDO, 2010, p. 118). Por fim, a Igreja de Santo Antônio dos Militares, que se acredita ter sido construída em 1766, servia de campo de repouso aos militares.

Mediante a necessidade de um local para abrigar e residir o descanso daqueles fulminados pela Cólera, foi iniciada a construção do Cemitério Público do Alecrim, no dia 8 de fevereiro de 1856. O contrato foi feito no Palácio da rua da Cruz, com o mestre de obras Manuel da Costa Reis, sendo o local escolhido “na explanada que fica no caminho das Quintas, junto à bifurcação da estrada de Pitimbu” (CASCUDO, 2010, p.

323), ressaltando justamente a distância entre o bairro da Ribeira e o da Cidade Alta.

Sobre a arquitetura do cemitério, Cascudo aponta que

As condições estipulavam que o cemitério seria quadrado, tendo cada parede, pelo lado de dentro, 250 palmos craveiros de extensão e nove de altura, terminando a parte superior com adorno simples. Seriam de tijolo dobrado ou de pedra-e-cal, mas a pedra teria dois palmos e não seria lavada n’água salgada. Os alicerces haviam de ter três palmos de largura e três de profundidade. Na frente haveria uma porta, com

dez palmos de amplitude. No fundo do cemitério, na frente do portão, erguer-se-ia a capelinha, com 25 palmos de comprimento e 15 de largura, sustentada sobre seis pilares de um terço da mesma, vestida de paredes, toda ladrilhada de tijolo e ladrilho, com essa de tijolo de alvenaria no centro (CASCUDO, 2010, p. 323-324).

Figura 9 – Divisão em quadras do Cemitério do Alecrim

Fonte: Arquivo SPHAP, 2009.

A organização dos cemitérios públicos em quadras e dividido em ruas nominais seguia uma lógica urbanista que almejava conceber esses espaços sepulcrais, ou necrópoles, como pequenas cidades em meio ao progresso urbano do séc. XIX. Essa urbanização do espaço do morto é elaborada de tal forma que diante de uma visão panorâmica do cemitério em meio às casas do bairro, ele só é notadamente reconhecido pela ausência de telhados, o que torna visível seus túmulos e lápides e como o mesmo se alinha à urbe.

O ato de transformar o espaço do cemitério em cidade é visível aja vista que mesmo sendo um espaço centenário e com uma arquitetura do séc. XIX, o mesmo atende às recomendações legais para a acessibilidade de pessoas com deficiência (PCD), tendo suas ruas o piso tátil de alerta e direcional, bem como rampas.

Figura 10 – Visão panorâmica das quadras do Cemitério do Alecrim

Fonte: Arquivo pessoal do autor, 2022.

Em consequência de seus 166 anos, o Cemitério Público do Alecrim abriga uma diversidade cultural e religiosa expressiva, sendo seu interior autor de uma heterogênea arquitetura tumular e responsável por uma rica historiografia para a cidade com os sepultados. Dado essa singular característica sepulcral, o cemitério foi reconhecido pela sua riqueza material e imaterial e tombado em 1 de novembro de 2011, pela prefeita Micarla Araújo de Sousa, data em que o bairro do Alecrim comemorava seu centenário (tendo o cemitério já 155 anos). Segundo consta no Decreto 9.541 de 1º de novembro de 2011

Art. 1º - Fica decretado o Tombamento do Cemitério Municipal do Alecrim, situado entre as Ruas Tenente Alberto Gomes, Av. Fonseca e Silva, Rua Manoel Vitorino e Av. Governador Rafael Fernandes, Alecrim, Município de Natal, por seu valor histórico e arquitetônico (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, Natal, ano XI, n. 2148, 2 nov.

2011).