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3. O JUDEU MORTO: RITOS FÚNEBRES JUDAICOS

3.3 O JUDAÍSMO E O TRATAMENTO AO MORTO: KEVOD HA-MET

3.3.2 LEVAIAH, O CORTEJO FÚNEBRE

ou mesmo participando de um shmirá o judeu não pode recitar o Shemá (e nem usar o tefilin, caso seja homem), além de não poder estudar a Torá. Como restrições físicas, não se pode conversar nada perante o corpo que fuja da lógica salvífica dos espíritos malignos, ou se alimentar perante o corpo.

A forma como é entoado durante o cortejo e as respectivas paradas segue a ordem de proferimento das primeiras palavras: “mas Ele, o misericordioso”, na primeira parada; seguindo de “mas Ele, o misericordioso, perdoou a iniquidade”, na segunda parada; tendo na terceira parada, “mas Ele, o misericordioso, perdoou a iniquidade e não os destruiu”; e assim sucessivamente até a sétima parada, em que é proferido o Salmo 78:38 de forma inteira “Vehu Rachum yechaper avon velo Yashchit vehirbá lehashiv apó veló yair col chamató” por três vezes, pois esse versículo possui treze palavras que refletem as virtudes divinas e, quando triplamente recitado, totaliza-se 39 palavras que resultam no perdão divino da alma do morto.

Chegando ao local da sepultura, há os discursos em prol da vida e memória do morto, sendo conhecido como hesped essas exaltações das ações do defunto, sendo essa considerada também uma mitzvá. É considerado uma honra ao morto o discurso proferido pelas pessoas em sua homenagem, além de que é um grande prestígio quando um rabino também o faz, dada a importância deste e a sua reputação perante a comunidade judaica. É aconselhado que pessoas de boa retórica, consideradas dignas – dado seu grau de parentesco ou proximidade com o morto – profiram o discurso, bem como que seja ouvido com atenção por todos, almejando tocar os sentimentos dos enlutados para que estes derramem lágrimas, já que estas são reconhecidas por seu deus como de muita estima quando alguém derrama uma lágrima por um justo. No entanto, se cobra bastante cuidado ao expositor das palavras em honra ao morto para que não sejam por demais bajuladoras e exageradas, caracterizando o morto por uma pessoa que não possuía tais atributos.

O ato de sepultar o morto na cova também segue diretrizes do kavod ha-met.

A tradição exige que a cova para o sepultamento lhe seja própria e particular69, já sendo previamente adquirida para não atrasar o enterro, e que seja utilizada pelo cônjuge e pelos filhos. A exigência alude à narrativa mítica do Gênesis 23, quando Abraão se dirige aos heteus e diz “dai-me posse de um terreno para sepultura, entre vós, e enterrarei minha morta que está diante de mim” (TORÁ, 2001, p. 58), tendo ele comprado por 400 siclos de prata e sendo enterrado na mesma sepultura junto a suas

69 Em Natal, os membros do CIRN possuem um espaço próprio e privado dentro do Cemitério Público

do Alecrim, a qual se denomina como “Cemitério Israelita” e/ou “Ala Judaica”. Neles estão enterrados desde alguns dos membros fundadores dessa instituição, como alguns mais recentes, como o Sr.

Manoel Moura, sendo este o último a ser sepultado no local. Mais à frente da pesquisa, iremos discutir sobre esse espaço sepulcral judaico localizado em um ambiente público.

esposas, filhos e descendentes. Assim, é costume que a esposa e os respectivos filhos sejam enterrados na mesma sepultura do pai. Caso a esposa tenha possuído mais de um marido, por viúves ou separação, ela deve ser enterrada ao lado daquele que teve filhos ou que o que ela assim tivesse solicitado em vida, sendo comumente enterrada com o último marido a qual se encontrasse.

Durante o enterro propriamente dito, é outorgado apenas aos judeus cobrir com terra o caixão e a cova para o seu preenchimento, consistindo isso numa mitzvá. Para se dar oportunidade a todos os presentes cumprirem esse preceito, há uma pá que é usada para ajudar no enterramento. Após a utilização da pá para jogar a terra sob a cova, se deixa a pá no local para que outro judeu a pegue, nunca sendo passada de mão em mão, pois a tradição alega que assim se passará desgraças e infortúnios ao outro.

Depois de soterrado o caixão os enlutados recitam o Tsiduc Hadin. Há o costume habitual de se proferir essa brachá tanto no momento que se tem ciência da morte do ente ou – como é mais comum – depois de enterrado o caixão. Quando feito no primeiro caso, é uma demonstração de que mesmo em um momento difícil como no da perda de uma pessoa próxima, o judeu ainda reconhece a soberania divina; já no segundo, há um claro consolo e exaltação da alma do morto como forma mágica de expiar possíveis iniquidades deste. Outro fator para a recitação é que ela é feita para falecidos homens, mulheres e crianças com mais de 30 dias de vida, não sendo recitadas para crianças menores que essa idade ou sobre cinzas resultantes de cremação. A brachá Tsiduc Hadin ashkenazi diz o seguinte

As obras da Rocha de Israel são perfeitas, porque todos Seus caminhos são justiça; Deus fiel e sem iniquidade, justo e reto é Ele. A Rocha de Israel, cujas obras são todas perfeitas, quem ousará dizer- lhe

“Que realizas Tu?”; Ele domina embaixo e em cima, tira e restitui a vida, leva ao abismo e eleva.

A Rocha de Israel, cujos atos são todos perfeitos, quem ousará dizer- lhe “Que fazes Tu?”. Ó Tu que realizas o que anuncias, derrama Tua gratuita benignidade para nós, e pelo mérito daquele (Isaac) que foi atado como um carneiro, atenta e realiza! O justo em todos seus caminhos é a Rocha de Israel; tardio em irar-Se e pleno em misericórdia.

Tem piedade e poupa, rogamos, aos pais e aos filhos, pois a Ti, ó Senhor, pertencem o perdão e a misericórdia. Justo é Tu, Eterno, que tiras e restituis a vida, e em cujas mãos estão confinados todos os espíritos. Longe de Ti apagar nossas lembranças!

Rogamos que Teus olhos estejam misericordiosamente abertos sobre nós, pois a Ti, ó Senhor, pertencem o perdão e a misericórdia.

O homem – se tiver um ano ou viver mil anos, que vantagem terá?

Será como se não houvesse sido. Bendito seja o Juiz verdadeiro, que tira e restitui a vida. Bendito seja Ele, porquanto verdadeiro é Seu veredito; tudo vasculha com Seu olho e recompensa o homem de acordo com sua conta e Seu veredito, e todos renderão graça a Seu Nome.

Sabemos, ó Eterno, que Teus juízos são justos e que Tu fazes justiça com os corretos e tornas merecedores os que seguem Teus juízos.

Não há motivo para questioná-los, porquanto Tu és justo, e teus juízos são cheios de equidade. Juiz Verdadeiro e Justo, bendito seja o Juiz verdadeiro, cujos juízos são justos e verdadeiros!

A alma de todo ser vivo está em Tuas mãos; Tua destra é só justiça, Com Tuas mãos sê misericordioso com os remanescentes do Teu rebanho e dize ao anjo que afrouxe suas mãos. Grande Conselheiro e abundante Obrador, cujos olhos fiscalizam todos os procedimentos dos homens, a fim de recompensar o homem conforme seus atos e pelo fruto de suas obras, para anunciarem que o Eterno é reto, que Ele é a minha força e não há iniquidade Nele. O Eterno deu, o Eterno tomou; bendito seja o Nome do Eterno! E Ele, sendo misericordioso, expia a iniquidade e não aniquila, e frequentemente desvia a Sua ira e não desperta toda a Sua cólera (FRIDLIN, 2016, p. 84, grifo meu).

São perceptíveis as demonstrações de poder e redenção presentes no Tsiduc Hadin, a qual estão grifadas, que tornam ininteligíveis a razão de ser essa uma brachá recitada para a ocasião. É consolador ouvir durante o sepultamento que “a Ti, ó Senhor, pertencem o perdão e a misericórdia. Justo é Tu, Eterno, que tiras e restituis a vida, e em cujas mãos estão confinados todos os espíritos”, sendo Yahweh o sujeito que “domina embaixo e em cima, tira e restitui a vida, leva ao abismo e eleva” e que detém a “a alma de todo ser vivo”.

Já a brachá Tsiduc Hadin sefaradita aponta que

Tu és justo, Eterno e os Teus juízos são cheios de equidade. O Eterno é justo em todos os Seus caminhos e benevolente em todas as Suas ações. A Tua justiça é eterna e a Tua Lei é perfeita. Os juízos de Deus são verdades de perfeita harmonia. Os Seus decretos são imutáveis e quem ousará dizer: Que fizeste Tu? Só Ele é Deus e faz o que bem entende. Quem só lhe poderá opor? Os atos do Protetor são perfeitos, todos os Seus caminhos são justos. É o Deus de fidelidade, sem desvios, Justo e leal é Ele. Juiz de verdade, a Sua sentença é justa e leal; bendito seja o Juiz de verdade porque os Seus juízos são justos e verdadeiros (FRIDLIN, 2016, p. 85).

Ainda nessa atribuição salvífica das recitações, é também cantado o Salmo 49 em conjunto e após o Tsiduc Hadin.

Ao mestre do canto, dos filhos de Côrah, um salmo. Que escutem todos os povos; que atentem todos os habitantes da terra, sejam eles nobres ou plebeus, ricos ou pobres. Pois haverá sabedoria em minhas

palavras e sensatez no fruto da meditação de meu coração. Meus ouvidos estarão atentos às parábolas de nossos sábios e, ao som de harpas, esclarecerei seus pensamentos mais profundos. Por que haveria eu de temer dias fatídicos em que me cercasse a perfídia de meus inimigos? Os que se fiam em sua força e de suas riquezas imensas se vangloriam, nem mesmo a seu irmão podem eles remir, nem ao Eterno oferecer resgate por sua morte, pois tão alto é o preço da vida, que jamais poderá ser alcançado pelo homem, para viver eternamente e não chegar ao sepulcro. Pois se vê que morre o sábio assim como perecem os tolos e insensatos, deixando a outros suas riquezas. Pensavam os ímpios que eternas seriam suas casas, e por gerações sucessivas persistiram suas moradas; até deram seus próprios nomes às suas terras. Porém o homem, com toda sua riqueza, não persiste, pois como qualquer ser vivo, é mortal. Este é o seu destino – frustrando sua imensa autoconfiança –, vivenciando também por todos que os seguem. Como ovelhas, são tangidos ao sepulcro pela morte, e os justos terão domínio sobre eles; sua beleza e sua força se consumirá e somente a profundeza do Sheól será sua morada. Mas minha alma será redimida do Sheól, pois o Eterno me resgatará. Não invejes nem temas ao homem que enriquece e alcança glórias, pois, ao morrer, nem sua glória nem nada mais levará consigo.

Embora em vida pensasse que louvar-me-ão pelo sucesso que alcancei, sua alma se juntará à de seus antepassados e não mais retornará a luz. O homem que se engrandece e não tem entendimento para seguir os caminhos traçados pelo Eterno assemelha-se aos animais que perecem e não deixam sequer lembrança (TANAH, 2018, p. 1751-1753, grifo meu).

Há momentos em que não se é permitido recitar o Tsiduc Hadin, como em vésperas do Shabat, Yom Tov e Rosh Chodesh após o meio dia e nas vésperas do Rosh Hashaná e Yom Kippur, sendo nessas ocasiões recitado apenas o Salmo 49.

Em sequência a recitação do Tsiduc Hadin os enlutados reúnem-se envolta de mais uma experiência mágica na tentativa de redenção em salvar a alma do morto, com o kaddish dehu atid, que é considerada a primeira kaddish e é assim proferida

YITGADÁL VEYITCADÁSH SHEMÊ RABA

(AMEM) DEHU ATID LECHADETÁ ALMÁ, ULEACHAIAÁ METAIA ULESHACHLELA HECHALA ULEMIFRAC CHAIAIA, ULEMIVNÊ CARTÁ DIRUSHELEM, ULEMEECAR PULCHANA DEELILAIA MEAR’A, ULEATAVA PULCHANA IAKIRA DISHEMAIÁ LEADRE VEZIVE VICARE VEIATSMACH PURCANÊ VICARÊV MESHICHÊ.

(AMEM) DEHU ATID – No mundo que Ele futuramente virá e ressuscitará seus mortos, e plantá-los-á na vida eterna, e reconstruirá a cidade de Jerusalém e reedificará, no alto, Seu Templo, arrancando os cultos estranhos da terra e restaurando o serviço Divino ao seu devido lugar.

Queira o Saníssimo, bendito seja Ele, estabelecer o Seu Reino e Sua preciosidade, e apressar o advento do Seu Ungido.

(AMEM) (TZIPPEL, 2012, p. 72-73).

A recitação das kaddish e kaddish dehu atid compõe um dos pontos substanciais do funeral judaico, dado seu caráter mágico na elevação da alma do morto rumo ao gan eden.

Como já foi exposto nessa pesquisa, a teologia judaica crê que durante o processo de decomposição da carne (basar), a alma (nephesh) está em constante julgamento e seguindo para o gan eden, sendo necessários atribuições de valor e enaltecimento à alma do morto frente ao seu deus. O kaddish representa uma imprescindível forma de garantir à nephesh do morto esse salvo conduto na ascendência ao plano paradisíaco, sendo essa “oração dos enlutados” recitadas durante 11 meses para os judeus que tenham morrido sem iniquidades que os desviem aos olhos de Yahweh – como prostituição, assassinato, suicídio etc, e durante 12 meses, para estes últimos. A recitação dessa oração é de jurisdição dos parentes de primeiro grau, sendo recitada todos os dias durante a shivá, que corresponde aos 7 primeiros dias de luto do enlutado (onen).

Ainda ao fim do sepultamento profere-se uma prece de igual influência e finalidade tal qual o kaddish, a El male rachamim, que consiste em reconhecer a soberania divina e favorecer a elevação da alma do morto. Essa oração também é feita tanto após o enterro, como ao fim da shivá, no 7º dia; no trigésimo dia, ao fim do sheloshim; e com o término dos 12 meses, no iortsei, após a prece do yizcor. A oração compõe uma configuração base na qual é incluída o nome do falecido, a qual se fundamenta da seguinte forma

El male rachamim shochem bameromim, hamtsê menuchá nechoná al canfe hashechina, bemaalot kedoshim utehorim, kezôar karakia mazhirim, lenishmat [... nome do falecido...] bem [... nome do avô...]

shehalach leolamo, baavur shebeli néder eten tesdacá bead azcarat nishmato, began Éden tehê menuchato. Lachen baal harachamim iastirêhu besséter kenafav leolamim veyitsror bitsror hachayim et nishmato, Adonai hu nachalato, veianúach beshalom al mishcavo, venomar AMEN

Ó Deus, que é pleno em misericórdia e que habita nas alturas!

Concede descanso sereno, sob as asas da Divina Presença, nos degraus dos santos e puros, que resplandecem como o brilho do firmamento, à alma de [... nome do falecido...] filho de [... nome do avô...] que partiu para seu mundo supremo, porquanto comprometo- me, sem promessa, doar caridade em memória de sua alma. No Jardim do Éden seja seu descanso! Por conseguinte, o Misericordioso ampará-lo-á sob Suas asas protetoras por toda a eternidade, e ligará sua alma à corrente da vida. O Eterno é sua herança! E que descanse em paz em sua sepultura, e digamos AMEN (SIDUR, 1997, p. 540, grifo do autor).

Ao fim do funeral e terminada a recitação do kaddish e do El male rachamim, forma-se uma fila com os presentes para que os enlutados homens e que tenham feito o bar mitzvá passem pelas filas sem os sapatos, como forma de demonstrar desconforto com a perda e os forçarem a voltar para casa. Caso seja impossível retirar os sapatos, coloca-se um pouco de areia nos sapatos para remeter a esse incômodo.

Na fila formada os presentes consolam os enlutados com a seguinte brachá

“Hamacom ienachem otchem betoch shear avelê Tsion virushaláyim”, que significa

“que D’us vos console junto com todos os que sofrem por Sião e Jerusalém” (FRIDLIN, 2016, p. 28).

Saindo do cemitério, os judeus tem o costume de lavarem as mãos, sendo comum a presença de pias próximas às portas dos cemitérios judaicos70. O costume remete mais a um simbolismo do que um ato higiênico, como alusão ao caráter vital da água, pois o judaísmo acredita valor simbólico da água enquanto vida superior ao da morte.