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1. O SER JUDEU ONTEM E HOJE: A PERMANÊNCIA DE UMA CONDUTA

1.3 A LITURGIA JUDAICA

1.3.1 A TORÁ E O TALMUDE

O Torá e o Talmud são os livros sagrados do judaísmo e que norteiam a vida espiritual e social dos judeus. A Torá estabelece diretrizes em formas de

“mandamentos” que devem ser seguidos pelos judeus em sua vida. Esses mandamentos são chamados de mitzvá37, e eram – antes da Torá Escrita – passados oralmente, sendo a Torá Oral. Essa “Torá Oral”, ou mitzvá, também foi entregue à Moisés no Sinai, só que lhe foi ordenado que esses mandamentos não fossem transcritos, mas rigorosamente cumpridos. Tendo aqui um claro indício de que essa legislação fruto das mitzvot da Torá Oral foi fruto da ação humana (e não divinamente revelada no Sinai à Moisés e ordenado que não a transcrevesse) sendo uma forma de melhor organizar política, religiosa e socialmente esse povo judeu.

Segundo a narrativa mítica da própria Torá (Lei), ela fora dada a Moisés no monte Sinai, sendo o Talmude construído ao longo de gerações por sábios e estudiosos dessa Lei como forma de melhor compreender o cumprimento desta. Antes do Talmude, os sábios recitavam a Lei Oral, ou mitzvá, e dela extraíam um sermão fruto da interpretação dessa lei. Com as perseguições políticas que sofreram os judeus, houve receio de se perder a Lei Oral e esta foi transcrita, sendo chamada de

“Mishná” e os comentários contextuais e exegéticos sobre como “cumpri-la” se chamando Guemará. Juntos, Mishná e Guemará, ou a Lei e a sua interpretação a fim de cumprimento, formam o Talmude

Conforme já exposto no início deste capítulo, a Torá é composta pelos cinco Livros do Pentateuco e foi dada a Moisés no Monte Sinai pós-êxodo egípcio, sendo

“oficialmente” Moisés o seu autor. Mesmo embora Moisés tenha morrido antes de entrar na Terra Prometida e o livro de Deuteronômio conter descrições de quem nela já habitava, os judeus acreditam que Moisés recebera profeticamente essas visões e através disto pôde descrevê-las.

A Torá (do hebraico הרוֹת) deriva da palavra em hebraico yarah, que significa ּ instrução, ressaltando seu caráter pedagógico-normativo. Ele é formado por cinco livros que tratam da origem do mundo e da humanidade até a legislação que ordenaria a vida em sociedade. O primeiro livro Bereshit (do hebraico תישארב) ou “no princípio”;

que descreve a cosmogonia israelita seguindo até a aliança entre Yahweh e Abraão, conta a história dos patriarcas até saída de Canaã de Jacó e seus doze filhos; O

37 Segundo o Talmude, são exatamente 613 os mitzvot que formavam a Torá Oral.

segundo livro é Shemot (do hebraico תומש) ou “os nomes”, que narra a vivência dos hebreus no Egito na condição de escravos, até Yahweh escolher Moisés dentre os hebreus para líder um êxodo de libertação de todo seu povo de volta à terra que lhes é de direito. Ainda no livro é contada como a Torá foi dada a Moisés por Yahweh; o terceiro livro é Vayikrah (do hebraico ארקיו) ou “e chamou”, que descreve a organização litúrgica e sacerdotal do povo hebreu, com seus ritos sacrificais e de oferendas e suas restrições alimentares; como quarto livro, o Bamidbar (do hebraico רבדמב) ou “no deserto”, relata a peregrinação do povo hebreu durante quarenta anos como condenação fruto de sua desobediência à Yahweh; por fim, Devarim (do hebraico םירבד) ou “palavras”, é o conjunto de códigos frutos do discurso de Moisés antes de sua morte e de entrarem em Canaã.

Além dos nomes titulares dos livros serem diferentes dos cristãos, esses também não eram divididos por capítulos e versículos, conforme era a bíblia latina.

Foi justamente influenciada pela divisão bíblica cristã, na Idade Moderna, que a Torá passou a ter essa forma de divisão. Ainda, por ser o hebraico uma língua sem vogais, contendo somente consoantes, e em meio a grande disseminação da Torá em livros ao longo do tempo, ficava difícil a leitura de certas palavras já que da junção dessas letras consoantes se podiam extrair diversas palavras. Assim, um grupo de escribas da Academia de Tiberíades, denominados de massoretas, desenvolveram uma técnica que introduziam “na escrita hebraica pequenos sinais para serem usados no lugar de vogais, ‘adornaram’ certas letras com minúsculas marcas para indicar sua entoação, outras assinalando pontuação, acentuação ou melodia, definiram margens, destaques e o tamanho de certas letras para maior ou menor” (BORGER, 1999, p.

332), sendo essa técnica conhecido como Massorah.

O Torá é o principal livro do judaísmo e sua origem remonta, teologicamente, à Moisés na fuga do Egito, tendo ele “coautoria” com Yahweh. Historicamente, a escola deuteronomista defende que ele foi criado durante os desdobramentos da reforma do rei Josias, no séc. VII a.C. Somado a Torá (escrita) se tem a Torá Oral, que concerne aos mandamentos ditos a Moisés também no Sinai e que lhe fora aconselhado a sua não escritura, somente a sua transmissão oralmente, conforme lhe fora feito.

Seguindo dessa forma, as mitzvá contidas na Lei Oral eram transmitidas pelos sábios que dela aplicavam um sermão prático fruto de sua interpretação, sendo esses sábios doutores e fortes conhecedores da doutrina judaica. Mas depois do cativeiro babilônico e das invasões e guerras romanas, decidiu-se que o conteúdo desses

mandamentos deveria ser escrito, pois temiam tanto o desaparecimento do conhecimento com a morte dos sábios, além de tencionar com isso tornar todo judeu apto ao conhecimento, não dependendo de outrem para o conhecê-lo. Sucedeu dessa forma “durante seis gerações, aproximadamente entre 10 e 200 da era comum, [que]

os sábios palestinenses, chamados tanaím, [formularam] os preceitos legais codificados na Mishná” (BORGER, 1999, p. 281). Dessa forma, a mitzvá contida na Lei Oral agora estava transcrita e posta na Mishná.

Durante esse tempo, Israel seguia os preceitos e cumprimento dos 613 mitzvá baseando-se nas Mishná. No entanto, por ser a Mishná apenas a transcrição direta das mitzvá da Lei Oral, sem os sermões e interpretações que os sábios anteriormente lhe faziam, muitos rabinos condenavam e questionavam a conduta dos israelitas, pois muitos possuíam as mitzvot com a Mishná, mas careciam de uma instrução que lhes ensinasse como melhor cumprir.

Um exemplo a respeito dessa falta de instrução se dava quanto ao shabat, que estabelecia que durante esse dia não era permitido fazer nenhum trabalho. Sobre esse mandamento surgiam dúvidas a respeito do que poderia ser conceituado como

“trabalho” em si, para a partir disso legislar sobre a sua permissão ou não. Conflito esse gerado pois “a Torá só cita genericamente o ‘trabalho’, [tendo] os sábios que definir exatamente o que é ‘trabalho’, o que é permitido, o que é proibido, e o que é obrigatório fazer no Shabat” (BORGER, 1999, p. 284). A partir dessas definições oriundas de estudos de eruditos baseados na própria Torá, chegaram a uma conclusão sobre o que era “trabalho”, descrevendo “quando cozinhar e como esquentar as refeições, quando acender as velas ou banhar-se, o que pode ser carregado nas mãos sem ser ‘trabalho’, quantos metros pode-se caminhar sem ser

‘trabalho’” (BORGER, 1999, p. 284).

Foi justamente de discussões como essa em torno da Mishná que surgiu a necessidade de um conhecimento amplificado e crítico sobre as mitzvot, alegando que a Lei Oral precisava de uma luz para orientar a sua prática. Essas interpretações exegéticas eram feitas pelos sábios também de forma oralmente, se apoiando no texto da Mishná, como anteriormente dito. Aconteceu que, igualmente como houve com a transcrição da Mishná como forma de perpetuação do conhecimento oral, os debates e discussões sobre ela de forma oral também se fizeram necessárias as suas transcrições, para que o povo judeu pudesse possuir e usufruir de um compilado pedagógico sem precisar participar de uma reunião com os eruditos.

Essa interpretação fruto da aplicação dos estudos dos doutores da Lei – os amoraím – sobre a Mishná foi chamada de guemará. Assim, resultou que ao texto da Mishná – que continha a mitzvá – fora anexado o texto da guemará, com a sua interpretação e comentário crítico. Logo,

O Talmud (da raiz hebraica (lmd), estudar), pode ser considerado como o manual das academias, o Talmud era seu comentário ampliado e crítico. Por isso o Talmud (abreviação de Talmud Torá, estudo da Lei) compõem-se de duas partes: a primeira que reproduz o texto da Mishnah, e a segunda, que se compõe de análise e aprofundamento deste texto, resolvendo suas contradições internas e integrando-o com a tradição hagádica (DI SANTE, 2004, p. 38).

Destarte, o Talmude é a transcrição da Lei Oral com a sua explicação prática, embasado com argumentos da própria Torá e adaptado contextualmente às situações econômicas e sociais que se encontravam o povo judeu.

Figura 3 - O Talmude

Fonte: BORGER, 1999, p. 282-283.

Foi durante os séculos III a V d.C. que os amoraím reuniam-se para estudar a Mishná e dela tecerem comentários pragmáticos sobre seu cumprimento. O método de interpretação é o Midrash, um método antigo já usado pelos escribas (400 a.C. – 10 d.C.), pelos tanaítas (até o ano 220 d.C.). Segundo Di Sante

O termo deriva do radical drsh, que significa “pesquisar”, “investigar”,

“indagar”, e sua finalidade é encontrar o sentido oculto dos trechos da Torá, revelando seu espírito profundo e atual [...] O midrash não nasce, de fato, das exigências racionais (compreender como o texto bíblico foi formado), mas das razões existenciais (em que o texto bíblico nos ajuda a viver e sobreviver). Deste ponto de vista ele é um método de exegese que poderia ser definido de “espiritual”, para ser diferenciado do método histórico-crítico moderno, praticado nos ambientes acadêmicos sobretudo ocidentais (DI SANTE, 2004, p. 134).

Através disso, o guemará foi desenvolvido fruto desses debates e com esse método de interpretação e leitura da Mishná, que buscava o sentido pragmático da mitzvot adaptado às circunstâncias sociais, econômicas e históricas da época.