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2.3 OS ELEMENTOS DA NARRATIVA

2.3.1 O CENÁRIO

Quando respondia minha pergunta no grupo focal sobre o que pensavam sobre o projeto de produção do curta, a aluna Cristina me disse: “O X tem a grande fama de fazer trabalho complicado, né?”.

Um pouco da Minha história

Se agora, a X tem a grande fama dos trabalhos complicados, quando eu era aluno do Ensino Médio, mesmo estudando em um colégio particular, a fama era que ela possuía uma diretora extremamente rígida que comandava o colégio com mãos de ferro. Por conta disso, diziam que era uma escola que funcionava.

Minha mãe, no início de sua carreira na década de 90, foi professora do noturno naquela escola. Em uma de suas aulas para o terceiro ano do Ensino Médio, um de seus alunos a enfrentou e a ofendeu. Ao saber da situação, no dia seguinte, a diretora a chamou para sua sala onde o aluno já estava desesperado. Minha mãe tinha sido chamada para decidir o futuro do aluno. A diretora lhe perguntou: “ele merece outra chance ou você quer que eu o expulse da escola?”.

O aluno não só pediu desculpas, como pediu literalmente clemência à minha mãe para que ela o deixasse ficar, que foi o que aconteceu.

Conto essa pequena vinheta não para discutir se a proporção da pena era justa à gravidade da falta, mas para demonstrar que a X foi administrada por muitos anos com bastante rigidez por uma diretora que não tolerava problemas de comportamento dos alunos. Como já disse, era e é por conta disso que o colégio tinha e tem fama na cidade de ser uma escola pública que funciona. A diretora, que até mesmo me aterrorizava quando era aluno, aposentou-se, mas sua vice assumiu o cargo com a mesma postura. Enquanto estava na escola, não foram poucas as vezes que vi pais sendo chamados para conversar sobre problemas de comportamento do filho com a diretora e/ou com professores. Os pais sabem que lá será exigido que seus filhos encarem as aulas com seriedade, fator fundamental para que os professores consigam exercer sua função.

Uma das consequências disso é que há uma enorme disputa por vagas na escola. Quando estava aplicando o questionário, surgiu outra vinheta interessante. Uma das primeiras informações que os alunos deveriam preencher era o endereço. A professora Roberta, em tom bastante brincalhão, disse: “Podem colocar o endereço de verdade. Não precisa ser aquele que vocês mentem para poder estudar aqui. O Bruno não vai denunciar vocês.”.

Como se sabe, por questões de organização e de facilitação do acesso, os alunos de rede pública deveriam se matricular na escola mais perto de sua casa. Pelo outro lado, a escola exige um comprovante de residência para dar preferência aos alunos que residem nas vizinhanças. Para garantir que seus filhos consigam vagas na X, os pais usam comprovantes de residência de outras pessoas que moram na região da escola, ou seja, eles mentem sobre seus endereços.

Uma vez que estamos falando de endereço, é importante localizar o colégio. A X é uma das 26 escolas da rede estadual de educação de uma cidade do interior do estado de São Paulo a pouco mais de 100km da capital e com uma população estimada de 160 mil habitantes. Em relação ao município, o colégio se

localiza em uma área central, nas imediações de bairros de classe média baixa e ocupa um quarteirão todo.

Dentro desse espaço físico, a parte construída se divide em quatro blocos de um andar. Para a facilitação da visualização, trago a planta da escola na Figura 6.

• Bloco 1: onde se encontra a parte administrativa, com a sala da coordenação, direção e a secretaria; os ambientes de uso coletivo, biblioteca, sala de informática e sala multimídia; e, no final, a sala dos professores.

• Bloco 2: onde se encontram os banheiros dos alunos, o pátio que possui mesas para os alunos comerem, a cantina e a cozinha que serve a merenda.

• Bloco 3: as salas de aula de Geografia, História, Matemática, Português e Sociologia/Filosofia.

• Bloco 4: as salas de aula de Química, com um pequeno laboratório acoplado, Física, Biologia, Inglês e outra de Português.

Além disso, há uma quadra coberta com uma pequena arquibancada e uma horta para os projetos da professora de Biologia e Ciências.

FONTE: ELABORAÇÃO PRÓPRIA.

Uma primeira prática interessante do espaço físico do colégio é o ensalamento. Usualmente, a divisão das salas é feita por turmas, com cada uma ocupando uma sala própria e com os professores se deslocando de um espaço para o outro. No entanto, nessa escola, o ensalamento é feito por disciplina. Cada disciplina possui um espaço próprio em que ficam armazenados todos os materiais didáticos específicos daquela matéria. No caso de Geografia, por exemplo, todos os livros didáticos, os mapas, o globo terrestre. Durante a troca de aulas, são os alunos

que se deslocam pelo espaço físico e vão até a sala da próxima disciplina.

Outro fato interessante em relação ao uso do espaço e ao deslocamento é que, ao chegar à escola, os alunos não vão diretamente para a sala de aula. Eles esperam o sinal tocar na quadra, quando, então, cada turma forma a fila dos meninos e das meninas. O docente da primeira aula do dia vai até a quadra e caminha até sua sala com os alunos o seguindo. Minha escola também adotava a mesma prática, mas somente com os alunos do Fundamental I. Não posso esconder o fato que achei engraçado olhar para homens e mulheres feitos, como são os alunos do terceiro ano do Ensino Médio, e vê-los em filas divididas por gênero. Segundo Roberta, os professores optaram por esse método para evitar que os alunos cheguem à sala em momentos diferentes, atrapalhando o andamento da aula. Eles já ficam reunidos e todos se direcionam juntos para a classe.

Estes dois fatos se unem a outros em defesa do meu principal argumento em relação a X, que também é defendido pela professora Roberta: a direção e os professorem elaboraram e executam um plano político pedagógico. Existe uma gestão escolar que, muito mais que as diretoras disciplinadoras, garantem o funcionamento do colégio.

O primeiro fato que me despertou o interesse foi a forma como é feita a avaliação e a fórmula da nota bimestral. Não há uma prova de Geografia especificamente, mas há uma prova da área de humanas. Esta avaliação é formada a partir do agrupamento de dez questões múltipla escolha, sendo dez da área de Geografia, dez da área de História e vinte da área de Filosofia e Sociologia. Portanto, é uma avaliação inspirada nos modos do ENEM, que possui uma prova da área de Ciências Humanas e suas Tecnologias, englobando justamente estas quatro disciplinas. A nota que o aluno recebe nessa avaliação é utilizada na formulação da nota final do bimestre de todas as disciplinas envolvidas. As outras disciplinas elaboram provas específicas e aplicadas em

dias próprios, portanto os docentes de Biologia, Física e Química não elaboram uma prova como a de Ciências da Natureza e suas tecnologias do ENEM.

No entanto, na composição da nota bimestral, existem objetos de avaliação que são padronizados, apesar de poderem adquirir pesos diferentes a critério do professor:

• a competência leitora e escritora, chamada de CLE: a disciplina de Língua Portuguesa elabora uma prova para avaliar as habilidades de leitura e escrita dos alunos. Como ler e escrever são competências importantes para todas as disciplinas, a nota que o aluno recebe nesta avaliação é usada na composição das notas bimestrais de todas as disciplinas.

• a competência lógica matemática (CLM): os professores de Matemática elaboram uma prova para avaliar os conhecimentos e competências matemáticas do aluno. Da mesma forma que a anterior, a nota do aluno é utilizada em todas as disciplinas.

• A avaliação do portfólio: todos os anos em que o aluno se matricula na escola, ele deve trazer consigo uma pasta catálogo para construir seu portfólio. Este é dividido pelos bimestres e cada bimestre pelas disciplinas. Existe uma estrutura a ser obedecida: a capa do ano, em que o aluno pode se expressar artisticamente; a capa do bimestre, que segue a mesma lógica da capa anual; então, a partir de uma ordem preestabelecida, seguem-se as disciplinas. Para cada disciplina, é requerida uma capa. No entanto, diferente das anteriores, esta deve apresentar um infográfico do assunto central da disciplina naquela etapa do ano. No caso da disciplina de Geografia, por exemplo, Roberta pediu uma linha do tempo das religiões mais praticadas no mundo com as suas características. Depois da capa, são colocados, em ordem cronológica, os exercícios e trabalhos feitos ao longo do bimestre. Ao final do ano, como pude ver, as pastas se tornaram grossos e pesados portfólios reunindo todo o trabalho daquele ano em todas as matérias.

A preocupação conjunta dos professores em como avaliar e o que avaliar os levaram a uma discussão política e pedagógica que garante que todos os docentes, apesar das especificidades de suas disciplinas, busquem o mesmo objetivo, ou como Roberta metaforiza: “todos falam a mesma língua”.

Similarmente, era indício de um plano político e pedagógico em exercício, a existência de uma associação de pais e mestres participativa, principalmente para a resolução de problemas escolares. Relato um que acompanhei durante a realização da pesquisa. A máquina de impressão da escola, depois de muito uso, parou de funcionar. A direção fez um requerimento para que a Secretária de Educação comprasse uma nova para imprimir as avaliações. Só há como continuar com o projeto da prova integrada de Ciências Humanas aos moldes do ENEM se existir uma impressora. Não há como ditar 40 questões múltipla escolha.

Como o pedido não foi atendido, em reunião da associação de pais e mestres, deliberou-se uma política interna para resolver o problema da falta de impressão, enquanto o Estado não o resolve. Pais e professores decidiram que existiria a contribuição voluntária. Todo mês, o representante discente de cada turma anotava o quanto cada colega iria doar para a impressão de provas e recolhia o dinheiro. Aquele dinheiro era repassado para o professor responsável por cada turma que fazia a checagem do valor. Por último, as contribuições eram dadas ao coordenador que levava as provas para impressão e pagava os serviços. Os pais tinham acesso e conferiam a contabilização do dinheiro arrecadado e gasto, para que fosse garantido o uso apropriado da verba.

Esse exemplo demonstra que o plano político pedagógico foi elaborado e era executado pelos professores, mas também era apoiado pelos pais dos alunos, que participavam da associação de pais e mestres para garantir que a escola pudesse continuar a funcionar da mesma forma.

Ocupando uma posição central e ativa nesta associação, como também nesta pesquisa, estava a professora Roberta.

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