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2.3 OS ELEMENTOS DA NARRATIVA

2.3.2 UMA PERSONAGEM (EM) ESPECIAL

Como muitos dos relacionamentos nos dias de hoje, o meu com a Professora Roberta também começou pelo WhatsApp. E, como as melhores coisas da vida, nossa relação de amizade se iniciou tomando um cafezinho.

A pesquisa de doutorado, que aqui se torna tese, foi pensada para acompanhar o trabalho de dois professores de uma escola particular que tinham o projeto de ensino de produção de documentário curta-metragem com seus alunos do Ensino Médio. O professor envolvido me contou que uma professora chamada Roberta, da escola estadual X, desenvolvia um projeto semelhante com seus alunos. Meus olhos se arregalaram: vi uma oportunidade incrível de acompanhar um projeto de ensino muito parecido ser desenvolvido por uma escola da rede particular e por outra da rede pública. Pedi o contato de Roberta, mas ele não o tinha.

FONTE: CAPTURA DE TELA DO WHATSAPP.

Por meio de uma colega trabalho, consegui o número de celular de Roberta e mandei a mensagem capturada pela Figura 7. Faço questão de colocá-la, pois ela é reveladora de algumas características da professora. Na mensagem que mandei, informei a Roberta que sou pesquisador e gostaria de conhecer mais o seu projeto de ensino. Não comentei nada sobre a possibilidade de ela também se tornar participante. Apesar de já desejar que isso se tornasse realidade, ponderei que seria necessário não só convidá-la formalmente, mas também convencê-la de que seria interessante sua participação, bem como que ela estaria protegida pelo Conselho de Ética em Pesquisa da Unicamp.

Roberta, no entanto, não pensava o mesmo. Para ela, tudo estava acertado: ela já estava participando da minha pesquisa. Se eu queria conhecer e pesquisar o projeto de ensino que desenvolvia: mi aula, su aula. Não foi preciso que eu a convidasse, muito menos que eu a convencesse dos benefícios ou listasse todas as garantias éticas. Ela tinha aceitado. E isso

se deve não só a uma enorme generosidade de ajudar uma pessoa que ela estava conhecendo ali, mas principalmente ao fato de Roberta acreditar verdadeiramente na pesquisa e na educação. Para ela, a educação é o caminho para um mundo melhor e a pesquisa é o caminho para uma educação de melhor qualidade. Essa crença também não é à toa, pois ela não foi formada somente como professora, mas também como pesquisadora. A frase que abre esta seção sobre Roberta foi dita a mim por outra professora da escola. Entre as muitas razões para ser considerada muito boa para ser professora da escola pública, uma delas é sua formação acadêmica e profissional. Segue uma pequena biografia profissional da professora com base no que ela me contou em nossa primeira entrevista:

Um pouco de História da Roberta Roberta terminou seus estudos na escola básica em um colégio técnico de uma cidade do interior de São Paulo, em que recebeu o título de técnica em Processamento de Dados. Após o término do Ensino Médio, concentrou seus estudos em cursos pré-vestibulares para conseguir acesso às universidades públicas, que por questões financeiras, seriam suas únicas chances de se graduar. Dessa forma, ela ingressou no ano de 1996 no curso de bacharelado em Geografia de uma das universidades públicas de São Paulo.

Durante sua graduação, Roberta participou de diversos projetos técnicos, como também cursou disciplinas na faculdade de Educação para também ser licenciada em Geografia, já que seu principal desejo era se tornar professora. Nesse período, se envolveu em projetos de formação continuada de professores, como o Teias do Saber, no qual teve suas primeiras experiências como professora ministrando aulas para professores de Geografia já formados.

Depois de formada com o título de bacharel e licenciada em Geografia, Roberta voltou a sua cidade natal, a mesma em que ainda mora e onde esta pesquisa foi realizada. Seu primeiro contrato veio logo em seguida, quando foi convidada a dar aulas para uma fundação particular que atendia alunos que não podiam pagar o ensino privado. Após alguns anos, decidiu voltar à academia, inscreveu-se no mestrado na mesma universidade em que se graduou no Programa de Pós-Graduação em Geografia Física, ao mesmo tempo em que prestava o concurso para professora efetiva do Estado de São Paulo. Tendo sida aprovada nos dois processos, Roberta começou seu mestrado, recebendo o título em 2011 através de sua dissertação sobre a morfologia de uma bacia paulista, e se juntou ao corpo docente da X. Por conta dos dois novos compromissos, deixou a fundação.

Como ela mesma diz, para o bem e para o mal, sua experiência como professora de escola pública era exclusivamente construída dentro da X. Para o bem, porque nessa escola conseguia desenvolver seus projetos e ensinar da forma que gosta. Para o mal, porque não conhecia a realidade das escolas públicas de São Paulo, considerando sua visão muito limitada.

Infelizmente, é triste pensar que por ter uma excelente formação, Roberta fosse considerada boa demais para ser professora da escola pública, quando o ideal é que todos os professores tivessem as mesmas oportunidades de formação e fossem valorizados, não só economicamente, por isso. Mas o discurso da outra professora sobre Roberta revela justamente isso: ela é muito bem formada para estar ali, recebendo tão pouco.

Conforme as semanas iam passando e eu conhecia mais Roberta, realmente fui percebendo que ela era boa demais e, justamente por isso, como todos os professores bons demais, estava no lugar certo: na educação pública. Ela não era boa

demais somente por conta de sua formação, mas também por sua prática docente e sua participação nas atividades da escola serem igualmente louváveis.

A aula de Roberta começava com a data e os objetivos da sua aula na lousa. Organizada e com a aula preparada. A data e os objetivos, em muitos dias, eram tudo o que ela escreveria no seu pequeno quadro branco. Os recursos de suas aulas eram os mapas que guardava perto de sua mesa, sua voz e os cadernos do Estado de uso obrigatório. Não eram longas aulas expositivas em que colocava enormes resumos na lousa e pedia para os alunos copiassem. Seguindo as situações de aprendizagem do material didático, ela propunha que primeiro os alunos fizessem as atividades, ajudando-os na execução. Depois, a correção era feita conjuntamente, com base em muitas discussões, nas quais os conteúdos iam sendo discutidos enquanto surgiam organicamente das respostas que os alunos formulavam.

A sensação que eu tinha era que o tempo passava muito rápido e muitas vezes em meu diário de campo fiz anotações de conteúdos de Geografia que eu não sabia e nunca tinha aprendido, mesmo tendo estudado minha vida inteira em uma escola particular. As discussões eram sempre problematizadoras, em que Roberta provocava seus alunos a pensarem criticamente e a defenderem seus pontos de vista com argumentos. Muitas vezes, o mais difícil para mim era ficar quieto e não me juntar nos debates. Porém, não podia interferir no andamento das aulas.

Outro fato que me chamava muito atenção era a preocupação que tinha com a formulação da resposta. Muitas vezes incentivava: “como é que vocês responderiam isso se fosse na segunda fase da USP?”. Já tendo sido corretora de vestibulares por diversas vezes, constantemente passava dicas de como escrever uma resposta para ser bem avaliada pelas bancas de correção. Esse incentivo também revelava outro aspecto que muito admiro no seu trabalho docente: a responsabilidade que tinha para com os alunos.

Roberta acreditava plenamente no potencial de suas turmas e, por conta disso, trabalhava também para despertar o desejo de seus alunos de fazerem uma graduação em uma universidade pública. Em muitas aulas, ela separava um tempo para aconselhá-los sobre os estudos, incentivá-los a buscar a melhor formação possível e alertá-los sobre os mecanismos de exclusão. Uma incansável mentora que se preocupava não só em ensinar conteúdos, mas em ajudar seus alunos a voar mais alto e a transformar o mundo. Um pouco utópico. Mas qual professor de verdade não é utópico?

Conhecida a atriz principal desta tese, passo às outras atrizes e aos outros atores: as alunas e os alunos.

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