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CGV, padrões de especialização comercial e desempenho econômico dos países

CAPÍTULO 2 A FRAGMENTAÇÃO INTERNACIONAL DA PRODUÇÃO E AS

3. CGV, padrões de especialização comercial e desempenho econômico dos países

Especialmente as organizações internacionais descritas anteriormente juntamente com o grupo denominado aqui de “os economistas” sugerem fortemente em suas conclusões as CGV como um possível novo modelo de desenvolvimento econômico, sobretudo, para as economias emergentes.

Kaminski e Ng (2001, p.2) entendem a inserção em redes globais de produção como uma maneira dos países em desenvolvimento realizarem um catching up em relação aos países desenvolvidos, convergindo e ampliando os seus níveis de renda:

Foreign involvement facilitates the transfer of managerial and technological know-how, so firms benefit from becoming part of a network. Small producers, rather than servicing small local markets, can supply large firms abroad. Foreign participation-through outsourcing or direct investment-may offer direct access to a parent company's global networks. Becoming part of a multinational production and distribution network is a cheap way to market products.

Nesta perspectiva, ao participarem de CGV lideradas por multinacionais, firmas de pequeno porte, em países em desenvolvimento, podem alcançar níveis de integração com a economia global acessando mercados externos e diversificados, beneficiando-se de economias de escala e escopo, aprendizagem tecnológica e spillovers de conhecimento. Baseados na visão tradicional ricardiana, esses trabalhos (seção 2.2 e 2.3) argumentam que os países devem se especializar em atividades produtivas ou “tarefas” na cadeia em que possuam vantagens comparativas no comércio internacional. Esse caminho, independentemente da estrutura produtiva dos países, levaria a uma maior competitividade externa e a maiores taxas de crescimento econômico no longo prazo (BALDWIN, 2013; OECD/WTO, 2013).

Como dito, dentro da perspectiva defendida por órgãos multilaterais como OECD/WTO (2013), um país não precisa mais montar uma fábrica de bens finais para conseguir se beneficiar do crescimento da indústria. É suficiente que ele seja competitivo na produção de uma única peça em um setor em que possui vantagens comparativas (ATHUKORALA, 2003).

No entanto, teoricamente observa-se que não há consenso na literatura sobre os impactos da inserção CGV, na medida em que também apontam dificuldades enfrentadas pelos países em realizar atividades de offshoring e riscos associados a um processo de crescimento induzido pelas CGV.

(…) the participation of developing countries in such production chains is not without problems and risks. First, increasing value added through technological upgrading and productivity growth in the context of international production sharing may prove to be more difficult than in self – contained independent industries. Second growing competition among developing countries to attract FDI in order to enter such markets may lead to problems relating to fallacy of composition and provoke a race to button. (UNCTAD, 2003, p. 35).

Grande parte dos relatórios da OMC/OCDE omitem uma série de questões relacionadas às ferramentas que países em desenvolvimento tem ou não tem para atrair atividades de maior valor adicionado para seus territórios, como o papel do direito de propriedade intelectual, da regulação internacional sobre a proteção de investimentos e das estruturas tarifárias nos países desenvolvidos. Além disso, a realocação da produção de determinadas atividades produtivas para outras, em função da formação de CGV, pode ocasionar desemprego ou redução salarial (DALLE et al., 2014).

Vale dizer, no nível da firma, outro ponto que não é destacado pelos organismos multilaterais e pelos economistas, preocupados em medir a fragmentação, é sobre a estrutura de propriedade, ou a diferença entre o valor adicionado que fica sob o controle da empresa nacional e àquele que é apropriado pelas EMN. Devido à grande presença de subsidiárias de multinacionais integradas em CGV nos países, o valor adicionado capturado por essas economias pode ser relativamente bem baixo, dado que as subsidiárias podem repatriar seus lucros.

Vários outros estudos72 apontam como um bem exportado pode exigir um grande

volume de insumos intermediários de fabricantes nacionais que, por sua vez, requerem significativas importações intermediárias utilizadas na produção, deixando apenas benefícios marginais para as economias exportadoras e deficits em termos de valor adicionado. Ou seja, paradoxalmente, evidencia-se uma discrepância entre onde os produtos finais são produzidos e exportados e onde a maior parte do valor é criado e/ou capturado. Se uma redução na produção doméstica de produtos intermediários não for compensada por um aumento nas exportações ou

72 Estudo de caso do smartphone Nokia N95 (Ali-Yrkkõ, et al., 2014), iPod (Linden et al. (2009), boneca Barbie

no consumo de bens finais, o resultado final pode ser uma contração da renda econômica (DALLE et al., 2014).

(...) devido ao aumento do conteúdo importado das exportações, a expansão da corrente de comércio induzida pela integração produtiva pode resultar em maiores restrições externas ao crescimento econômico e, no limite, em uma “reversão das importações”, com consequente redução da integração e especialização produtiva. Por outro lado, devido à assimetria da distribuição de valor da cadeia produtiva, os países de menor grau de desenvolvimento podem ficar “aprisionados” em atividades de baixo valor e alta concorrência, com escassas possibilidades de deslocarem sua estrutura produtiva. (MEDEIROS, 2010, p.296).

Kaplinsky e Morris (2001) apontam que existem possibilidades de retrocesso do desenvolvimento de países via inserção em CGV, pois a hegemonia das firmas líderes podem “congelar” (lock-in) a posição de firmas subsidiárias em determinadas funções que agregam pouco valor e que são de baixa rentabilidade. Quando países tendem a se especializar apenas em atividades estritas e rotineiras de baixo valor adicionado nas CGV, as empresas nacionais, sobretudo, as pequenas e médias (PME’s) tendem a permanecer aprisionadas em segmentos tecnologicamente rasos e poucos rentáveis, pois os limites de aprendizagem são rapidamente alcançados. Isso, portanto, pode levar a um esgotamento das possibilidades de crescimento econômico e de melhorias no bem-estar social no longo prazo (KAWAKANI; STURGEON, 2010).

Gereffi (1994, 1999) indica que a participação de um país no processo produtivo fragmentado e em CGV não lhe assegura necessariamente ganhos dinâmicos advindos de sua especialização produtiva, pois nem todos os países integrantes dessas cadeias conseguem extrair benefícios similares. Esses benefícios dependerão principalmente do tipo de governança estabelecido na cadeia, como já dito, e da capacidade de apropriabilidade/cumulatividade de conhecimento pelas firmas nacionais na implementação de determinado estágio do processo produtivo, ligada ao aprendizado e à mudança tecnológica. Ademais, Gereffi (2013, p.10) ressalta:

In short, while industrialization under the EOI model became easier and faster (countries could just ‘join’ supply chains by performing specialized tasks, rather than ‘build’ them), it may also be less meaningful. If countries are only engaged in the simplest forms of EOI, such as assembling imported parts for overseas markets in export-processing zones, then they would develop neither the institutions, nor the know-how, nor the consumer markets needed to create and sustain entire industries. (GEREFFI, 2013, p.10).

Nesse contexto, as possibilidades de aprendizagem tecnológica e o consequente upgrading econômico, são elementos-chave para “subir” na cadeia de valor – de atividades de montagem que utilizam mão de obra não qualificada de baixo custo para atividades mais avançadas - “forms of ‘full package’ supply” (GEREFFI, 2005). Por exemplo, o sucesso asiático em termos de desempenho exportador e de crescimento econômico, por vezes é associado à sua especialização produtiva e comercial, na qual a integração regional contribuiu de forma decisiva. O que se percebe nessas economias é um movimento de aprendizagem tecnológica, por meio de um processo de absorção e transferência de tecnologias que têm permitido a tais países avançarem em áreas de tecnologia mais avançada, como maquinários elétricos, componentes e equipamentos de informática (LEMOINE; ÜNAL-KESENCI, 2004; MEDEIROS, 2011).

Portanto, a partir de uma visão neoschumpeteriana da firma, os autores da GVC approach atribuem importância ao papel das diferenças tecnológicas dos países expressas em distintas especializações no comércio internacional, todavia, dando maior peso ao posicionamento nas CGV e reduzindo a importância da dimensão setorial na avaliação da qualidade da inserção internacional das economias. Isso porque, em um processo fragmentado da produção, um país pode posicionar-se em distintas etapas produtivas em uma cadeia de valor de um mesmo setor, que possuem níveis tecnológicos diferentes e, consequentemente, ganhos diferenciados. Essas etapas conformam uma curva que correlaciona a magnitude do valor adicionado na CGV com os tipos de atividades desenvolvidas ao longo da cadeia (estágios da cadeia produtiva); tal como na figura 3 - “curva sorridente”73.

Figura 3: Curva Sorridente - valor adicionado ao longo da CGV

Fonte: OECD/WTO (2013).

Cada uma das atividades dentro da CGV fornece um valor diferenciado. Um determinado país pode estar localizado a montante (upstream) ou a jusante na cadeia de valor (downstream). As etapas a montante podem ser caracterizadas pela produção de matérias primas brutas que agregam pouco valor e estão mais ao centro da “curva sorridente” ou também por ativos de conhecimento como P&D, design e construção de marcas, dentre outros serviços pré-montagem que agregam maior valor no processo produtivo. As etapas intermediárias mais a jusante são aquelas relacionadas à montagem dos produtos e aquelas relacionadas ao fornecimento de serviços (pós-vendas ou atendimento ao cliente). De acordo com a “curva sorridente”, as pontas das cadeias proporcionam maior valor adicionado, já que os países são tanto detentores dos insumos e intangíveis a montante, ou dos serviços intangíveis a jusante. O próprio relatório da OECD/WTO (2013, p.29) aponta que o local onde o país se encontra nas cadeias pode afetar o grau em que elas serão beneficiadas das CGV: atividades com P&D e design e certos serviços tendem a criar mais valor que a montagem.

Sendo assim, um país pode ter uma alta participação nas exportações de setores intensivos em tecnologia, mas participar de uma fase a jusante da cadeia produtiva, que não lhe assegura muitos ganhos, como atividades de montagem. Ou, ao contrário, pode participar de uma fase a montante como fornecedor de P&D, com elevado valor adicionado, em setores produtivos pouco valorizados pelas correntes teóricas que ressaltam determinados setores de maior tecnologia na avaliação da qualidade das exportações. Em outros termos, o fato de um

produto final ser concluído e exportado em um país não significa necessariamente que as firmas domésticas desse país estejam dominando as CGV e adicionando um grande percentual do valor total desse produto. Isso foi evidenciado, por exemplo, no caso clássico dos iPods/iPhones, já mencionado anteriormente, que, são finalizados na China mas é a Apple, cuja matriz está nos Estados Unidos, quem gere toda a cadeia de produção (DEDRICK et al., 2008).

Sobre isso, Lall (2000) aponta que aumentos na participação de setores de alta tecnologia nas exportações de países em desenvolvimento pode ser apenas uma espécie de “ilusão estatística”, já que tais países tendem a se especializar em setores intensivos em trabalho dentro das indústrias intensivas em tecnologia. Em outros termos, as exportações brutas de um país podem dar uma noção pouco precisa sob o real grau de intensidade tecnológica em um contexto de fragmentação produtiva internacional, já que um país que apresente elevada participação de setores de alta tecnologia em sua pauta de exportação não necessariamente está desenvolvendo as atividades de alta tecnologia do processo produtivo desses setores.

Portanto, emerge-se uma nova variável associada aos aspectos tecnológicos como determinante para uma melhor ou pior inserção no comércio internacional: a posição na CGV (place in the chain), ou em outros termos, a posição na hierarquia do valor adicionado da cadeia produtiva. Partindo de uma matriz teórica estruturalista e neoschumpeteriana, defendemos que essa nova variável, juntamente com as possibilidades de aprendizagem e mudança tecnológica nas etapas do processo produtivo são fundamentais para o crescimento dos países do ponto de vista tecnológico e estrutural. “Com efeito, a separação do processo produtivo favorece especialmente aos detentores dos ativos intangíveis (P&D, design e concepção, marca, comercialização) na apropriação do valor adicionado, restando para as atividades padronizadas e de menor qualificação uma fração reduzida e submetida a elevada competição” (MEDEIROS, 2010, p. 10).

Considerações

O presente capítulo demonstrou a relevância inquestionável da eclosão e intensificação das novas formas de organização da produção expressas em uma profunda mudança nos fluxos comerciais, cada vez maiores e mais interligados à economia global. A globalização, a fragmentação internacional da produção e o surgimento das CGV são processos que caminham juntos e que advém das mesmas fontes propulsoras: as transformações no paradigma tecnológico ditadas pela introdução de inovações ao longo do processo produtivo e em

diferentes esferas econômicas, associadas a movimentos de liberalização comercial e de industrialização conduzida pelas exportações.

Embora historicamente a fragmentação não seja um fenômeno novo, ganhou proporções globais, no sentido de realização de offshoring, somente a partir dos anos 80, quando EMN, especialmente norte-americanas, passaram a migrar para diversos países em desenvolvimento em busca de vantagens locacionais de custos, como mão-de-obra barata. Esse movimento se estendeu, levando a formação de CGV espalhadas de forma assimétrica geograficamente - concentradas substancialmente nas denominadas “Factory North America”, “Factory Europe” e “Factory Asia”. Neste contexto, a China emerge como um grande mercado integrador dessas duas regiões, importando peças, acessórios e componentes de ambos e se tornando um dos maiores exportadores de manufaturas do mundo. Por outro lado, o mercado consumidor chinês em ascensão, passa a demandar um enorme fluxo de commodities, advindos, em grande magnitude, de outro polo geográfico: a América Latina. Em função disso, esses países ficaram à margem das CGV e sua inserção comercial, tanto pelas vias tradicionais quanto via offshoring são pautadas por uma grande concentração de produtos primários com baixo ou nenhum teor de processamento.

Constata-se que os fenômenos aqui estudados têm engendrado uma redefinição do conceito de padrão de especialização comercial que retira o peso da unidade setorial e enfatiza as características qualitativas do posicionamento dos países nas CGV. Essa discussão é particularmente relevante para esta tese, uma vez que tem implicações teóricas e metodológicas na forma de compreender e avaliar os fluxos de comércio.

Com efeito, a ascensão dos fenômenos supracitados e de uma nova variável relevante – place in the chain - confirmam a percepção crescente de que as teorias de comércio internacional e os modelos que o relacionam com o crescimento econômico expressos no capítulo 1, bem como os dados de comércio existentes estão em desacordo com novos padrões de comércio observados. Na maioria absoluta das teorias seminais apresentadas no capítulo anterior, um produto comercializado é inequivocamente definido como um resultado 'final' de um processo integrado, que ocorre em um único país, refletindo, portanto, as suas características. Entretanto, as observações empíricas encontradas pelos diversos grupos de estudos sobre fragmentação e CGV desenvolvidos neste capítulo, ressaltam que cada vez mais esse pressuposto básico dos modelos comerciais tradicionais está sendo violado, imprimindo uma lacuna entre as previsões dos modelos tradicionais e as evidências empíricas.

Entende-se que, nesse contexto, analisar as exportações brutas de produtos finais perde sua validade e impõe um crescente “erro” nas percepções de comércio, dado por uma dupla

contagem, equivalente a insumos intermediários, peças e componentes que, em função das CGV, passam repetidamente pelas fronteiras dos países até seu consumo final. Portanto, uma análise do padrão de especialização comercial de uma economia em bens acabados não se sustenta mais, já que o produto final é “made in the world”. Na mesma lógica, a mensuração da competitividade e das vantagens comparativas dos países pelos moldes tradicionais não são mais adequadas. Essas novas configurações do comércio mudam a maneira como o produto final deve ser considerado, quer em termos de estratégia industrial ou de comércio internacional e levantam questões importantes, sob a perspectiva das CGV, em como o valor adicionado é distribuído ao longo da cadeia.