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Como começamos a escrever o guião?

2. Character Driven Approach

Como o próprio nome indica, se um plot driven approach começa por tipi- ficar e estandardizar o plot, a trama; uma character driven approach co- meça por descobrir as personagens. Aqui, já não principiamos por saber exactamente os passos a dar na nossa narrativa, vamos, isso sim, cons- truir as nossas personagens, vamos descobrir a sua história de vida e, à medida que o fazemos, vamos também descortinando a nossa trama e os caminhos por onde ela nos pode levar. É o caso de filmes como Taxi Driver ou The Reader ou Silence of the Lambs ou Cidade de Deus ou Os Mutantes ou Hable con ella ou Le Scaphandre et le Papillon… São as personagens que movem a história e são as personagens que nos movem. Neste caso, já conseguimos encontrar, sem grande dificuldade, vários exemplos de filmes europeus que se enquadram num character driven approach. Isso não significa que não haja filmes europeus que tenham seguido um plot driven approach, mas são mais raros e, regra geral, na Europa, primeiro é dada importância às personagens, sua coerência e capacidade de mover o público, e depois sim à estrutura que envolve essas personagens.

Há várias formas de começar a pensar em personagens, de desenvol- ver as personagens e de encontrarmos as suas histórias. Normalmente, começamos por uma imagem (como quase tudo em argumento), umas pinceladas fortes que nos dizem o que vemos da personagem e o que é que ela nos mostra sem querer. Depois, temos de ir fazendo perguntas à personagem, temos de a conhecer. É como conhecer uma nova pessoa. Primeiro, olhamos para ela, temos uma ideia visual e externa da perso- nagem; depois, vamos descortinando o verdadeiro self da pessoa, quem ela é por detrás da máscara que mostra ao mundo. Acima de tudo, há três dimensões que devemos contemplar quando construímos uma per- sonagem: Presença Externa; Presença Interna; Contexto.

A Presença Externa, como o próprio nome indica, é o que vemos: que características físicas tem a minha personagem? Não vamos, claro, defi- nir todas as características físicas da personagem, que tem 1,58 metros de altura, pesa 55 quilos, tem o cabelo comprido loiro escuro, quase cas- tanho claro, os olhos verdes com pestanas longas… O objectivo é criar

Ana Sofia Pereira

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uma descrição vívida da personagem, com características apelativas, vi- suais e actuáveis, que dêem ao leitor e ao actor uma noção clara e uma sensação imediata de quem é aquela pessoa. Queremos criar aquilo a que chamamos a Impressão Dominante, a primeira impressão que a persona- gem causa no leitor.

A Presença Interna é o núcleo escondido da personagem, é aquilo que vai tornar a personagem única. Este núcleo da personalidade, construído por valores, atitudes, emoções, temperamento, educação, auto-imagem, medos, inteligência (etc.) é o que vai dar coerência à personagem, o que lhe vai dar vida. Depois de pensarmos na presença interna, no núcleo da personagem, esta deixa de ser um boneco para se tornar numa pessoa. E, como uma pessoa, este núcleo da personagem tem de ser criado a pensar em consistências e em paradoxos porque as pessoas nem sempre são pre- visíveis. Mas, atenção, como nos lembra também Linda Seger (1990), os paradoxos não devem negar as consistências, devem antes acrescentar à consistência da personagem. Com o desenvolvimento da presença inter- na, o objectivo é produzir uma Atitude Dominante, uma personalidade consistente mas com paradoxos, interessante, actuável, e conjugada com a Impressão Dominante.

O Contexto, intrinsecamente ligado à Presença Externa / Impressão Dominante e à Presença Interna / Atitude Dominante, vai estabelecer o mundo em que a personagem vive, as suas relações, a sua cultura, a sua família, a sua história. No fundo, o contexto, vai-nos dar a história de vida da nossa personagem que a vai tornar mais sólida, mais coerente e verosímil. Por outro lado, é também ao contexto, à história de vida, que podemos ir buscar ideias para o desenvolvimento da trama.

Seja qual for a forma ou o processo que usamos para construir per- sonagens (podíamos usar também o modelo de Susan Batson (Batson, 2007) que divide a dimensão das personagens em Public Persona, másca- ra que mostra ao mundo; Need, desejo que move a personagem e Tragic Flaw, potencial destrutivo da personagem), temos sempre de pensar em traços físicos e visuais da personagem, personalidade e atitudes da per- sonagem e história de vida da personagem. E o objectivo último, é sem- pre o mesmo: conhecer as nossas personagens a fundo, fazer-lhes todas

Construir o guião: um castelo de areia que resiste ao vento

as perguntas, até as podermos tratar pelos nomes. Não estamos a criar bonecos, estamos a criar pessoas. São pessoas fictícias, mas são pessoas. E eu sei que a Carla (a minha personagem a quem já não chamo persona- gem, porque a trato pelo nome) é uma aventureira ao estilo de Indiana Jones, mas sem chicote, jovem, destemida e sem medo de se “sujar”. Mas o que os outros não sabem é que a Carla veio de uma família rica onde toda a gente queria que ela fosse pianista. E ela aprendeu a tocar piano, e tocava piano sempre a olhar pela janela, a sonhar com o dia em que poderia sair daquela casa cheia de “múmias clássicas” para explorar o mundo que nunca a deixaram ver. Foi demasiado protegida, por isso, fu- giu da segurança do dinheiro. Mas foge também porque tem medo, tem medo de ser livre porque nunca o foi e continua a precisar de ser prote- gida, mas não o mostra a ninguém.

Queremos então descrições breves, mas vívidas e que dêem profundi- dade, interesse e detalhes que distinguem aquela personagem de todas as outras. É descobrindo estes detalhes, descobrindo a história de vida da nossa “Carla” que vamos descobrir os caminhos da nossa história e que, se escolhermos a character driven approach, conseguiremos começar a pensar na trama do nosso argumento e no nosso castelo de areia.

Portanto, temos de começar a escrever o argumento. E podemos come- çar por pensar no plot ou por pensar nas personagens e cada um destes elementos tem de ser bem trabalhado de acordo com a história que que- remos contar e com a personagem que queremos apresentar ao mundo mas, chegará o momento em que plot e personagens se combinam e em que descobrimos o tema e o verdadeiro caminho que temos a percorrer. Agora temos uma base, a conjugação de plot e personagens, um tema, um caminho a percorrer. Temos então de começar a vestir e a adornar esta base para que se torne realmente num argumento.

Ana Sofia Pereira

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