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O step-outline, como o próprio nome indica, e como nos diz Robert McKee, “is the story told in steps” (1997: 412). Não se chama um scene- -outline porque nem sempre os pontos de um step-outline se referem a uma única cena. O step-outline enuncia então os “eventos”, os passos fundamentais para compreendermos a estrutura da nossa trama. Regra geral está dividido por cenas (o que acontece num determinado espaço e tempo), mas quando temos uma montagem rápida ou quando todo o fil- me (curta ou longa) se passa num mesmo espaço e tempo (mesma cena), então dividimos a trama por momentos ou “eventos”. Tendo em conta que o step-outline só nos vai servir a nós, argumentistas, nunca vai ser lido por mais ninguém, não faz parte do dossier de produção, cada argu- mentista encontra a sua forma de escrever o step-outline. Uns, escrevem o ponto a ponto num papel e depois fazem mapas, setas, estratégias para compreender formas de melhor completar a estrutura do argumento a ser escrito. Outros, escrevem cada ponto do step-outline em papéis distintos, em post-its, e depois vão construindo a história mudando os pontos de sítio, acrescentando alguns momentos, tirando outros, de forma a que a estrutura se torne o mais coesa possível. O processo de escrita do step- outline pode ser caótico, mas a ideia é mesmo essa. Podemos começar pelo caos, podemos testar tudo, podemos tentar tudo, são só pontos, é uma coisa rápida. Mas se tentarmos e testarmos tudo num step-outline, não o teremos de fazer depois no argumento, a hipótese de falha da es- trutura e história torna-se inferior, e já resolvemos problemas que nos surgiriam mais tarde. O step-outline serve para criar o mapa que quere- mos seguir e para ver se esse mapa nos leva onde queremos ir. Se não levar, podemos sempre mudar o caminho; se percebermos entretanto que não era bem para ali que queríamos ir, podemos sempre mudar o cami- nho. Em argumento saber que todos os caminhos são possíveis é liberta- dor mas também constritor. É preciso saber lidar com isso. No step-outli- ne, não devemos ainda restringir caminhos, devemos tentar tudo e ver o que melhor resulta. Muitas vezes, o que resulta, é o que nunca tínhamos pensado antes.

Construir o guião: um castelo de areia que resiste ao vento

Ok, já o compreendemos, o step-outline é um ponto a ponto da trama que nos ajuda a entender a estrutura e base do plot. É o segundo gran- de teste da nossa história para ver como e se resulta em argumento. Mas como desenvolvemos um step-outline? Primeiro, o step-outline deve ser cla- ro, simples e directo de ler. Num ponto a ponto, numa esquemática em es- caleta, desenvolvemos a estrutura da trama para ver o que resulta ou não. Segundo, cada um destes pontos não deve ultrapassar uma ou duas frases curtas onde estipulamos quem?, onde?, o quê? (não obrigatoriamente nes- ta ordem). Como podemos ver no exemplo da Figura 2, queremos olhar para cada ponto e perceber rapidamente o que se passa e não perdermo-nos em pormenores que não nos ajudam a completar a viagem. Terceiro, cada pon- to do step-outline tem de servir a história, tem de fazer avançar a história e a acção de alguma forma. Se isso não acontece, corta-se!

O step-outline, repetimos, serve para compreender o funcionamento da estrutura do argumento, a viagem; se um ponto não nos leva a lado

Ana Sofia Pereira

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nenhum, se estamos parados a adornar a viagem, cortamos! Esta é das lições mais difíceis de aprender em argumento. Escrever argumentos é aprender a cortar: palavras, figuras de estilo, momentos, personagens. E essa é uma aprendizagem dolorosa.

O Tratamento

Quando chegamos à fase de escrever um tratamento, estamos já mui- to perto de escrever o argumento. É a altura de começar a completar os pontos do step-outline para começarmos a compreender, não só, se a estrutura funciona, mas se a trama, se o “sumo” da história, se as per- sonagens, se o género, se o estilo, estão a resultar. O que é então um tratamento? Podemos falar de dois tipos de tratamento: o Tratamento de Apresentação (a ser lido por produtoras e realizadores para captar o in- teresse) e o Draft Treatment que é usado como processo de escrita para o desenvolvimento da ideia. Esta distinção é mais usada nos Estados Uni- dos onde, muitas vezes, as produtoras lêem o Tratamento de Apresenta- ção antes de ler o Argumento. Neste capítulo, como estamos a falar nas fases de escrita de um argumento, vamos focar-nos no Draft Treatment, o Tratamento que desenvolvemos antes de começar a escrever o guião. Tendo isso em mente, o que é então um tratamento? É o último grande teste da nossa história antes de ser passada para argumento. Um trata- mento é uma preparação mais ou menos detalhada da ideia ou da histó- ria. Segue a estrutura da narrativa e reflecte o step-outline desenvolven- do-o. As acções são escritas de forma mais minuciosa, sempre divididas por cenas (o que acontece no mesmo espaço e no mesmo tempo) e no presente do indicativo. O tratamento centra-se já, não só na estrutura, mas no enredo, no que é fundamental para compreender as motivações, histórias e / ou questões centrais e temas. Desta feita, o tratamento deverá deixar absolutamente claro: as impressões dominantes e as mo- tivações de todas as personagens principais, as suas viagens internas e externas ao longo da trama; todas as cenas dramáticas principais e sua resolução; o sentido de tempo e duração da história; o estabelecer

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dos espaços; um sentido forte do argumento e seu impacto dramático; um sentido do estilo da narrativa; o tipo de experiência que podemos esperar ter através do argumento e do filme. É no tratamento que nós começamos efectivamente a ver se o argumento (não só a trama, a his- tória, as personagens, o género, o estilo, o tom, a estrutura, o tema, mas a conjugação de tudo isso em formato de argumento) tem potencial para resultar ou não. Muitas vezes dizemos, para facilitar, que o tratamento é um “best off” do argumento — é escrito como um argumento, mas ain- da sem diálogos (a não ser que sejam absolutamente fundamentais para compreender um momento) e apenas com as descrições necessárias para entrarmos na cena e começarmos a construir o mundo.

Agora que compreendemos o que é um tratamento, os passos para o seu desenvolvimento, como é que o começamos? Como escrevemos um tratamento em seis passos rápidos?

1. Começamos pela estrutura, pelo step-outline, e começamos por di- vidir os momentos, os “eventos”, por cenas (se ainda não o estão). 2. Depois de termos toda a estrutura dividida por cenas, temos de identificar os elementos emocionais na história e no step-outline e as cenas em que estes se desenvolvem. Escrevemos essas cenas. 3. Devemos desenvolver e “vestir” primeiro a cena inicial. Qual é

que é a primeira coisa que eu quero que o meu público veja? Qual é o primeiro som? Qual é a primeira fala? A primeira piada? Cons- truímos a primeira cena e, com ela, estabelecemos o tom, o géne- ro, o estilo do tratamento e a premissa.

4. Descrevemos as personagens na forma mais original e distinta possível… mas de forma breve. Queremos que as personagens vi- vam na mente de quem lê, que ganhem forma e que queiramos acompanhar estas personagens.

5. Então, escrevemos e desenvolvemos o tratamento, cena por cena, no presente do indicativo, usando um estilo activo e não explica- tivo, dando ênfase às motivações e maiores pontos de viragem da narrativa.

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6. Como em tudo em argumento, a reescrita é fundamental. Depois de escrita uma primeira versão temos de voltar atrás e de: reescrever para que tudo fique claro, reescrever para que tudo seja visual, rees- crever para garantir que a história faz sentido, reescrever para que as personagens se encaixem na história, reescrever para garantir que o tratamento nos deixa com vontade de saber e de ler ainda mais…

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E com isto, em seis passos simples (parece tão simples, não parece?), temos um tratamento. Em termos formais, um tratamento é já semelhan- te ao argumento, como podemos ver na Figura 3. Pode ter já a slug-line, ou não, mas tem de identificar de forma clara cada cena e é escrito no pre- sente do indicativo em Courrier New tamanho 12, espaçamento simples.

Temos agora uma sinopse de produção, um step-outline, um tratamen- to, tudo do mais genial que alguma vez foi feito… E agora? Agora, é “só” escrever o argumento.

O Argumento

Escrever um argumento bem formatado é simples. É só pegar num CeltX, num Final Draft e escrever… Escrever um bom argumento, coerente, in- teressante, diferente e com personalidade… isso já é outra história. Se é certo, como já repetimos até quase à exaustão, que não há fórmulas mágicas para escrever argumentos, passar pelas fases de construção da história, da sinopse de produção ao step-outline ao tratamento, ajuda a testar o argumento e a chegar à fase de escrita com mais segurança. Este processo contribui, em princípio, para que conheçamos a história do início ao fim e virada do avesso. Já pensámos em todas as alterna- tivas possíveis, em todos os princípios, em todos os meios, em todos os fins... Sabemos o que queremos fazer, como queremos fazer e com que objectivo. Agora que temos toda a trama bem definida e identificada, é altura de passarmos para os pormenores, aquilo que pode fazer com que um argumento seja memorável.

Começamos então a escrever o argumento, seguindo o tratamento, mui- tas vezes por cima do tratamento. Sabemos onde começa e termina cada cena, cada sequência, cada momento. Sabemos qual o objectivo de cada cena, sequência e momento. E sabemos que, se no argumento, esta cena, esta sequência, este momento, perdeu o objectivo, perdeu a força, perdeu a sua função, é altura de cortar. E continuamos a escrever e a cortar, com a noção clara de que escrever um argumento é escrever para ser visto e para ser ouvido. Escrevemos para potenciar imagens e sons na mente de

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quem lê, para criar momentos e mundos na mente de quem lê. Escrevemos e em cada cena conhecemos melhor as nossas personagens e damos a co- nhecer melhor as nossas personagens. Como já conhecemos a Carla a fun- do sabemos como melhor a aproveitar em cada momento, como a revelar em sons, imagens, reacções, acções, diálogos... E continuamos a escrever e a cortar, sabendo que escrever argumentos é também errar, rever, rees- crever. É difícil, em argumento, aprender a cortar, mas é ainda mais difícil aprender a errar, a voltar atrás, a refazer e a não bloquear. Nunca nos de- vemos satisfazer com a primeira versão do nosso argumento. Repito: nun- ca nos devemos satisfazer com a primeira versão do nosso argumento. E chegamos a uma primeira versão do argumento.

Quando escrevemos um argumento estamos muito focados em re- gras, em fórmulas de “how to”, mas às vezes, como o diz também Denny Martin Flinn (1999), é mais importante saber o que não fazer do que como fazer. Às vezes, aprendemos melhor com os erros por isso, vamos apresentar dez dos erros mais comuns na escrita de argumento para sa- bermos bem o que não fazer:

1. Formatação Errada da Slug-line ou uso indevido da Slug-line. A Slug-line existe para nos identificar de forma clara: INT./EXT. ESPAÇO – DIA/NOITE. Quando muda o tempo ou o espaço, temos uma nova Slug-line. E a formatação correcta de uma Slug-line faz toda a diferença para a clareza de um argumento e da sua percep- ção e leitura.

2. Descrição das Personagens excessivamente detalhada. Às vezes, temos tanta vontade de criar a impressão dominante, de dar a conhecer a nossa personagem, que nos entusiasmamos e escreve- mos uma “lista telefónica” de características e detalhes da perso- nagem que não nos ajudam a percebê-la melhor, mas que, antes de mais, contribuem para que percamos o interesse pela persona- gem. As descrições têm de ser vívidas, interessantes e curtas. 3. Demasiada informação na descrição ou informação insuficiente

na descrição de cenas. Em argumento, nem sempre é fácil medir até onde é que devemos escrever, onde é que devemos parar. Não

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queremos nem escrever telegramas, nem epopeias, mas queremos de forma interessante, com personalidade e estilo próprio, trans- mitir o teor, o objectivo, a sensação visual e sonora de cada cena. 4. Escrever o que não pode ser visto ou ouvido. Um argumento, não nos cansamos de repetir, é um documento escrito para ser visto e ouvido. Quando explicamos, quando descrevemos o que as perso- nagens pensam ou sonham, quando deixamos de mostrar, quebra- mos esse mundo invisível que estamos a criar na mente de quem lê. E quebrando essa barreira imaginária, perdemos o interesse de quem lê, perdemos a magia.

5. Tentar realizar, produzir, orientar os actores na página do argu- mento ao indicar planos de filmagens, cortes, músicas... Não es- tamos a escrever um shooting script. Estamos a escrever, acima de tudo, um documento que depois vai ser completo por outros pro- fissionais da área: actores, realizadores, produtores, aderecistas, técnicos de som... Não queremos entrar no campo de ninguém, como não queremos que ninguém nos venha dizer como escrever o argumento. Less, is more! É preciso concentrar-mo-nos na histó- ria, não na parte técnica do filme.

6. Nomes das personagens pouco consistentes, confusos e variáveis. Num argumento temos sempre de saber de forma clara quem está a fazer o quê onde. Há que lembrar que o objectivo último do ar- gumento é ser filmado, cada cena tem de ser clara para que a pre- paração das filmagens seja rápida e eficaz. Se confundimos perso- nagens, se lhes damos nomes diferentes, se as escondemos, vamos ter muito mais trabalho na produção.

7. Exposição sem qualquer objectivo ou sentido, só para “despachar” a parte da explicação. Há momentos no filme em que vamos ter de expor a história, em que vamos ter de explicar. Não há como fu- gir a isso, a não ser que o filme não tenha história... Mas, a forma como fazemos essas exposição tem de ser bem pensada, enqua- drada no estilo, género, tom e história do argumento, e de forma a passar quase despercebida. Não podemos só “despachar” toda a informação num diálogo, por exemplo... E por falar em diálogos...

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8. Maus diálogos. Que ninguém vos engane, escrever diálogos em ar- gumento é difícil. Pôr cada personagem a falar com a sua própria voz, é difícil. Escrever de uma forma natural e orgânica que vá soar bem lido, é difícil. Mas temos de o fazer. Não podemos reduzir-nos e contentar-nos com diálogos “on the nose”, sem objectivo, exces- sivo, demasiado longo e expositivo, sem tempos de reacção, só com respostas verbais, igual para todas as personagens, diálogos cliché... Temos de fugir de maus diálogos, lembrar que ao diálogo nem sempre se responde com diálogo, que nem todas as perguntas têm respos- tas, que nem todas as respostas correspondem a perguntas, que nem sempre as personagens estão a falar da mesma coisa, que há desen- tendimentos, que o diálogo não é linear e um bate bola sem cessar. 9. Personagens e protagonistas passivos. No início deste capítulo falá-

vamos que podíamos começar por um plot driven approach ou por uma character driven approach. Seja qual for a forma como começa- mos, temos de ter a noção de que as coisas não podem acontecer às personagens que, passivamente, deixam que a acção aconteça. As personagens movem a acção, não podem ser passivas.

10. Pequenas inconsistências na trama, no desenvolvimento de cenas e personagens. Quando escrevemos um argumento é normal che- garmos a um ponto de cansaço, a um ponto em que já não conse- guimos resolver mais problemas e em que até há coisas que não batem exactamente certo mas, pensamos, ninguém nunca vai re- parar. Toda a gente vai reparar! O produtor, os investidores, os ac- tores, o público... Escrever um bom argumento está nos detalhes, está nos pormenores.

Fomos então, ao longo deste capítulo, descobrindo ferramentas, re- gras, fases de escrita até chegarmos ao argumento e aos erros de escrita de um argumento. De forma esquemática, podemos então resumir o pro- cesso de escrita de um argumento ao Diagrama 1, uma esquemática cir- cular, que pode ser interminável.

Falta-nos agora apenas questionar, de uma forma muito breve: este processo de escrita, é igual para curtas, longas ou séries?

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