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A palavra género vem do francês e originariamente do latim (genus, ge- neris) e significa tipo ou classe. Em argumento, no cinema, na televisão, esta palavra identifica uma tipologia ou classificação que define conjun- tos de padrões, ambientes e / ou combinações de elementos narrativos, utilizados de forma aproximada por diferentes filmes, séries, curtas-me- tragens ou guiões, que ajudam o público e o criador da obra a interpre- tar e identificar um determinado trabalho audiovisual. O género serve então para ajudar o criador a estipular o seu público-alvo e para ajudar o público a enquadrar as suas expectativas de acordo com um padrão nar- rativo mais ou menos estandardizado.

Ainda que o género seja a combinação de padrões estandardizados e rapidamente identificáveis, não é fácil definir quantos géneros existem, até porque estes são mutáveis ao longo do tempo. Podemos falar em: acção, comédia, terror, animação, biografia, mistério, romance, thriller, policial, ficção-científica, histórico, guerra, épico, western, espionagem, fantasia… mas seria impossível completar esta lista infindável de géne- ros. Podemos, isso sim, pensar em como conseguimos definir e identifi- car os géneros de forma a aprendermos a trabalhar com eles.

Como nos diz Philip Parker (1999), podemos identificar dois elemen- tos que nos ajudam a definir os géneros: os elementos primários e os elementos secundários. Os elementos primários, como o próprio nome indica, são elementos facilmente identificáveis pelo público, que ofere- cem pontos de referência conhecidos que permitem à audiência identi- ficar rapidamente o género e, a partir daí, centrar-se nas particulari- dades e especificidades da narrativa. Os elementos primários são então elementos que, à priori, separam um determinado género de outro, nos dizem que este argumento é um romance e não um thriller, por exemplo. Os elementos secundários vão permitir, combinados com os elementos primários, a definição de variações de determinado género de filme. Ou seja, combinando um elemento secundário com um primário, consegui- mos definir os parâmetros para um tipo específico de romance, thriller, etc. É daqui que surgem os géneros híbridos — comédia dramática, co-

Construir o guião: um castelo de areia que resiste ao vento

média de acção, thriller de terror, thriller romântico… Os elementos se- cundários ajudam a diferenciar uma narrativa da outra dentro de grupos de géneros específicos, identificados através dos elementos primários.

Portanto, parece simples: os elementos primários ajudam o criador e o público a ajustar rapidamente as expectativas e a compreender que gé- nero têm à frente: romance, comédia, thriller; os elementos secundários, combinados com os elementos primários, vão dar uma especificidade a um determinado género e conferir-lhe uma diferenciação e um nicho mais efectivo. Simples de compreender, mas mais difícil de aplicar quan- do trabalhamos com géneros. Quando escolhemos um determinado géne- ro para um filme, para uma curta, para uma série, há que ter em atenção e medir sempre dois factores:

1. A que cultura é que nos queremos dirigir com esta obra? Culturas diferentes vão reagir de forma distinta a géneros diferentes. Há que ter em atenção as experiências partilhadas e as tradições cul- turais específicas que vão permitir compreender e estabelecer os géneros que funcionam melhor para determinada cultura, país ou localidade.

2. O que é que a nossa história nos pede? O que é que o tema, o plot, as personagens que construímos nos estão a pedir? O género aju- da a completar e a vestir a nossa ideia e a nossa história, daí que o casamento entre género / história / personagens, tenha de ser feliz. Se pensarmos no género, no plot, nas personagens de forma separada e depois tentarmos construir o puzzle, o mais provável é que as peças não vão encaixar. Temos de pensar no conjunto como um todo, e não nas suas partes separadas.

Quando lidamos com géneros, temos de compreender as mais valias e limitações que estes nos podem trazer. Se, por um lado, como já vimos, os géneros nos trazem benefícios; por outro, o uso dos géneros pode ser limitativo e constritor. Se, por exemplo, no início da narrativa não con- seguirmos estabelecer rapidamente e de forma clara o género de filme, podemos confundir e mesmo perder o nosso público; se não conseguir-

Ana Sofia Pereira

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mos casar o género com a nossa história e as nossas personagens, se o puzzle não encaixar, o uso do género não vai resultar; se usarmos ape- nas os elementos primários para construir a nossa história dentro de um género, a nossa trama ir-se-á tornar, provavelmente, arquetípica, este- reotipada e muito previsível. Queremos jogar com as expectativas do pú- blico, não gorar as suas expectativas, mas não queremos apenas repetir fórmulas, queremos usar os géneros a nosso favor.

A arte de trabalhar com géneros reside neste jogo de expectativas e padrões narrativos com a nossa própria história e com as nossas perso- nagens. E para completar esta visão — género, história, personagens — temos de adornar este argumento, este conjunto com estilo.

Em todos os argumentos que lemos temos de ouvir a voz do argumen- tista, só isso é que vai dar vida ao argumento. No seu cerne, no seu cor- po, como já fomos vendo, o argumento em si, o formato do argumento, é muito estandardizado, é muito “fechado”, quase matemático, por isso, se no meio dele, se através dele, não conseguirmos sentir a voz do ar- gumentista, ficaremos com um papel escrito sem alma, sem forma clara, que não capta a atenção. Um argumento, não é um telegrama. Por isso mesmo, temos de ir encontrando a nossa voz para esta história, para este género, trama, personagens, no processo de escrita. Se é certo que a personalidade do argumentista vai ser notória no seu tipo de escrita (ou deverá sê-lo), mais do que isso, temos de encontrar a personalidade deste argumento. É preciso fazer escolhas, e essas escolhas devem ser feitas antes de começarmos a escrever o argumento propriamente dito para que tudo seja coerente: que atitude quero adoptar em relação a esta história, personagens e género?; que estilo tem esta minha narrativa?; qual é o tom que quero dar à minha narrativa? cómico? trágico? dramá- tico? de acção?; que personalidade tem este argumento (não eu, como argumentista, este argumento com uma entidade e identidade própria)?. Tomando estas decisões é então altura de adornar a nossa trama e o nos- so argumento com estilo e personalidade.

Se o tom é de facto muito importante e está subjacente ao estilo (te- mos de identificar desde o início como é que queremos que a nossa his- tória seja lida e escrita, com um tom cómico, dramático, trágico, etc.),

Construir o guião: um castelo de areia que resiste ao vento

quando falamos de estilo não estamos apenas a referir-nos a persona- lidade e a uma forma de escrita, estamos também a falar de estilos de narrativa: naturalista, realista, expressionista, surrealista, teatral, fan- tástico, de observação, impressionista4.

É fundamental, quando começamos a desenvolver a nossa ideia, saber o estilo narrativo em que queremos que ela se insira e, mais uma vez, saber jogar com esse estilo narrativo, com o tom, com o género, com a trama e com as personagens. Saber jogar com estes elementos vai abrir- -nos novos caminhos ainda não traçados, despoletar-nos novas ideias que ainda não tínhamos contemplado. É esse o benefício de conhecer- mos a matéria com que vamos trabalhar antes de nos lançarmos no fos- so que é escrever um argumento. Mas, atenção! Tão importante como conhecer o estilo narrativo, é conhecer o estilo da nossa narrativa e da nossa escrita, o tom da nossa narrativa e da nossa escrita, o género da nossa narrativa e da nossa escrita e, no fim de contas, a personalida- de da nossa narrativa e da nossa escrita, do nosso argumento. Vestir o nosso argumento e adorná-lo com um estilo, tom e personalidade, não se resume a escolher um estilo narrativo que encaixe na nossa trama e personagens, implica fazer as escolhas difíceis e escrever dentro dum estilo próprio, com uma personalidade própria, com uma voz que vai ser ouvida mas que não abafa o nosso argumento. E a nossa voz, vai sendo encontrada e definida no processo de escrita do argumento, no caminho até ao nosso argumento final.