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De Chico Rodrigues a Rodrigo Cambará: a malandragem entre a ordem e a desordem

CAPÍTULO 1. SOCIEDADE E LITERATURA: METODOLOGIA, MEMÓRIA E CONTEXTO

2. A DOMINAÇÃO NO CONTINENTE

2.4. De Chico Rodrigues a Rodrigo Cambará: a malandragem entre a ordem e a desordem

É importante ressaltar que os nomes das famílias que Érico Veríssimo coloca como representantes da fundação do Rio Grande fazem alusão ao aspecto natural e apegado ao chão do gaúcho: Terra e Cambará significam aqui tanto o caráter naturalista do homem dos pampas, errante e guerreiro, como também significam o estabelecimento de raízes de um errante inveterado que é Chico Rodrigues: ao decidir deixar de ser chefe de arrieiros e ao se estabelecer como estancieiro, aquele que viria ser ancestral do “certo capitão Rodrigo” adota o nome de Chico Cambará. Vale ressaltar que o radical da palavra Cambará significa, em espanhol, o verbo cambar, que quer dizer “mudar de rumo”, “passar de um lado para outro”. Inserido numa lógica político-estamental herdada da metrópole Portugal, os Cambará são aqueles que, imbuídos da dialética da malandragem se deslocam entre a ordem a desordem social, chegando ao mais alto patamar da sociedade sulista.

A sociedade gaúcha se condicionava à qualidade de coragem pessoal e ousadia em nome da defesa do continente de São Pedro. Ao mesmo tempo, as pessoas dotadas desse tipo de qualidade eram pouco aptas à submissão e à rotina, passando da impetuosidade ao desmando em um passo. A extensão para o sul se deu através de clãs patriarcais e tropeiros paulistas que se afazendaram, aproximaram-se e tomaram grandes pedaços de terra, onde a herança militar e sentimento de nobreza nos atos heróicos intensificaram a formação de um mundo rural de estilo senhorial. Fora isso, era forte a presença do pilheiro e do contrabandista, que apenas passou a ser considerado como “fora-da-lei” depois que se

estabilizaram as relações entre Portugal e Espanha. Tais homens eram essenciais para a manutenção do Continente para garantir a posse da terra de limites de domínio português. Tais contrabandistas eram coordenados por um chefe, o único a quem respeitavam.

A personagem de Chico Rodrigues representa um desses chefes de bando que se apossava das terras do Continente do Rio Grande, fenômeno típico nos primeiros séculos de colonização do Continente:

“E nos anos que se seguiram não houve quem não conhecesse no Continente de São Pedro a fama de um tal Chico Rodrigues, chefe dum bando de arrieiros, e que não respeitava a propriedade de El Rei. Apossava-se de terras sem requerer cartas de sesmaria, assaltava tropas, roubava gado (...) quando alguém num povoado ou estância bradava : aí vem Chico Rodrigues! a gritaria começava, as mulheres fugiam para o mato, os homens pegavam nas espingardas, era um deus- nos-acuda. (...) E de homens como ele havia centenas e centenas. As patas de seus cavalos, suas armas e seus peitos iam empurrando as linhas divisórias do Continente do rio Grande de São Pedro89.

Chico Rodrigues representa o tipo original de homens que se apossavam de terrenos e que, posteriormente, tornaram-se estancieiros. Com sua personagem também se apresenta a questão da mestiçagem: Chico Rodrigues ao se casar com Maria Rita, uma açoriana, dá origem àquele que seria outro tronco determinante do romance: a família Cambará. Tais homens, evidenciados na figura de Chico se enquadram no conceito formulado por Antonio Candido sobre a dialética da malandragem, já enunciada aqui quando tratado o significado literal da palavra Cambará. No artigo-resposta escrito por Roberto Schwarz90, a idéia de

89

VERÍSSIMO, Érico. O Continente. São Paulo: Círculo do Livro, 1982, pp. 64-65. 90

SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “A Dialética da malandragem” in SCHWARZ, Roberto. Que Horas São?Op. Cit.

Candido é complementada. Este, enquanto elabora sua tese de redução estrutural e

dialética da ordem e da desordem, adota como base de análise o romance Memórias de um Sargento de Milícias, classificando a personagem principal, Leonardo, como um ser

inserido na dialética da malandragem. Ao enfocar mais abertamente que tal dialética significa um modo de viver para aqueles que não pertencem nem à classe dominante, nem à classe escravizada, Schwarz traz à luz que o romance de Manoel A. de Almeida destaca justamente essa classe intermediária, e o que serve de base para que a abordagem se assemelhe à realidade é justamente a redução estrutural, aonde vem se configurar o

princípio da ordem e da desordem. Tal princípio organiza os dados reais e os dados do

imaginário, ou seja, clarifica como a generalidade social abordada participa tanto da realidade quanto da ficção. O sentimento de realidade depende de princípios mediadores ocultos que tornam coerentes as duas linhas, ou seja, a redução estrutural.

A dialética então serve para suspender conflitos históricos através de uma sobrevivência sem remorsos, configurando o mundo da personagem do malandro como um mundo sem culpa. A vantagem que se tem através da análise feita tendo como ponto de partida as linhas da ordem e da desordem é a superação da incompatibilidade entre o interno e o externo da obra de ficção, determinando o lugar da ficção na realidade e vice- versa: “A dialética da ordem e da desordem resume a regra de vida de um setor capital da sociedade brasileira: o dos homens livres quem não sendo escravos nem senhores, viviam num espaço social intermediário e anômico, em que não era possível prescindir da ordem e nem viver dentro dela”91.

A massa que será trabalhada na presente dissertação é justamente a exposta na citação anterior. São os Caré, é Ismália, Sílvia, Zeca, e os demais seres humanos que

91

viviam sob o domínio translúcido dos Cambará, e que, na figura de Chico Rodrigues, encontram eu primeiro representante. Muito embora Chico Rodrigues e seu descendente mais ilustre, Rodrigo Cambará, não sejam personagens urbanas como o Leonardo criado por Manoel A. de Almeida, eles se constituem como a figura do malandro, que, não inseridos na ordem nem na desordem caracterizadas pela realidade social contextualizada historicamente, vivem num mundo sem culpa, configurando-se apesar de todos seus pecados, em personagens acima de tudo carismáticas. Localizando-se entre a ordem e a desordem e não pertencendo nem ao lado dos proprietários nem ao lado dos escravos, a

redução estrutural posiciona Chico Rodrigues e Rodrigo Cambará (que historicamente são

aquelas pessoas que nada tinham de seu) para se configurarem como parte do estamento político da sociedade na personificação do malandro. Vivem e se deslocam num mundo sem culpa, e com a ajuda de atributos como o carisma, a beleza física e o senso de igualdade entre os homens (associados, no caso de Rodrigo, a preguiça típica do malandro brasileiro), fincam um lugar de destaque na história contada por Érico Veríssimo. É o ímpeto e carisma sem limites de Rodrigo, que associados à coragem quase petulante de sua esposa Bibiana que lançam as sementes da ascensão social da família Terra-Cambará.

Ao se aclimatar e absorver a cultura do tempo, mesmo quando se trata de assuntos situados em épocas remotas, Veríssimo conta com maestria os 200 anos de história do Rio Grande, contextualizando historicamente as personagens e ações das mesmas, onde o núcleo de dominação pessoal não passa despercebido, sendo esta contradição remediada pela convivência dos favorecidos com os agregados, dependentes dos primeiros. Herança de um sistema já existente na metrópole lusitana, desenvolve-se no Brasil uma ideologia familista de sistema paternal que engendra escravos, dependentes, afilhados e aliados. O

favor social se encontra no topo da estrutura social brasileira, principalmente no que tange à classe agrícola, o que é enfatizado na presente análise de O Tempo e o Vento.