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CAPÍTULO 3 – O RETRATO DO PATRIARCA

3.4. O Retrato que desbota

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VERÍSSIMO, Érico. O Retrato. Op. Cit, p. 39. 136

Objeto de desejo do insaciável Rodrigo, as mulheres têm lugar de destaque na análise que se faz do abuso de poder e alienação de vontades alheias. A figura feminina se releva em O Tempo e o Vento: são caladas e fortes, resignadas e sábias quando analisamos as que pertencem à história do Sobrado, como Ana Terra, Bibiana, Maria Valéria, Flora ou Sílvia; e objeto do desejo e da vontade desmedida daqueles que mandam quando tratamos de Ismália Caré (já analisada em um contraponto feito com a personagem de Licurgo Cambará), a prostituta Anaurelina, a musicista austríaca Toni Weber ou Ondina Caré.

O caso da mulata Anaurelina é um dos primeiros que ilustram as páginas de O

Retrato. Desvirginada por Rodrigo quando a mãe desta havia pedido que ela fosse até o

consultório do doutor para lhe limpar o soalho, quando relata o acontecido, a personagem não demonstra rancor por ter sido “posta na vida” e se tornado prostituta, nem tampouco contesta o fato como sendo uma forma de abuso por parte de Rodrigo; pelo contrário: diz que o único receio era de “pegar filho”137, e completa:

“(...) Se o Dr. Rodrigo não tivesse me botado na vida eu decerto hoje era cozinheira duma dessas grã-finas como minha mãe foi, ou então tinha casado com um diabo qualquer e no fim ainda por cima tinha de trabalhar para sustentar ele. (...) mas uma coisa eu garanto, nunca estive com um homem que chegasse aos pés do Dr. Rodrigo”. 138

Se o autor do feito tivesse sido um peão do Angico ou um morador do Purgatório, será que Anaurelina julgaria a situação da mesma forma? Até que ponto o poder, a beleza e o prestígio social de Rodrigo colaboraram para que a prostituta considerasse o fato de ter sido por ele desvirginada quase um acontecimento honroso, constituindo um exemplo de total

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VERÍSSIMO, Érico. O Retrato. Op. Cit, p. 27. 138

alienação de sua vontade a favor da vontade do outro, no caso Rodrigo? A violência que o fenômeno sociológico da dominação pessoal representa é bem descrita no caso desta personagem. Enquanto Rodrigo, por ser homem e portador de status social sai, assim como das outras situações semelhantes sem ônus algum, ainda é elogiado por Anaurelina, que diz que jamais conheceu homem que chegasse aos pés do Dr. Rodrigo.

O caso de Ondina Caré relembra a relação de seu pai com Ismália, com a diferença de que o rapaz não dá continuidade aos encontros nem se envolve pessoalmente na relação. Ondina, que também pertence à família dos Caré, se deixa levar por Rodrigo, que temia que a moça fosse virgem. Porém, Ondina também cedia aos folguedos do irmão, e Rodrigo, assim como Toríbio, como donos do Angico se viam no direito de usufruir de tudo que ali pertencia e, dessa forma, usavam as mulheres ao seu bel prazer.

Embora tivessem os filhos de Licurgo criados à sombra do ideal de honra que fora o bisavô Rodrigo Cambará, homem justo, guerreiro, sempre em prol dos menos favorecidos, a inexistência da distancia social que é forjada pela convivência entre iguais entre Toríbio e seus peões no Angico é desmascarada em afirmações pela personagem feita como “acho que os Carés nem sabem o que é honra”.139 Imbuído de sua formação (já mencionada) Iluminista, Rodrigo chega a discursar sobre a injustiça de ser a moral de uma jovem branca e rica mais valiosa que “de uma coitadinha como a Ondina”.140 Todo seu ideal de igualdade, porém, esbarra na seguinte reflexão: “(...) Era-lhe friamente desagradável a idéia de que o sangue dos Cambarás, senhores do Sobrado e do Angico, pudesse misturar-se com o dos Carés”141. Ora, não seriam também os Cambará uma família que se formou através da

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VERÍSSIMO, Érico. O Retrato. Op. Cit, p.176 140

Ibidem. 141

herança da miscigenação? E onde se localiza agora a idéia da “democracia santafezense”, tão enfatizada os discursos tecidos entre os intelectuais freqüentadores do Sobrado? E, apesar de todo o remorso e consciência de que se fazia sim, diferença entre a honra de uma jovem rica e de uma agregada do Angico, os encontros continuaram, e, quando Ondina servia seu almoço, ele nem sequer percebia a presença da moça na cozinha. Sabendo que Ondina tinha outros amantes dentro do Angico, entre eles seu irmão, Toribio, Rodrigo reflete: “Pelo menos agora estou livre de todo o remorso, isento de qualquer responsabilidade”142. Tal reflexão fundamenta outra feita pela escrava Laurinda, antiga escrava dos Cambará que se tornou uma agregada que presta serviços no Angico de que “sina de Caré fêmea é dormir com Cambará macho” 143.

Na análise proposta, acredita-se que o caso de Toni Weber seja o mais emblemático por determinar o início da decadência moral e social de Rodrigo Terra Cambará. “A sombra do anjo”, que não por acaso intitula um dos capítulos de O Retrato, vai ofuscar o brilho de Rodrigo, uma vez que o escândalo do envolvimento do dono do Sobrado com a jovem musicista austríaca teve repercussão por toda Santa Fé.

Logo em que entram em cena os componentes da família Weber, fica evidente que os favores que Rodrigo presta a essa família são puramente interessados na caçula, Antonia. Um grande amante das artes, o dono do Sobrado justificava o auxílio prestado à família de músicos como um incentivo a vida cultural de Santa Fé. O interesse oculto estaria na conquista de Toni, empenho bem sucedido que culmina na gravidez e suicídio da moça. Tomado de todos os recursos que brotaram de sua ascendência social, Rodrigo tenta de todas as formas solucionar a situação de maneira que sua família nada saiba e que seu status

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VERÍSSIMO, Érico. O Retrato. Op. Cit, p. 183. 143

social mantenha-se intato. Num arranjo, consegue um noivo para Toni, que se suicida logo em seguida:

“Como para redimir-se de tamanha vileza, pensou num recurso corajoso: procurar Herr e Frau Weber, contar-lhes tudo honestamente sem omitir nenhum detalhe, e depois dizer-lhes: ‘Agora façam o que entenderem: me processem, me denunciem, me matem...’ Talvez – tornou a insinuara voz cínica – talvez o maestro e sua Frau te peçam uma indenização para irem-se de Santa Fé com toda a família sem fazer escândalo...”144

Ao utilizar no caso de Toni a metáfora da andorinha sacrificada, Rodrigo entende que, ao ser responsável pela morte da musicista, perde um pouco de seu viço pessoal e social. O retrato emoldurado na sala principal do Sobrado começa a perder a sua cor e a não mais ressoar na figura do senhor do Sobrado e do Angico. A deixa que o episódio confere à obra inaugura um novo ciclo, onde o tempo e o vento serão responsáveis pela oxidação da união da família Cambará, fragmentando vidas e destinos que entram em consonância com o novo momento histórico que a história presencia: de modernização, urbanização e desapego às tradições.

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