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A ciência social e a compreensão da sociedade administrada e suas contradições: crítica a sociologia positivista de Auguste Comte

4 A DIALÉTICA NEGATIVA ENQUANTO MÉTODO DE UMA EDUCAÇÃO PARA EMANCIPAÇÃO

4.2 A ciência social e a compreensão da sociedade administrada e suas contradições: crítica a sociologia positivista de Auguste Comte

A sociedade pós-revolução burguesa precisa ser pensada e analisada sob a luz da razão e não mais pela lógica católico-cristã medieval, uma vez que, os paradigmas que outrora guiavam e controlavam a situação vigente haviam ruído juntamente com os déspotas “ditos” esclarecidos e o modelo mercantilista econômico. O liberalismo econômico dava seus primeiros passos e a sociedade dava sinais inequívocos de mudanças radicais. Nesse contexto a sociologia de August Comte surge com a promessa de solucionar à maneira científica e especializada os problemas sociais advindos com a ascensão do plano burguês.

A sociologia proposta por Comte continha, muito claramente, o ideal do conhecimento das ciências da natureza e nelas se espelhava, posto que um dos seus grandes motivos para tal era justamente o fato de que a ciência social, por ele proposta, ainda carecia da absoluta fiabilidade e transparência racional, de que gozavam as ciências da natureza e, portanto tal carência precisava ser sanada urgentemente.

Segundo Adorno (1993, p.17), a pretensão de Comte não parava por aí, o filósofo e agora “pai da sociologia” pretendia ainda que “a sociologia, para lá da pesquisa de sectores individuais, de problemas teóricos-práticos singulares, ainda fornecesse como que instruções para a correta disposição da sociedade.”

A Sociologia, tal qual a história nos legou, sempre teve algo de mecânico, tecnocrático, algo oriundo dos modelos científicos dos especialistas e a promessa de que seus estudos matematizados, hão de conduzir o objeto em questão – a sociedade - a um estado de equilíbrio e estabilidade, segundo Adorno (1993, p.23), “um estado funcional [...] no qual se conserve, mediante alargamentos e melhoramentos, o sistema existente, através do controle da sociedade, aberto ou indireto, que lhes é confiado” e confiável.

um lado, e por outro, a exemplo de Hegel, com a plena convicção de que a sociedade civil o vencera Comte irá, assim como Hegel, postular categorias a serem absolutizadas, a saber: seus princípios antagônicos como ordem e progresso, ou utilizando os termos técnicos de sua sociologia, o princípio estático e o princípio dinâmico, livrando-se assim das contradições inerentes ao objeto no plano concreto e real para, a partir daí, buscar solucionar os problemas sociais através dos conceitos puros, alcançados por meio de evoluções dialéticas puramente abstratas.

À medida que Comte vai erigindo sua sociologia subtraindo-se do plano real e concreto a caminho das especulações abstratas Adorno 1993, p.23-24) aponta para o fato de que:

Comte apesar do seu muito apregoado positivismo, foi inteiramente idealista, posto que sua construção histórica e social foi, de uma ponta à outra, uma construção do espírito dominante, ou seja, do espírito teológico, metafísico, científico, deixando de lado as forças sociais reais que sob ele jazem.

Em outras palavras, ao postular à sociedade categorias intrínsecas como a ordem, ou o princípio estático, e o progresso, ou o princípio dinâmico, Comte pretende, - consciente ou inconscientemente, sob forte influencia hegeliana, mesmo que disto não tivesse consciência, o próprio Comte (apud ADORNO, 1993) engessar o desenvolvimento social para muito além do que ele chamou de ordem, chegando mesmo a estabelecer limites para o dinamismo social, uma vez que mesmo esse progresso dinâmico da sociedade se circunscreveria dentro de condições únicas e cientificamente predeterminadas, tais como a indústria e a técnica, pois mesmo que o desenvolvimento tecnológico de seu tempo não lhe permitisse chegar a tanto, toda a sua sociologia positivista aponta para uma tecnocracia.

Tomando ainda a Ciência Social como uma ciência capaz de compreender as nuances e contradições da realidade objetiva, mesmo sob as condições acima demonstradas pelo sistema positivista comteano, por exemplo, admitamos que haja uma outra perspectiva que atribua a sociologia um duplo caráter, posto que enquanto busca tratar da sociedade e suas infinitas variáveis oriundas da própria condição do ser humano, fato que a

torna em tudo diferente das ciências naturais e exatas, faz da técnica, que tem por base o cálculo e a medida, em geral, sua categoria fundamental.

Nesse ponto, o próprio Marx (apud ADORNO, 1993. P.24), toma a técnica como raiz para a doutrina das forças produtivas, uma vez que “por ela se distinguiu ele essencialmente da economia nacional clássica onde, em rigor, não existe uma tal doutrina das forças produtivas.”

Ainda com Adorno (1993, p.24):

[...] até em Marx, o qual se opôs de modo extremamente crítico e relutante ao que se chamava em geral e, de modo particular, em Comte, sociologia, esta ambivalência estava implícita no fato de partilhar com Saint-Simon, e se quiserdes, com Comte, a fé na técnica e no primado da técnica.

Conforme Adorno (1993), Marx defendia a idéia de que o estado das forças produtivas deveria colocar-se, de qualquer modo, como a categoria fundamental à sociedade, ao passo que, por outro lado, considerou a organização da propriedade de acordo com os meios de produção como fator socialmente determinante.

Mas consoante com Adorno (1993, p.25):

[...] não se faz injustiça a Marx, se se disser que a questão realmente determinante, a saber, se serão as forças produtivas técnicas ou as relações de produção, que esta questão, numa expressão cautelosa, não foi claramente resolvida. Pode-se, sem dúvida, referir-se [...] que de fato, semelhante doutrina do primado absoluto, seja o das forças de produção, seja o das relações de produção, não é realmente possível, antes se modifica, em conformidade com a situação das lutas sociais.

Para Adorno (1993, p.35) é possível que Marx tenha razão ao considerar as forças de produção uma categoria fundamental para o entendimento das relações sociais, mas, apesar disso, ressalta que a situação atual difere do contexto que Marx analisou, de forma que apenas “em virtude dos interesses dos dirigentes, e não obstante toda a chamada sociedade industrial, as relações de produção social detêm a supremacia sobre as forças técnicas.”

A Sociologia como tem se apresentado, a despeito do que em Marx se colocou, foi desde sua origem uma retrospectiva, ou seja, a tentativa de proceder a exemplo do que se fazia nas ciências naturais, como a definição dos objetos a serem analisados e a metodologia a ser aplicada de modo sempre invariável na busca do resultado exato, não compreende as instâncias de mudança e espontaneidade presentes na matéria sociológica. Ao ter a sociedade como objeto de estudo, a des-linearidade que acompanha os movimentos sociais é sempre algo novo e inesperado, obviamente se nos referimos a uma sociedade de indivíduos hipoteticamente esclarecidos.

O que se verifica hoje, na sociedade administrada do capitalismo tardio - à revelia de sujeitos singulares que negativamente teimam em esclarecer-se – é antes uma redução do homem a uma condição extrema de natureza, no sentido puramente biológico de seres vivos condicionados por leis externas invariáveis tal qual uma reação em cadeia, onde o outro, ou o novo, surge sempre como ameaça ao ecossistema social e a própria vida de cada indivíduo.

A Sociologia enquanto ciência que tenha a pretensão de entender a dinâmica social e apontar possíveis soluções ou mesmo entender o que leva a sociedade a se comportar desta ou daquela maneira deveria ser segundo Adorno (1993, p.27), “o exame da sociedade, do essencial da sociedade, o exame do existente, mas num sentido tal que este exame seja crítico.”

No entanto um exame das relações entre os indivíduos em si mesmas, não um exame que já tome o social como algo orgânico e sem contradições, ou seja, homogêneo. Nesse caso não se falaria mais em sujeitos ou indivíduos, mas em um sistema fechado e exato. Uma ciência que tenha como ponto de partida a singularidade e reconheça, mesmo partindo do conflito, a possibilidade do entendimento, sem a negação da identidade dos indivíduos, é o que deve se aproximar de uma ciência social com vistas a possibilidade de saneamento dos problemas sociais.

Para tanto a Sociologia, tal qual Adorno (1993) a entendi, deve tomar partido, acima de tudo, do que, à sociedade, é essencial.

surge como algo generalizante ou generalizado – ao que se chamaria de grandes objetos do estudo sociológico -, pois, segundo Adorno (1993, p.33) “[...] os grandes objetos, como muitos no âmbito espiritual já possuem a impressão digital do pensamento”, o que torna muito difícil, ao seu respeito, alcançar algo realmente primário; o interessante e, definitivamente mais frutífero, seria entender que o essencial reside justamente nos fenômenos, na aparência enquanto ação indeterminada do sujeito, pois que a sociedade se manifesta de forma mais genuína naquilo que emerge dos grandes objetos sociais e que, deles não deveria surgir, não naquilo que pela totalidade social já poderia ser previsto através de mecanismos de controle estatísticos e midiáticos.

Nesse sentido o que acontece com o positivismo é uma inversão no sentido em que para o próprio positivismo o que deveria realmente ser levado em conta, a saber, a práxis social, ou como nos referimos anteriormente, o fenômeno social, é negado e transformado de tal forma que ao tratar daquilo que realmente surge no âmbito social e que merece toda atenção, pela relevância do seu potencial transformador, nada mais é para os positivistas, do que material para qualquer medida no interior das coletas de dados e modelos sociais.

Daí Adorno (1993, p.35) afirmar que “introduz-se assim na sociologia o traço da aplicação de algo já previamente dado, de um debruçar-se sobre si, das tarefas postas de cima para baixo, com um certo jeito administrativo.”

Segundo Adorno (1993, p.35):

Numa perspectiva subjetiva, portanto, sob o ponto de vista do que os próprios sociólogos fazem, esta tendência depende do que se pode designar como ‘funcionarização’ da profissão dos sociólogos. Por aí, o técnico da research, o empregado da research, que deixa que lhe indiquem as tarefas e pode aplicar as tarefas com que se depara os métodos já existentes, entra para a categoria do cientista autônomo, que escolhe as suas abordagens ao abrigo da sua própria experiência, e que, [...] desenvolve individualmente as suas próprias técnicas e métodos.

Seguindo com Adorno (1993, p.36), “se o princípio de que a essência tem de aparecer não se fizer uma rigorosa máxima de autocrítica, então a sociologia teórica corre, de facto, perigo, enleia-se realmente numa

mundividência vazia ou num lugar-comum.”

É importante ressaltar ainda que o próprio Adorno (1993, p.36) recorra a Hegel no tocante a essa questão ao apresentar que:

O princípio de Hegel de que a essência tem de surgir possui o seu sentido pleno também na sociologia, nos seus métodos, na medida em que eles forem válidos para a análise da essência; ou seja, é totalmente leviano e vazio falar de “essência” ou de “leis essenciais da sociedade”, se estas não se tornarem perceptíveis nos fenômenos através da sua própria interpretação, se esta essência não for descortinada nos próprios fenômenos.

A sociologia de acordo com a configuração apresentada por Adorno (1993) corre a priori dois grandes riscos; num primeiro ponto, o de se polarizar num mau sentido, ou seja, de perder-se em especialidades tantas, que não mais possam dar conta de sua tarefa primeira, qual seja, a compreensão do real e suas contradições a partir da própria realidade. Numa segunda possibilidade, a sociologia pode incorrer de maneira indiscriminada em verdades absolutizantes ou em categorias supostamente essenciais.

No entanto, a Sociologia não pode deixar-se emaranhar nas teias da dialética clássica, tal qual em Platão ou mesmo em Hegel, que busca o conceito totalizante acima de tudo e despreza a singularidade do objeto e suas contradições, apoiando-se incontestavelmente num racionalismo abstrato. Antes, o estudo sociológico deve levar em consideração o contexto em que surgem os fenômenos considerando também suas relações e particularidades.

O essencial apontado aqui por Adorno, não consiste em um conceito cristalizado ou em algum tipo de lei postulada pura e simplesmente pela razão independente da realidade concreta.

O essencial, ou o que seriam os essenciais para Adorno (1993, p.37), na tentativa de redirecionar a razão para o que seria o seu propósito maior, a emancipação humana, estariam justamente nas “leis objetivas do movimento da sociedade que decidem o destino dos homens e constituem a sua sina – e é justamente isso que importa mudar”, além do que, ainda acrescenta que, por outro lado, “também é essencial a possibilidade de que as coisas possam

vir a ser diferentes, de que a sociedade deixe de ser uma associação constritiva, onde nos encontramos.”

No entanto a essas leis, que com Adorno tomamos por essenciais e objetivas, são válidas na medida em que se apresentam verdadeiramente nos fenômenos sociais concretos, e não se forem arbitrariamente criadas e impostas como meras deduções derivadas de conceitos puros, mesmo que tais conceitos partam a princípio de fatos sociais.

Para deixar claro o que Adorno (1993, p.37) defende aqui, enquanto objetividade dos fenômenos sociais e quão difícil é percebê-las no âmbito da sociedade administrada da indústria cultural, citemos o exemplo dado pelo próprio autor:

[...] suponde que é uma questão essencial saber se a relação de classes pertence à sociedade contemporânea. [...] a questão ‘há classes ou não?’ é uma questão decisiva em geral para a apreciação da sociedade contemporânea. [...] A consciência de classes é algo secundário, mas é algo que não pode ser produzido, sem mais, através do processo histórico; e através dos fenômenos, descritos pela sociologia academicamente dominante como fenômenos de interação e que por mais discutíveis que sejam, por mais discutíveis que sejam, por mais que contradigam a sagrada religião, são um fato – a consciência de classes diminui tendencialmente, em contraposição ao prognóstico de Marx e à situação de meados do século passado.

Em outras palavras, o que por hora Adorno (1993, p.37) quer demonstrar é que apesar de Marx ter chamado a atenção para o fato de que há no processo de produção e reprodução do capital na sociedade industrializada um mecanismo de reificação dos seres humanos que inevitavelmente por um “desdobramento antagônico da sociedade burguesa” levaria o proletariado a tomada de consciência e consequentemente à revolução do proletariado, demonstra que tal previsão não se confirmou, ao contrário, os trabalhadores são cada vez mais explorados e reificados e, apesar disso, consciente ou inconscientemente afirmam os valores burgueses, mesmo que deles não participem, pois como o autor mesmo afirma:

[...] decisiva é a posição dos indivíduos no processo de produção, ou seja, se dispõem ou não dos meios de produção, e se se sentem ou não proletários, isso é indiferente perante essa posição, isso pertence, por assim dizer, ao lado simples da ideologia, e não ao lado do socialmente essencial. [...] Se assim é, se aqueles que, segundo um valor limite, se definem objetivamente como proletários não possuem uma tal consciência e, inclusive, enfaticamente a recusam, pelo que, no fim de contas, nenhum proletário – tendenciosamente – se sabe proletário, então o emprego do conceito tradicional de classe, apesar dessa objetividade, adquire muito facilmente um elemento dogmático ou fetichista. (ADORNO, 1993, p. 37-38).

Ou seja, mesmo que a classe trabalhadora seja, como de fato é, manipulada, sobrepujada e por fim reificada e se os indivíduos que a compõem não tiverem a consciência clara da condição em que se encontram, o sentimento que terão é de como se fossem livres e desfrutassem plenamente dos frutos do seu trabalho.

No entanto verificamos que a indústria cultural abarcou todas as instâncias sociais e dimensões humanas, de tal maneira que, senão unicamente, mas com certeza prioritariamente, a saída de tal condição reside justamente na formação através de uma educação voltada de fato para a emancipação humana desde os primeiros anos de vida. É nisto que consiste grande parte do esforço desenvolvido pelos frankfurtianos em especial, Horkheimer, Habermans, Benjamim e acima tudo Adorno.

4.3 Da sociedade semiformada do capitalismo tardio à emancipação: a