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O esclarecimento tornado mito e sua crítica

3 DA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO À DIALÉTICA NEGATIVA OU, DO PROBLEMA À CRÍTICA

3.1 O esclarecimento tornado mito e sua crítica

A falsa proposição de que havíamos alcançado a emancipação humana de uma vez por todas através da razão esclarecida caiu por terra tão logo que se evidenciaram os horrores de duas guerras mundiais seguidas e a incapacidade de seus técnicos e cientistas de lidarem com as questões sociais inerentes a época e ao contexto em que o homem se inseria, a saber: suas condições materiais de existência, a justiça, a dignidade e a formação humana.

O tão propalado esclarecimento apresentou seus limites. Os cálculos matemáticos sobre os quais foi erigido o pensamento ocidental não levaram em consideração todas as variáveis que o projeto exigia. As contingências que não cabiam no conceito enfim se apresentaram. O antissemitismo foi, talvez, a mais clara e objetiva dessas contingências. Adorno e Horkheimer (1985, p.140) apresentam a questão da seguinte forma:

O entrelaçamento dialético do esclarecimento e da dominação, a dupla relação de progresso com a crueldade e a liberação que os judeus tiveram que provar nos grandes esclarecedores bem como nos movimentos populares democráticos, também se mostra no ser dos próprios assimilados.

Em outras palavras, a própria razão que mediava e calculava, em busca da ordenação e da harmonia, trazia, em si, todo o potencial desmesurado da violência e da crueldade. A busca cega da ordem e da identidade em uma sociedade administrada, não pôde admitir a diversidade dos elementos singulares. As diferenças deviam ser eliminadas para que a harmonia prevalecesse. A tensão dialética só cessaria quando a síntese fosse alcançada. “Os judeus achavam que era o antissemitismo que vinha desfigurar a ordem, quando, na verdade, é a ordem que não pode viver sem a desfiguração dos homens” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 140).

No entanto, segundo Adorno (2009, p.120), a convivência possível entre os homens e porque não dizer entre os contrários e contraditórios ainda se fazia possível até Kant:

A concepção kantiana ainda permitia dicotomias como a dicotomia entre forma e conteúdo, sujeito e objeto, sem que a mediação mútua dos pares contraditórios a confundisse; ela não leva em conta sua essência dialética, a contradição enquanto implicada em seu sentido.

E, ainda segundo Adorno (2009, p.122):

[...] na medida em que o sujeito e objeto não se encontram, como no esboço fundamental kantiano, em verdade firmemente contrapostos, mas se interpenetram reciprocamente, a degradação kantiana da coisa em algo caoticamente abstrato também afeta a força que deve formar o sujeito.

Ou seja, mesmo que haja – e de fato há, como é colocado pelo próprio Imannuel Kant em suas categorias a priori e a posteriori – a clara distinção entre sujeito e objeto, em Kant, o sujeito acaba por ser determinado pela força da abstração a que é elevado a forçosamente se tornar universal, perdendo assim, o sujeito, sua singularidade em função da necessidade de ser um sujeito transcedental, visto e aceito como universal, formal e abstrato, ainda como referência; ou posto de outra forma, como conceito. A filosofia kantiana é sim verdadeira, segundo Adorno, “na medida em que destrói a ilusão do saber imediato do absoluto; não-verdadeira, uma vez que descreve esse absoluto segundo um modelo” (ADORNO, 2009, p.123).

Tais reflexões podem apresentar-se aparentemente como paradoxais, uma vez sendo a subjetividade o próprio pensamento e não podendo ser explicada a partir de si mesma, mas somente partindo do elemento fático, sobretudo a sociedade, ao passo que a objetividade do conhecimento não existiria sem o sujeito. Tal paradoxo surge da lei cartesiana de que a explicação precisa fundamentar o posterior logicamente a partir do anterior. No entanto esta lei não é mais uma obrigação. Segundo Adorno (2009, p.123), “de acordo com seu critério de medida, o estado dialético de coisas seria a simples contradição lógica.”

O estado de coisas não pode ser explicado segundo uma lógica hierárquica vinda de fora e que não reconheça as suas idiossincrasias, senão “ela suporia a ausência de contradição, o princípio subjetivo do pensamento, enquanto inerente ao que precisa ser pensado, o objeto” (ADORNO, 2009, p.123).

O pensamento não precisa estar inevitavelmente preso a sua “armadura”, a logicidade, ao desencadeamento lógico-fatalista de sempre; a subjetividade pressupõe o algo fático e a objetividade, por sua vez, pressupõe o sujeito. “A dialética é, enquanto modo de procedimento filosófico, a tentativa de destrinçar os nós do paradoxo com o meio antiquíssimo do esclarecimento, a astúcia” (ADORNO, 2009, p. 124).

A razão enquanto dialética segue indo além de sua conexão natural e ofuscante que prossegue na compulsão subjetiva das regras lógicas sem lhe impor sua dominação, sem vencedores ou vencidos. Da mesma forma que a dialética não pode ser estendida até a natureza enquanto causa primeira e universal de explicação, não se deve também erigir, uma ao lado da outra, os dois tipos de verdade, quais sejam: uma dialética intrassocial e outra dialética que lhe seja indiferente. O corte feito pela divisão das ciências entre ser social e ser extrassocial ofusca e engana quanto ao fato de que a história heterônoma é a cegueira natural que se pereniza.

Segundo Adorno (2009, p.124):

Nada conduz para fora da conexão dialética imanente senão ela mesma. A dialética medita sobre essa conexão de maneira crítica, reflete seu próprio movimento; senão o título de Kant contra Hegel permaneceria não-prescrito.

Uma tal dialética é negativa. Sua idéia denomina a diferença de Hegel. Junto a Hegel, coincidiam identidade e positividade; a inclusão de todo não-idêntico e objetivo na subjetividade elevada e ampliada até o espírito absoluto deveria empreender a reconciliação.

Ora, ainda conforme Adorno (2009, p.125), “se o ente pode ser deduzido totalmente a partir do espírito, então esse se torna, para seu infortúnio, similar ao mero ente que imagina contradizer” ou seja, espírito e ente não estariam em acordo.

A violência intrínseca a ação de igualar reproduz a contradição que ele elimina. A exigência da identidade entre a prática e a teoria rebaixou inevitavelmente a teoria até torná-la submissa; ela eliminou da teoria aquilo que podia realizar numa tal unidade. A utilização prática e também imediata de toda teoria acabou por transformar-se em um selo de censura. O fim da teoria, por meio da dogmatização e da proibição do pensamento, contribuiu para uma má prática e se faz urgente e necessário para a própria prática que a teoria reconquiste sua independência.

A relação entre esses dois momentos, teoria e prática, não se resolve de uma vez por todas e se eterniza, ao contrário, ela se desdobra e se altera ao longo da história. A ciência, por exemplo, que tem se apoiado indiscriminadamente na prática, rejeitando como inútil qualquer tentativa de teorização e reflexão sobre si mesma ou mesmo sobre sua práxis, necessita da teoria se quiser transformar e avançar em sua prática.

A prática cega, sem a orientação da reflexão teórica, não considera as particularidades e diferenças que compõem a realidade social dos sujeitos envolvidos, mesmo quando esses indivíduos são atingidos diretamente, o que nos leva a pensar nas catastróficas consequências àqueles que também são atingidos de forma indireta, mas que distantes ou de menor importância, não são levados em conta nos cálculos exatos da prática científica.

Como exemplo, temos a condenação dos judeus, sem oportunidade de defesa, na Alemanha nazista e é por isso que, segundo Adorno (2009, p.126): “É preciso refletir novamente de maneira teórica, ao invés de deixar que o pensamento se curve irracionalmente ao primado da prática irrefletida. A própria prática foi um conceito eminentemente teórico.”

Teoria e prática, bem como forma e conteúdo, ou pensar e agir, são indissociáveis; não há como separar ou pensar um sem o outro e não cair em abstrações puramente formais e vazias.

A impossibilidade, ou mesmo a esterilidade de tal divisão para a compreensão da realidade é exemplificada por Adorno (2009, p.126) da seguinte maneira:

Crítico da cisão kantiana entre forma e conteúdo, Hegel queria alcançar uma filosofia sem uma forma separável, sem um método a ser manipulado independentemente da coisa. No entanto ele procedeu metodicamente. De fato, a dialética não é nem apenas método, nem algo real no sentido ingênuo do termo. Ela não é nenhum método: pois a coisa não-reconciliada, à qual falta exatamente essa identidade que é substituída pelo pensamento, é plena de contradições e se opõe a toda tentativa de interpretá-la de maneira unívoca.

Não se pode esquecer que é o objeto que intriga o pensamento e provoca a dialética impulsionando o conhecimento. A dialética não pode mais estar limitada a uma imposição que venha do pensamento e desmereça o objeto e suas contradições.

Ainda segundo Adorno (2009, p.127) “a dialética enquanto procedimento significa pensar em contradição em virtude e contra a contradição uma vez experimentada na coisa. Contradição na realidade, ela é contradição contra essa última.” Uma dialética dessa forma não se deixa mais concordar com Hegel.

O movimento de tal dialética não caminha para a identidade na diversidade de cada objeto na relação com seu conceito, ao contrário, ela vê com suspeita toda pretensão à identidade. Sua lógica é uma lógica que distingui e separa em contraposição a velha lógica que identifica e padroniza empobrecendo e falseando a realidade concreta e cada objeto. Toda afirmação que se apresente sem um elemento contraditório revela tanta contradição quanto os modelos ontológicos ser e existência. O que poderia ser diverso ainda não se apresentou afetando assim todas as determinações particulares e o poder de tal negatividade continua latente ainda hoje.

Adorno (2009, p.127) deixa claro o papel estanque da filosofia positiva frente à força da negatividade dialética da seguinte maneira:

Não se consegue obter nada de positivo da filosofia que seja idêntico à sua construção. No processo de desmitologização, a positividade precisa ser negada até o cerne da razão instrumental que produz a desmitologização. A idéia de reconciliação impede o seu estabelecimento positivo no conceito.

Apesar disso, a crítica ao idealismo alemão não elimina o que a construção conquistou de objetividade e clareza a partir do conceito, nem aquilo que a condução dos conceitos adquiriu em força graças ao método. Só é possível ir além do encantamento idealista aquilo que ainda está inscrito em seu contexto, aquilo que lhe é familiar em meio a sua co-realização oriunda do próprio procedimento dedutivo e que demonstra ao final, no próprio conceito, o seu elemento apartado, não-idêntico.

Segundo Adorno (2009, p.127) “a identidade pura é aquilo que é posicionado pelo sujeito, e, nessa medida, algo trazido de fora.” Em outras palavras, a identidade que se pretende alcançar através do idealismo dialético puramente abstrato leva a conceitos que, de uma maneira ou de outra, são sempre incluídos de fora. Não é o método dialético puro que conduz ao conceito, mas é o sujeito que vai impondo o conceito.

Adorno (2009, p.128) apresenta a questão da seguinte forma:

A crítica recíproca de universal e particular, os atos identificadores que julgam se o conceito faz justiça àquilo que é apreendido e se o particular também preenche seu conceito, é o meio do pensamento da não-idêntidade entre o particular e o conceito. E não apenas o meio do pensamento.

Podemos citar como exemplo o seguinte trecho de Adorno (2009) que explicita objetivamente a relação entre o conceito, pretensamente universal, e a realidade em que se apresenta o não-idêntico já presente no encadeamento lógico-abstrato do movimento dialético “puro” e que se mostra claramente na concretude do real:

Se a humanidade deve se libertar da compulsão que realmente se abate sobre ela sob a forma da identificação, então ela precisa alcançar ao mesmo tempo a identidade como seu conceito. Nisso tomam parte todas as categorias relevantes. O princípio de troca, a redução do trabalho humano ao conceito universal abstrato de tempo médio de trabalho, é originariamente aparentado com o princípio de identificação. Esse princípio tem na troca o seu modelo social, e a troca não existiria sem esse princípio: por meio da troca, os seres singulares não-idênticos se tornam comensuráveis com o desempenho idêntico a ele. (ADORNO, 2009, p. 128).

Como está claro no exemplo acima, a almejada identificação - ou apresentando o problema de outro modo – a troca que se deseja equivalente apresenta-se como injusta visto que o conceito universal-abstrato alcançado com a mais pura lógica aplicada ao método dialético, tratada aqui como tempo médio de trabalho, nivela as diferenças pessoais e o contexto histórico-social da realidade concreta em que se encontram os sujeitos que trocam sua mão-de-obra no mercado de trabalho, para, por assim dizer, fechar a equação e garantir a primazia do sujeito sobre a singularidade fundamental dos objetos.

Ainda segundo Adorno (2009, p.128), “a troca de equivalentes constitui, desde sempre, em trocar em seu nome desigual, em se apropriar da mais- valia do trabalho.”

Tal identidade que se apresenta na troca enquanto princípio identificador se reverte na forma originária da ideologia. A ideologia para Adorno (2009, p.129):

[...] deve sua força de resistência contra o esclarecimento à sua cumplicidade como pensar identificador: com o pensar em geral. Ele mostra seu lado ideológico pelo fato de não resgatar jamais a promessa de que o não-eu seria no fim o eu: quanto mais o eu o apreende, tanto mais plenamente ele se acha degradado ao nível do objeto.

Dessa forma, a identidade transforma-se em uma imposição à adaptação na qual o objeto pelo qual o sujeito deve se medir, retribui ao sujeito aquilo que ele lhe impôs, nas palavras de Adorno (2009, p.129), “ele deve aceitar a razão contra a sua razão.”

A razão tomada dessa forma converte-se, na verdade, em irracionalidade no momento em que não toma ciência, no decorrer do seu processo de desenvolvimento do conhecimento de que deve abandonar o seu próprio produto, a abstração, e voltar-se a realidade concreta do objeto, muito embora ela, a razão, não retorne mais ao objeto como anteriormente partiu; mas agora consciente de suas contradições e respeitando as suas singularidades.

É preciso renunciar a um pensamento que se desenvolva distante do objeto, cindido da realidade e seus acidentes para que não se deixe levar,

mais uma vez, pela metafísica, pelo idealismo ou mesmo pelo absoluto abstrato do conceito. Como é preciso também não se deixar cair nas garras do positivismo técnico-científico que a tudo reduz ao critério do especialista e que de tão especializado acaba por desprender-se das conexões reais de seu objeto de estudo com a realidade, incorrendo mais uma vez, só que por outra via; na esterilidade de um conhecimento desumanizado e incapaz de ver para além de suas próprias conclusões e determinações.

Adorno (2009, p.130) afirma que “toda determinação é identificação” e segue acrescentando que:

Secretamente a não-identidade é o telos da identificação, aquilo que precisa ser salvo nela; o erro do pensamento tradicional é tomar a identidade por sua finalidade. A força que lança pelos ares a aparência de identidade é a força do próprio pensamento: a aplicação de seu “isso é” abala sua forma, contudo, incondicional.

O conceito como substrato do processo dialético tradicional que busca a identificação não deve ser tomado como finalidade última do desencadeamento lógico-dialético. O conceito deve ser tomado como parte do processo, sem o qual não se poderia conhecer nada, porém é necessário incluir no processo dialético do conhecimento o não-idêntico, o outro do pensamento. O pensar flui no abismo que há entre a coisa e seu conceito. É como se considerássemos o velho jogo do “cara ou coroa”; não pode haver moeda que não tenha dois lados e ao arremessá-la para cima flui o tempo e o espaço no girar dos lados da moeda até que alguém interrompa.

Da mesma forma, enquanto se percorre o espaço entre o objeto e o sujeito, o conhecimento avança, mas com uma diferença em relação ao “jogo da moeda”, pois no movimento percorrido pelo pensamento, entre sujeito e objeto não pode haver uma mão que encerre a contenda.

O desdobramento do pensamento que se dá entre o sujeito e o objeto está sempre para além do conceito que por ventura possa se tentar alcançar por meio da síntese dialética. O objeto em sua singularidade é sempre “mais e menos do que sua determinação universal”, é conceitual (ADORNO, 2009,

p. 132).

Tomando como exemplo a insuficiência do conceito de liberdade na sua relação com o mundo empírico, Adorno (2009, p.132) expõe a questão da seguinte forma:

A contradição entre o universal e o particular tem por conteúdo o fato de que a individualidade ainda não é e por isso é ruim onde ela se estabelece. Ao mesmo tempo, essa contradição entre o conceito de liberdade e a sua realização também permanece a insuficiência do conceito; o potencial de liberdade exige uma crítica àquilo que sua formalização obrigatória fez dele.

A pretensão à invariabilidade que reside no conceito em busca da ordenação do real já é, por si só, incapaz de compreender as constantes mudanças a que estão sujeitos os objetos e instituições que ele mesmo tenta apreender. A dialética tal como a tem em Hegel, por exemplo, segundo sua subjetividade, tende a pensar os objetos como coisas inalteráveis; estanques no tempo e no espaço, como se permanecessem sempre, a partir de sua conceituação, idênticas a si mesmas e, no entanto, a experiência prova o contrário.

A dialética, da forma como vem sendo trabalhada, ou seja, apenas reelaborando o resultado das ciências específicas, pensando em uma maneira de formar um todo, passa então a ser uma forma de empiria mais elevada, como uma prima empiria e, portanto, não seria nada além do que uma reflexão que se empenha em colocar a harmonia do todo partindo da experiência.

3.2 A crítica à dialética hegeliana e à constatação da insuficiência do